Amor e memória: A arte de Mayara Ferrão

A baiana de Salvador sempre gostou e se envolveu com arte, desde criança. Atualmente, cursa Artes Visuais e vem fazendo um trabalho com Inteligência Artificial, ressignificando o afeto entre mulheres negras. Mayara acredita que essa série é mais do que apenas imagens – se trata de um processo de cura coletivo.

Conversamos com Mayara um pouco sobre a arte na sua vida num geral, seu processo criativo e também sobre seus trabalhos atuais. Confira abaixo:

  • Quais foram seus primeiros contatos imersivos com a arte? Foi desde pequena? Ou foi uma paixão que surgiu durante a vida?

Eu sempre gostei de arte desde criança. Eu não sabia que o nome era arte, mas minha brincadeira favorita sempre foi desenhar, pintar, colar, escrever, cantar, performar. Minha mãe sempre me estimulou, e olhando daqui, percebo que isso ajudava muito no cotidiano com 4 filhes para lidar ao mesmo tempo. Eu sempre fui a quieta, introspectiva e muito criativa. Conseguia me entreter sozinha com a minha arte, amava passar horas imersa no meu mundo. E meus pais, da forma deles, entenderam que esse era o caminho que me faria feliz. Então sempre soubemos que eu estudaria arte, cresci desejando isso, me preparei para o momento da vida em que eu iria estudar arte na faculdade. E foi assim que fluiu. Fiz vestibular pra artes visuais, passei, tô quase formando, e tento seguir o caminho que combinei com a minha criança interior. Na minha cabeça seria menos complexo, mas vamos.

  • Nos conte um pouco sobre seu processo criativo, afinal, você trabalha com variados tipos de expressão artística, como pintura e ilustração.

Meu processo artístico é muito natural e simples, sem muito mistério. Ele começa no pensamento, sempre, depois passa para a escrita. Quando vou desenhar, eu não trabalho com rascunho de desenho, geralmente construo na cabeça e rascunho na escrita.

Eu comecei a trabalhar inicialmente com ilustração porque o desenho foi a primeira ferramenta que me estimulou, então eu tenho uma afinidade mais espontânea. Mas a fotografia, o pensar criativo e estético, e o audiovisual sempre me atraíram muito, então me interessei por isso também.

É um processo que acontece em paralelo. Eu trabalho com ilustração/ pintura, e também com fotografia, audiovisual, e direção criativa. Na minha cabeça está tudo muito conectado, porque o que me move mesmo é a construção das imagens que eu quero ver e sentir. As expressões artísticas são ferramentas para a construção dessas narrativas.

  • Sua mais recente série utilizando inteligência artificial retrata o afeto entre mulheres. Qual a importância disso tudo para você?

A minha pesquisa com inteligência artificial tem uma importância política. Quando eu construo fotografias e documentos retratando mulheres negras e originárias expressando seus afetos em um contexto histórico colonial, eu tô tensionando uma narrativa de opressão, de silêncios, de violência, lacunas, e invisibilização que está escancarada nos arquivos fotográficos coloniais do Brasil. Isso sempre me incomodou muito.

As mulheres negras e originárias eram retratadas sempre de maneira estereotipada como figuras exóticas, servis e hipersexualizadas, correspondendo sempre ao olhar racista e sexista predominantes na sociedade.

Existe uma lacuna de documentações históricas, sejam fotográficas ou textuais relacionadas a troca de afeto entre mulheres negras e originárias por um viés amoroso e é importante reconhecer que essas lacunas na representação histórica não significam que essas mulheres e esses amores não existiram, ou que suas histórias sejam inválidas. Foi diante desse desconforto que tive o insight de criar essas fotografias ficcionando e revelando essas histórias de amor esquecidas.

  • Sinto que, de certa forma, essa representação de mulheres negras e indígenas é, sobretudo, revolucionário. Como você acha que isso esbarra no fato de você utilizar de uma tecnologia, que no fim, também é revolucionária?

Falar sobre mulheres negras e originárias, evidenciando seus afetos, vontades, desejos, por uma ótica de liberdade, em si, já é revolucionário. São imagens de poder que impactam outras mulheres de uma forma muito profunda e bonita.

Foi ousado me apropriar da inteligência artificial nesse momento complexo de discussão sobre a legitimidade do uso, mas sinto que apontar para o passado foi muito potente. A intersecção entre inteligência artificial, história e arte me oferece uma oportunidade de questionar e reimaginar narrativas históricas dominantes, trazendo à tona vozes e experiências historicamente silenciadas. Isso é especialmente poderoso em um momento em que a tecnologia muitas vezes reproduz e amplifica preconceitos e desigualdades. Ao invés disso, eu tento utilizar o potencial da tecnologia para a criação de imagens que discutem sobre sexualidade e construção afetiva, em torno de um trauma tão amargo.

  • Por último, o que isso tudo representa para você? Como você espera que as pessoas recebam esse conceito que você criou por trás da série?

Enquanto artista, me sinto estimulada em contribuir para a construção de um imaginário mais justo, inclusivo e afetuoso para nós mulheres, na memória do Brasil. Um imaginário que eu gostaria de ver e que serve muito de inspiração e afago para mim, para as minhas dores e traumas, mas que atravessam outras mulheres também.

Eu acho bonito imaginar histórias de amor e a possibilidade de compartilhar com outras pessoas também. É um processo de cura coletivo. Eu desejo construir obras que fomentem vozes que muitas vezes são minimizadas e silenciadas, assim como a minha enquanto mulher negra.

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