Fela Kuti, o criador do Afrobeat como voz de resistência

18 de ago. de 2025

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No final dos anos 1960, a Nigéria emergia dos destroços da Guerra de Biafra, conflito civil que durou de 1967 a 1970 e deixou mais de um milhão de mortos, em sua maioria vítimas da fome e da perseguição étnica.

A promessa de reconstrução nacional foi rapidamente sequestrada por sucessivos golpes militares que mergulharam o país em um ciclo de autoritarismo, corrupção e alinhamento às potências ocidentais. Lagos, a capital à beira do Atlântico, pulsava entre a efervescência de uma metrópole em expansão e o peso da repressão.

Foi nesse ambiente que um jovem saxofonista e tecladista chamado Fela Anikulapo Kuti retornou ao país após uma estadia nos Estados Unidos com mais do que músicas na cabeça, ele trazia um projeto cultural e político capaz de redesenhar a ideia de música africana no século XX.

Filho de Funmilayo Ransome-Kuti, uma das líderes feministas mais importantes da África Ocidental, Fela cresceu em um ambiente onde política e arte se entrelaçavam. Funmilayo foi sufragista, organizou movimentos contra o domínio colonial britânico, enfrentou ditadores locais e se tornou símbolo da resistência feminina na Nigéria. Seu pai, o reverendo Israel Oludotun Ransome-Kuti, era educador e ministro anglicano, e transmitiu disciplina e rigor intelectual. Mas foi o espírito combativo da mãe que moldou a atitude de Fela diante da vida e da música.

Nos anos 1960, Fela estudou em Londres, onde se formou em música, e posteriormente viajou aos Estados Unidos. Lá, viveu o auge do movimento pelos direitos civis e a radicalização do discurso negro. A convivência com membros dos Panteras Negras e com ativistas ligados à luta anticolonial fez com que ele repensasse não apenas a função da arte, mas o papel do artista na sociedade. Ele percebeu que poderia usar a música como uma arma de conscientização política, criando algo que fosse ao mesmo tempo enraizado na tradição africana e afiado como manifesto.

Assim nasceu o Afrobeat, gênero que fundia ritmos yorubá, highlife ganês, jazz, funk e elementos da música cubana, estruturados em longas suítes musicais que podiam ultrapassar 20 minutos.

Diferente da lógica pop ocidental, as músicas de Fela não buscavam refrões fáceis ou cortes rápidos, eram construções hipnóticas, em que a repetição criava transe e as letras surgiam como discursos, fábulas e provocações diretas. A cozinha rítmica, sustentada por baterias e percussões africanas, era acompanhada por seções de sopro poderosas, guitarras de groove cortante e linhas de baixo contínuas que empurravam a música como uma locomotiva.

Liricamente, Fela atacava o regime militar, denunciava os conchavos com as petrolíferas estrangeiras, criticava a elite nigeriana por adotar valores europeus em detrimento das tradições locais e satirizava a obediência cega das forças armadas.

A faixa “Zombie” (1976) é o exemplo mais célebre dessa postura, onde descrevia os soldados como zumbis, obedecendo ordens sem pensar. A música se espalhou como provocação pública e levou o regime a retaliar violentamente.

Em 1977, o exército invadiu a Kalakuta Republic, a comunidade independente e autossuficiente criada por Fela, que abrigava músicos, familiares e militantes, incendiou o local, espancou dezenas de pessoas e jogou Funmilayo da janela do segundo andar. Ela morreria meses depois devido aos ferimentos. Em resposta, Fela levou o caixão da mãe até os portões do quartel-general do governo e lançou “Coffin for Head of State”, transformando luto em acusação sonora.

A Kalakuta Republic e o Afrika Shrine, seu clube noturno em Lagos, funcionavam como centros culturais e políticos. Os shows eram mais do que apresentações musicais, eram rituais que misturavam dança, espiritualidade yorubá, erotismo e longos discursos políticos. Fela assumia a figura de um líder espiritual e cultural, articulando o pan-africanismo como filosofia de libertação e recusando qualquer forma de cooptação pelo Estado ou pela indústria cultural.

Esteticamente, o Afrobeat de Fela se estendia para além do som. As capas de seus discos, muitas delas criadas pelo artista Lemi Ghariokwu, funcionavam como charges políticas, cheias de caricaturas, símbolos e textos que narravam visualmente o conteúdo das músicas.

O próprio Fela cultivava uma imagem icônica com túnicas estampadas, tecidos tradicionais africanos, corpo frequentemente à mostra, pinturas corporais, gestos coreografados e uma postura desafiadora diante de câmeras e plateias. Essa estética era parte da mensagem, a afirmação orgulhosa de uma identidade africana não filtrada pelo olhar europeu.

Nos anos 1980 e 1990, apesar das doenças, das prisões constantes e das perseguições políticas, Fela manteve o discurso e a música com a mesma intensidade.

Recusou-se a suavizar sua obra para conquistar mercados externos, mesmo quando artistas como Paul McCartney e Stevie Wonder demonstraram admiração pública por ele. Sua recusa em comprometer a estética e a mensagem fez do Afrobeat não apenas um gênero, mas um território de resistência simbólica.

A morte de Fela, em 1997, devido a complicações relacionadas à AIDS, não encerrou o movimento. Seu filho Femi Kuti e posteriormente seu neto Made Kuti continuaram a expandir o Afrobeat, enquanto bandas e artistas de diversos continentes, como Antibalas (EUA), Seun Kuti & Egypt 80 (Nigéria) e Kokoroko (Reino Unido), reinterpretaram e levaram adiante sua proposta. Hoje, a influência de Fela é sentida não apenas na música, mas na linguagem visual, nas discussões sobre identidade africana e no ativismo cultural em todo o mundo.

Fela Kuti forjou um espaço político dentro da arte. Um lugar onde ritmo, corpo e palavra se fundem em resistência, onde cada batida de tambor é também uma afirmação de autonomia, onde a África não é tema ou cenário, mas sujeito ativo e central. Ao transformar as dores e contradições do seu tempo em música expansiva e irreprimível, ele inscreveu seu nome no panteão dos artistas que entenderam que som também é território, e que, como território, precisa ser defendido.