A quem interessa, e com quem está falando o Menswear?

Aos 27 anos, Rick Owens despontava como estilista da primeira coleção de Michèle Lamy. A cobertura foi feita pela Club MTV, que questionou o designer acerca do perfil do consumidor a quem se destinavam as peças. Nessa entrevista, de valor hoje quase documental, ele explicava criar para “um tipo de homem confiante e um pouco ousado… que sabe se divertir, mas que também sabe a hora de ser sério“. Após 3 décadas e meia, muitas coisas mudaram no Menswear.

 Na linha da desconstrução e da redução, parte das inovações no design do Womenswear foram reproduzidos nas passarelas masculinas. Estruturalmente, os novos tempos tornaram antiquado tratar do vestuário de maneira binária. O estilo mudou, porque a nova realidade é questionadora das normas de gênero e de leituras binarizantes da sexualidade. 

Apesar de muito ter mudado, muito também permaneceu. O Menswear ainda é pouco estudado, ou mesmo negligenciado na cultura do consumo. Uma compreensão do seu status hoje sempre é feita reflexamente, em comparação ao que é o Womenswear. Para a teórica da moda Jennifer Craik, “…a relativa negligência da moda masculina em muitos estudos de moda é uma consequência da peculiaridade das noções ocidentais de gênero.” Com essas preocupações à vista, meu único objetivo é propor uma reflexão. Ela parte da seguinte pergunta: a quem interessa, e com quem está falando o Menswear

O outono/inverno 2024 da semana de moda de Paris atravessou um período em que a moda precisava dar um passo atrás e dar alguns goles no suco da realidade. Primeiro, porque estava contextualizada durante as guerras Israel-Hamas e Ucrânia-Rússia. Some-se a esses conflitos uma crise climática e recessão econômica global provocada pelas altas inflacionárias mundialmente. 

Em períodos difíceis e de medo como o que vivemos, a resposta instintiva da moda é ficar sóbria. Seu movimento é preservar a comercialidade que sustenta as engrenages bilionárias das quais depende para existir. Inevitavelmente, isso é refletido nas passarelas. 

Marcas retornaram a uma representação mais clássica da masculinidade: workwear norte-americana, alfaiataria em todos os formatos, variações de jaquetas em Junya Watanabe, ternos em Yohji Yamamoto. Tanto a Louis Vuitton de Pharrell quanto a britânica Grace Wales Bonner colaboraram com a Timberland. Os desfiles investigavam diferentes arquétipos da masculinidade: o office boy da Prada, o cowboy da Louis Vuitton, o skatista da Loewe, o guerreiro apocalíptico de Rick Owens. Na Loewe, o tema foi um novo tipo de masculinidade — divertida e sensual. Jonathan Anderson abraçou a tendência no-trousers (sem calças), absoluta nas passarelas da moda feminina.

Jonathan Anderson Men’s A/W 2024

Até a última temporada, a realidade do Menswear seguiu numa era muito comprometida com o gender-fluid. Anthony Vaccarello aplicava a linguagem da moda feminina de Yves Saint Laurent à moda masculina na YSL. Isso significava blusas de seda e chiffon, laços gigantes, casacos que cobriam o chão e botas de salto vertiginoso. Jovens designers, indie e/ou queer — a exemplo de Ludovic de Saint Sernin, Dion Lee e Palomo Spains, têm como abordagem justamente a superação das fronteiras de gênero e da masculinidade no vestir. A intenção não era fazer com que homens parecessem afeminados, mas sim ultrapassar os limites estéticos do que muitas vezes é considerado como uma masculinidade tradicional.

Dion Lee F/W 2022

 Essa nova representação da masculinidade na moda é desafiadora. Especialmente para noções dominantes acerca dos códigos de uma suposta virilidade. Isso porque a sociedade ocidental enquadrou a moda em oposição à masculinidade. Para o inconsciente coletivo moderno, a ideia do que é o fashion está muito mais aproximada do universo feminino do que do masculino. Mas, se pararmos para pensar, essa constatação é absolutamente contraditória, porque a moda funciona como o principal meio pelo qual as identidades de gênero visíveis dos homens são estabelecidas: não só para diferenciar-nos das mulheres, mas também de outros homens.

Anthony Vacarello incorporou silhuetas da temporada de moda feminina no desfile de Outono/Inverno Men’s 2023

Por outro lado, o Menswear é tão engessado, que para parecer inovador, é preciso que seja radical. As convenções de vestuário estabelecidas em torno da masculinidade são rasas, de modo que qualquer noção de avanço só pode ser possível se homens estiverem vestidos como mulheres, ou em roupas impossíveis de serem imaginadas sendo vestidas por outros homens fora das passarelas. Apesar de chocarem e certamente levantarem novas reflexões acerca do que pode ser o guarda-roupa masculino, essas peças, pela sua radicalidade, não são assimiláveis pelo consumidor. Não surtem efeito comercial e, portanto, pouco alteram na estrutura comportamental. Isso cria um problema para o Menswear, porque os produtos desenvolvidos no estilo irão sempre oscilar entre a familiaridade e o absurdo — a partir do retrato de um homem que não existe. 

Parte significante do que está por trás de todas essas dificuldades que envolvem o Menswear é a misoginia. Historicamente, com a divisão sexual do trabalho, as identidades sociais e pessoais dos homens foram misturadas com a sua identidade profissional, assim sugerindo a ideia de que roupas frívolas seriam tipicamente femininas, enquanto homens só necessitariam de roupas utilitárias e, portanto, profissionais. O vestuário tem um papel fundamental na condição social masculina, ao permitir a obtenção de vantagens sociais e, consequentemente, preservar a ordem de gênero. Em certos ambientes, o simples fato de estar vestido de forma inadequeada pode levantar riscos pessoais e profissionais. Tamanha é a complexidade que existe em torno da masculinidade hegemônica. 

Naturalmente, o Menswear está amaldiçoado pela sina da virilidade e da masculinidade. Que fique claro, não me parece razoável concluir que este é um problema nascido da indústria, mas sim da internalização no imaginário social do que um homem deve ou não vestir. Muito menos acredito que seja possível formular uma solução. O objetivo do texto, como defendido nos primeiros parágrafos, é propor uma reflexão acerca do atual estado do Menswear a partir dos seus consumidores e da indústria. 

Saber a quem interessa, e com quem está falando o Menswear, passa necessariamente pela adoção de uma postura crítica que entende a moda masculina como uma grande trincheira da moda. Esse é o primeiro passo para a descoberta de novos caminhos que ou amenizem, ou eliminem as amarras impostas pelas noções tradicionais de masculinidade. O risco que enfrentamos hoje é de que o Menswear seja apenas um retrato menos sexualizado do Womenswear, ou um exercício de imaginação que dificilmente será concretizado.

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