A beleza do desconforto na fotografia de Miguel Rio Branco

Jun 20, 2025

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Miguel nasceu em 1946, em Las Palmas, nas Ilhas Canárias, filho do diplomata brasileiro Helio de Almeida, o que fez com que tivesse uma infância marcada por deslocamentos geográficos constantes. Cresceu entre países como Suíça, Portugal, Alemanha e Estados Unidos, desenvolvendo desde cedo uma perspectiva cosmopolita — mas também uma sensação de não pertencimento. Esse trânsito cultural alimentou uma sensibilidade voltada aos limites, aos "entre-lugares", e mais tarde repercutiria na forma como trataria a condição humana em sua obra.

“No início dos anos 1970, minha situação era a de um iniciante na fotografia… [mas] eu conseguia ver as cidades a partir do lado mais marginal da sociedade. E, morando perto da Bowery, eu não conseguia entender como um país rico podia conviver com pessoas tão degradadas.”

Estudou pintura e fotografia nos Estados Unidos (na School of Industrial Arts em Nova York e no Institute of Photography of New York) e também teve passagens por escolas em Paris. Sua formação híbrida entre as linguagens visuais e o cinema influenciou sua estética carregada de narrativas fragmentadas, cromatismo violento e forte carga emocional.

“Desde o início, sempre me apoiei no cruzamento. Pintura encontrando fotografia. Desenho encontrando colagem. Fotografia encontrando cinema. Música encontrando poesia. Poesia encontrando montagem. Todos esses encontros fazem parte dos muitos cruzamentos na busca de uma compreensão e expressão de mim mesmo em relação ao mundo.”

Ele iniciou sua carreira profissional como cineasta e fotógrafo no início dos anos 1970. Em 1978, tornou-se correspondente da agência Magnum Photos, embora nunca tenha se filiado oficialmente à agência — o que já indicava sua recusa em se prender a modelos fixos, inclusive do fotojornalismo tradicional.

“Nos últimos anos, desenvolvi um trabalho que parte do fotojornalismo ou da fotografia documental. Começo com ideias que muitas vezes estão no campo social, mas então se desenvolvem imagens poéticas [...] Se for bem-sucedido, o trabalho transcende os limites do fotojornalismo. É um trabalho interpretativo, no qual meu inconsciente permanece livre enquanto fotografo.”

Seu trabalho no início era mais documental, voltado para registros de cenas urbanas, condições sociais e violência — mas logo se distanciou do realismo direto e adotou uma abordagem mais subjetiva, alegórica, por vezes pictórica. Um ponto de inflexão importante foi sua experiência em Salvador (Bahia), no final da década de 1970 e início de 1980. Lá, mergulhou em comunidades marginalizadas e começou a desenvolver uma linguagem muito própria: visceral, cromática, tátil e sensorial.

Esse período foi um divisor de águas em sua trajetória artística. Mais do que apenas um recorte geográfico, esse tempo consolidou a virada estética e existencial do artista — e foi lá que ele encontrou seu universo mais visceral, mais denso, mais simbólico.

Instalado no bairro do Pelourinho, então em decadência, Rio Branco mergulhou de forma intensa na vida urbana da cidade, especialmente nos espaços mais marginalizados e invisibilizados: cortiços, prostíbulos, casas de luta, vielas deterioradas.

É em Salvador que nasce seu trabalho mais emblemático, o livro e exposição "Maldicidade", embora ele tenha sido publicado só muitos anos depois, em 2014. A palavra — uma fusão de “maldição” e “cidade” — já anuncia o tipo de poética que define esse ciclo: uma fotografia carregada de beleza, crueldade e misticismo.

Durante esse período, ele se distancia de vez da fotografia em preto e branco e aprofunda sua obsessão pelo uso simbólico da cor. Vermelhos profundos, ocres, sombras azuladas. Salvador aparece como um organismo vivo, onde o barroco colonial se mistura à presença negra, à sensualidade, à religiosidade e à exclusão.

Um dos espaços mais fotografados por ele na cidade foi uma academia de boxe em um porão insalubre. Os corpos dos lutadores, feridos e suados, se tornam objetos de sobrevivência, de tensão entre potência e exaustão — temas centrais no seu trabalho. As imagens desse ambiente aparecem em livros como Silent Book (1997) e Pele do Tempo (2004).

Antes da revitalização do bairro pelo governo nos anos 1990, o Pelourinho era visto como um espaço em colapso, cheio de tensão racial, social e arquitetônica. Para Miguel Rio Branco, no entanto, era ali que pulsava a verdade escondida do Brasil: um lugar onde o passado colonial, a violência presente e a sobrevivência cotidiana se entrelaçavam de maneira crua e irrecusável.

Em Silent Book, por exemplo, as fotografias não são acompanhadas de texto. A narrativa visual se impõe por sobreposições, repetições e cortes, construindo uma espécie de “cinema imóvel”. A ausência de palavras intensifica a força simbólica das imagens — olhos fechados, corpos suados, sangue seco, peles marcadas, paredes descascadas.

Miguel Rio Branco também se destacou como cineasta experimental e artista multimídia. Seus vídeos curtos e instalações expandem o sentido de suas fotografias. Sua trajetória no cinema é menos conhecida do que na fotografia, mas não menos relevante. Assim como na fotografia, seu cinema evoca, instiga e perturba.

Antes de mergulhar na fotografia, Miguel Rio Branco teve uma formação artística multidisciplinar. Estudou no School of Industrial Design de Montreal, passou pela New York Institute of Photography e, crucialmente, também pela Escola Superior de Cinema de Munique (HFF München), na Alemanha — uma das mais prestigiadas do mundo. Esse background em cinema influenciou diretamente a maneira como ele passou a pensar suas fotografias: como planos, sequências, narrativas visuais.

Rio Branco começou a fazer filmes nos anos 1970, inicialmente em super-8 e 16 mm, com uma abordagem bastante experimental. Seu interesse não estava no cinema narrativo tradicional, mas sim em um cinema de sensações.

Entre seus filmes mais reconhecidos, destacam-se:

1. “Nada levarei quando morrer aqueles que me devem cobrarei no inferno” (1981)

Esse curta, com cerca de 20 minutos, é considerado seu filme mais importante e cultuado. Feito com imagens captadas em Salvador, ele já antecipa temas de Maldicidade: a decadência urbana, o erotismo violento, a religiosidade profana, a cor como elemento dramático.

O filme não tem diálogos nem narrativa convencional. Ele é guiado por uma trilha sonora ruidosa, compassada, quase ritualística. Sua montagem é elíptica, fragmentada — mais próxima da lógica da poesia do que da dramaturgia. O título é uma citação que poderia estar gravada em uma parede ou sussurrada por um personagem ausente: trata-se de uma vingança existencial, uma sentença contra o esquecimento.

Esse filme é um marco da linguagem audiovisual brasileira experimental, sendo exibido em festivais internacionais e estudado em cursos de cinema.

2. “Entre os Olhos, o Deserto” (1997)

Esse trabalho é quase uma extensão fílmica do Silent Book. Mistura imagens de arquivo, fotografias e vídeo com uma edição não-linear. É uma espécie de ensaio audiovisual sobre o silêncio, o corpo e o tempo. A trilha sonora e a composição sonora desempenham papel essencial, reforçando o aspecto sensorial e onírico.

Sua linguagem cinematográfica é marcada por uma montagem associativa, em vez de uma narrativa linear. Se usa da fusão entre som e imagem para criar estados emocionais. O foco se dá no corpo, na cor e na textura. Com ausência de diálogos, exige do espectador uma entrega completa.

Para Miguel Rio Branco, o cinema não é uma carreira paralela à fotografia, mas sim uma extensão natural de sua linguagem visual. Em suas palavras, ele usa o cinema como “um modo de trazer tempo para dentro da imagem, como uma forma de respirar dentro da cor”.

Embora tenha produzido poucos filmes em comparação com sua vasta obra fotográfica, Rio Branco foi reconhecido por sua contribuição ao cinema de vanguarda. Seus filmes foram exibidos em instituições como:

  • MoMA (Nova York)

  • Centre Pompidou (Paris)

  • Inhotim (Minas Gerais)

  • Além de festivais experimentais e circuitos de arte contemporânea.

Poucos fotógrafos brasileiros conseguiram tensionar tanto os limites entre o documental e o poético quanto Miguel Rio Branco. Sua linguagem fotográfica, marcada por um cromatismo violento, composições labirínticas e um olhar brutal sobre o corpo e o espaço urbano, não apenas registra, mas expõe, dilacera, transforma.

A cor, para ele, nunca é decorativa — é expressão da carne, da ferrugem, da febre. Suas imagens muitas vezes parecem pintadas com sangue seco, com suor impregnado nas paredes, com luz filtrada por corpos em ruína. A saturação cromática, o uso preciso do vermelho, do ocre, do azul queimado, carrega peso simbólico: a violência social aparece menos como denúncia explícita e mais como atmosfera.

A câmera de Rio Branco não busca a frontalidade do documentarista clássico. Muitas de suas composições quebram regras tradicionais da fotografia: os cortes são abruptos, os enquadramentos muitas vezes claustrofóbicos, os elementos se sobrepõem em camadas visuais e narrativas. Há uma relação direta com a montagem cinematográfica, e com a pintura também.

Contudo, essa linguagem radical levanta críticas. Há quem questione até que ponto sua fotografia escapa da estetização da miséria. Ao colocar corpos marginalizados, como lutadores de boxe, prostitutas, mendigos, travestis, sob uma luz altamente estética, em composições milimetricamente belas, ele flerta com o risco de transformar sofrimento em fetiche visual. É uma tensão constante: sua obra não denuncia diretamente, mas também não romantiza. Ela expõe e o desconforto gerado é talvez seu maior mérito.

Outro ponto crucial: seu trabalho não oferece respostas. Não há legenda, não há explicação, não há redenção. O espectador é lançado em um ambiente opressor e hipnótico. É uma fotografia que exige presença e que recusa o consumo rápido da imagem, típico da lógica contemporânea.

Sua linguagem é tátil, cheia de atrito. Não há neutralidade possível. Ele fotografa a vulnerabilidade com a crueza de quem já entendeu que o mundo é feito de contrastes radicais: entre a carne e o metal, o silêncio e o grito, o amor e o abandono.

Em tempos de imagens limpas, rápidas e higienizadas, sua fotografia continua sendo uma ferida aberta no imaginário visual brasileiro.

Miguel Rio Branco é uma figura fundamental para se compreender a fotografia brasileira contemporânea como um campo híbrido, poético e político. Ele desafiou a tradição documental ao poetizar a realidade sem suavizá-la, expondo o sofrimento, o erotismo, a violência e a espiritualidade com intensidade.

Sua obra rompe com qualquer idealização do Brasil, mas também não se prende à denúncia panfletária. Ele constrói uma poética do abismo, em que corpos e espaços vulneráveis se tornam monumentos visuais. Seu legado está justamente na radicalidade do olhar, na autonomia da imagem e na recusa ao conforto.

Editora e social mídia

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