A permanência do preto e branco na imagem contemporânea

Aug 21, 2025

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Eliminar a cor de uma produção, embora possa parecer uma simples subtração, é na verdade uma maneira de reorganizar os sentidos visuais. É aceitar que cada sombra, cada brilho, cada textura conta uma história que o colorido muitas vezes dilui e interrompe as percepções.

Por isso, quando se escolhe o preto e branco como linguagem, a imagem muda de função, parte de representação para uma tensão e um campo minucioso de análise. Sob essa luz, cabe olhar para três artistas contemporâneos, de histórias distintas, que optam pela utilização da monocromia em partes dos seus trabalhos, cujas imagens desafiam essa análise: Gabriel Moses, Luiz Braga e Sebastião Salgado.

Gabriel Moses, fotógrafo e cineasta londrino nascido em 1998, se serve do preto e branco por pura ancestralidade visual. “Regina”, seu curta-metragem de estreia, é totalmente filmado em preto e branco, e é talvez sua obra mais íntima. Moses já comentou que o filme é sobre suas raízes nigerianas, sua avó e sua relação com o feminino e o sagrado. A escolha pelo P&B aqui não é uma escolha puramente formal, é um momento para criar uma camada de distanciamento temporal e espiritual. Dá às imagens uma atemporalidade quase litúrgica.

Primordialmente utilizado para acentuar textura de pele, expressão corporal e linguagem gestual, é uma forma de não competir com a cor, e sim, colocar o olhar direto sobre o que está sendo dito com o corpo.

Luiz Braga, por outro lado, traz outra geografia e outro tempo. Fotógrafo paraense, Braga começou aos 11 anos a documentar o cotidiano de Belém. Tornou-se conhecido pelas imagens intensamente coloridas da cultura cabocla, mas sua relação com o preto e branco é mais antiga.

Em 1987, depois de anos fotografando em cor, ele retorna à monocromia com A Margem do Olhar, série que lhe rendeu o prêmio Marc Ferrez. Ali, Braga opta por deixar a cor de lado não como limitação técnica, mas como estratégia de foco e densidade. As margens amazônicas ganham forma mais crua, mais detalhada, sem o desvio cromático. É nesse ponto que algumas análises surgem como: o que o preto e branco permite ver que a cor dissolve?

Sebastião Salgado levou essa lógica ao extremo. Desde os anos 80, suas séries fotográficas como Workers, Êxodos e Amazônia elevaram o preto e branco a uma espécie de linguagem universal da dor, da resistência e da monumentalidade humana.

Suas imagens não são apenas documentação, são construções simbólicas, arquétipos da condição humana. Ao optar pelo P&B, Salgado projeta essas figuras em um tempo suspenso, o garimpeiro, o migrante, o indígena, o refugiado, não como personagens de jornal, mas como figuras de registros históricos e profundos. O mesmo em entrevista diz:

“Meu mundo é preto e branco, eu vejo em preto e branco, eu transformo todas essas gamas maravilhosas de cores – e eu acho a cor muito bonita – em gamas maravilhosas de cinza, o preto e branco é uma abstração, é uma forma que eu tenho de sair de um mundo e entrar em outro para poder trabalhar o meu sujeito fotográfico...”

Essa não é uma escolha isolada. Na fotografia documental, Mariana Cook captou um dos retratos mais célebres de Barack e Michelle Obama em 1996, antes de qualquer projeção política. A imagem, feita em prata gelatina, coloca o casal jovem sentado no sofá de casa em Chicago, com simplicidade extrema. Mas o preto e branco faz a cena parecer inevitável, como se o destino político já estivesse escrito ali.

No cinema, o preto e branco foi norma durante décadas, mas nunca deixou de ser uma escolha. Diretores como Orson Welles, Fritz Lang, Bresson, Bergman, Fellini, todos usaram a monocromia não por falta de alternativa, mas por criar uma necessidade narrativa. Hoje, diretores como David Fincher (Mank), Alfonso Cuarón (Roma), Robert Eggers (O Farol) ou Alexander Payne (Nebraska) voltam ao P&B como ruptura.

A técnica por trás também reforça o sentido. O Zone System, técnica criada por Ansel Adams e Fred Archer, propunha mapear tons de cinza em zonas específicas para calibrar luz e exposição antes mesmo de clicar. Era uma forma de projetar a imagem na cabeça antes de captá-la. Um projeto de arquitetura tonal. Isso exige do fotógrafo domínio, precisão e uma visão clara da atmosfera que se quer construir.

Há ainda uma dimensão emocional, estudos como os da Psychology of Aesthetics, Creativity, and the Arts (APA) indicam que imagens monocromáticas evocam com mais frequência sensações como melancolia, nostalgia e introspecção do que suas equivalentes coloridas. O contraste radical entre luz e sombra ativa uma zona psicológica específica. Essa ausência de cor gera um silêncio visual que muitas vezes aproxima, gera questionamentos e cria uma densidade visual única.

Em tempos de estímulo constante, a escolha pelo preto e branco parece contraditória. Mas talvez seja exatamente por isso que ela se torne necessária. Eliminar as distrações, voltar ao gesto, ao olhar, às formas — isso em um tempo saturado.