Do The Right Thing, a pílula fervente de Spike Lee
Em 1989, os Estados Unidos acumulavam quase uma década de conservadorismo sob Reagan e Bush pai, endurecimento das políticas de segurança, ascensão da “War on Drugs” e um avanço da gentrificação que expulsava comunidades negras e latinas dos centros urbanos.
As tensões raciais estavam longe de arrefecer e, no cinema, a representação negra ainda se dividia entre a comédia estereotipada e o drama conciliador.

Foi nesse cenário que Spike Lee lançou Do The Right Thing, um filme que não se propunha a apaziguar. Pelo contrário, queria forçar o espectador a encarar a fricção. A premissa é simples: um bairro do Brooklyn, um calor insuportável, e um único dia em que tudo, inevitavelmente, implode.

É um filme que se recusa a oferecer resolução durante sua trama, onde desde o primeiro minuto apresenta uma linha tênue de tensão, algo como qualquer coisa, a qualquer momento, pode cair por terra e explodir, uma representação da raiva, dos problemas acumulados e da sensação de guerra na periferia nova iorquina durante a chegada dos anos 90.

O calor é o primeiro personagem do filme. Ele escorre pelas telas, intensificado pela fotografia saturada de Ernest Dickerson, que pinta os enquadramentos de vermelhos, amarelos e laranjas. Essa escolha é a materialização visual de uma pressão constante, como se cada frame fosse um termômetro prestes a explodir.
A opção por filmar o longa em tons saturados, com vermelho, laranja e amarelo dominando o quadro, é uma escolha dramática que expõe a sensação de sufocamento. O calor é a representação direta do visual climático, racial, urbano e histórico a ser desenvolvido, e é diretamente escolhido para pressionar os olhos do espectador com uma gama alta de informações e tons.

A narrativa acompanha um conjunto de personagens que orbitam a Sal's Famous Pizzeria, ponto de encontro e tensão no bairro. Mookie, vivido pelo próprio Spike Lee, é um entregador de pizza que transita entre cumplicidade e distanciamento, observando mais do que agindo. Radio Raheem, interpretado por Bill Nunn, é presença constante, carregando um rádio que toca Fight the Power do Public Enemy em repetição — música que Spike pediu a Chuck D para compor especialmente para o filme.
O filme foi rodado em uma única quadra real de Bed-Stuy, adaptada especialmente para o longa. Os figurinos e até o som são construídos para incomodar, discussões de fundo, música alta, compondo um ambiente que nunca permite descanso.

Sal, vivido por Danny Aiello, aparenta ser um comerciante tradicional, mas se revela inflexível quando confrontado sobre a ausência de ídolos negros no mural da pizzaria. O conflito sobre as fotos parece banal, mas carrega camadas de representação, pertencimento e invisibilidade cultural.
O conflito é um microcosmo. Quando Buggin’ Out questiona por que não há imagens de ídolos negros num restaurante em um bairro negro, a discussão revela o dilema da representação, a recusa de Sal em mudar o mural é um gatilho simbólico. A cidade racializada é feita de disputas mínimas que escondem tensões profundas.
A montagem intercala momentos quase teatrais com cenas de realismo seco. Spike insere uma sequência emblemática onde personagens olham diretamente para a câmera e despejam insultos racistas contra diferentes grupos étnicos. É um corte seco no ritmo do filme, uma quebra de quarta parede que força o público a encarar de frente o ódio cotidiano, banalizado, que compõe o tecido das relações urbanas.

O ponto de ruptura chega quando a polícia intervém em uma discussão e mata Radio Raheem, sufocado em cena que ecoa, décadas antes, os casos de Eric Garner e George Floyd. A brutalidade policial é mostrada sem filtros e desencadeia a revolta. Mookie, em ato de ruptura, joga uma lata de lixo contra a vitrine da pizzaria, gesto que divide interpretações até hoje.
O estabelecimento é destruído, mas não há catarse. O filme encerra sem resolver as tensões, reforçando que o conflito racial não é algo que se encerra em um dia.
Spike Lee encerra o filme com duas citações: Martin Luther King, defendendo a não-violência; Malcolm X, legitimando a autodefesa. A dualidade não é um convite à escolha, mas à reflexão.
Na época do lançamento, Do The Right Thing foi visto por parte da crítica como incitador de revolta. Alguns veículos chegaram a temer que o filme provocasse “distúrbios raciais” após as exibições. A acusação não era nova, sempre que uma obra negra não busca agradar, ela é vista como perigosa.

Trinta anos depois, Do The Right Thing parece ter previsto o século XXI. O racismo estrutural, a gentrificação, a violência policial, a disputa por espaço, tudo parece seguir a lógica de que a vida imita a arte, e vice-versa.
Há um detalhe que ajuda a entender a potência do filme, foi lançado em junho de 1989, apenas dois meses após o caso Central Park Five, quando cinco adolescentes negros foram falsamente acusados de estupro em Nova York. A cidade fervia, a tensão estava no seu ponto ápice, e Spike Lee entregou um filme sobre todos os casos possíveis.
Do The Right Thing é, até hoje, uma das obras mais cirúrgicas sobre o colapso racial urbano. Mas é também um filme sobre microgestos, sobre as escolhas que formam um dia. Sobre o olhar que se desvia, a palavra que não se diz, a janela que não se abre. É um lembrete de que a violência não explode do nada.
Veja outros como esse