Criação, trabalho e paixão: a vitrine criativa da Casa de Criadores
Para esta Nº56 edição da Casa de Criadores, o evento que continua a impulsionar criadores autorais na moda brasileira, retorna ao Centro Cultural São Paulo, no bairro da Liberdade. Ao todo, serão realizados 33 desfiles, contando com 2 retornos e 3 estreias. Para além de roupas numa passarela, o encontro se firma como um cenários de experimentação, memória e política — carregando em cada peça narrativas, sonhos e estéticas.
Para André, é ali que se cria uma “vitrine da criatividade brasileira”, com espaço para vozes que desafiam padrões e ressignificam o tempo da criação, como propõe Fábia Bercsek com seu design circular. Já nomes como ALEBRITOxStudio115 e Casa Paganini evocam, respectivamente, liberdade autoral e teatralidade sensível como formas de resistência. Da ancestralidade da coleção de NALIMO ao ativismo da NotEqual, passando pelo aspecto ecológico do Studio Ellias Kaleb e pelas memórias da UMS458-LL, cada marca presente evidencia o processo vivo e politizado que a moda autoral brasileira continua realizando, viva e presente.
Conversamos um pouco com diretor do projeto, André Hidalgo, e com mais sete designers sobre suas motivações, anseios e expectativas para esta edição. Confira abaixo:
André Hidalgo:
NOTTHESAMO: Com mais de 27 anos no projeto, quais momentos você considera marcos fundamentais na história da CdC? E o que te motiva a continuar à frente do projeto depois de tanto tempo?
André: Foram muitos momentos históricos e desfiles memoráveis ao longo desses anos, muitos deles gravados para sempre na minha memória. Cada nome que lançamos ou que passou pelo evento deixou sua marca. Alguns desfiles foram tão potentes que criaram verdadeiras experiências coletivas de catarse, onde público e criadores viviam algo único e transformador ali, ao vivo, na passarela.
Também não posso deixar de mencionar os espaços que ocupamos, muitos deles marcos arquitetônicos da cidade de São Paulo, como o Centro Cultural São Paulo, onde o evento acontece hoje, ou locais icônicos como o Vale do Anhangabaú, a Praça das Artes, o Estádio do Pacaembu, entre outros. Cada lugar nos ajudou a contar a história da Casa de Criadores em diálogo com a cidade.
O que me motiva a continuar é, primeiro, esse legado construído com muito trabalho e paixão, que entendo como uma contribuição significativa para a moda brasileira. E segundo, o surgimento de novas gerações de criadores cada vez mais potentes, politizados, articulados e consistentes, que vêm transformando o próprio conceito de moda, unindo criação, impacto social e novas possibilidades para o setor no Brasil e no mundo.
NTS: Quais são as principais expectativas para esta edição?
A: A volta ao Centro Cultural São Paulo, sem dúvida, é um dos pontos altos. O CCSP é um espaço simbólico e fundamental para a cidade, não apenas pela sua arquitetura fluida, com múltiplas entradas, rampas e jardins, mas pelo que ele representa: um lugar de encontros, trocas, convivência e criatividade.
É esse ambiente que potencializa o espírito da Casa de Criadores. Quando reunimos estudantes, profissionais da moda, jornalistas, influenciadores, artistas e o público em geral, o evento se torna uma grande vitrine da criatividade da cidade e do país. Moda, design, música e cultura se cruzam e se tornam ferramentas de inclusão e fortalecimento da economia criativa.
Além disso, sempre há expectativa para as estreias. Novas marcas chegam trazendo oxigênio para o evento e para a moda autoral brasileira, revelando outras narrativas, outras estéticas e novas formas de pensar o vestir.
NTS: De que forma a Casa de Criadores pretende continuar renovando e apoiando novas vozes na moda?
A: Estamos avançando em diversas frentes. Além do evento, estamos lançando uma cooperativa de estilistas da moda autoral brasileira, que será um divisor de águas. Ainda não posso divulgar todos os detalhes, mas é um projeto robusto que prevê, entre outras ações, um programa de aceleração para marcas autorais, oferecendo ferramentas reais de desenvolvimento e profissionalização.
Também estamos trabalhando em um programa de capacitação focado nos impactos ambientais e sociais da moda. Queremos que os estilistas compreendam profundamente o papel que suas criações desempenham no mundo e possam desenvolver um trabalho autoral, inovador e de impacto positivo, tanto social quanto ambiental. Esse projeto será um grande marco para a moda brasileira, disso vocês podem ter certeza
NTS: O que você enxerga como o futuro da moda autoral no Brasil?
A: O futuro da moda autoral no Brasil depende, principalmente, de um mercado mais comprometido com investimentos. Não dá mais para romantizar a criatividade sem garantir estrutura, recursos e suporte real para quem está criando. É preciso investir em capacitação profissional, acesso a ferramentas, inovação tecnológica, comunicação e também em estruturação de negócios. Só assim conseguimos transformar boas ideias em marcas fortes e sustentáveis.
A inovação precisa caminhar junto com formação sólida, consciência sobre os impactos socioambientais e uma visão criativa. Sem investimentos consistentes nessas frentes, a moda autoral corre o risco de continuar restrita a nichos, quando na verdade tem potencial para muito mais.
A Casa de Criadores está atenta a tudo isso e quer ser parte ativa dessa transformação. Além de revelar talentos, nosso objetivo é fomentar um ecossistema que valorize o desenvolvimento profissional, o impacto positivo e a construção de marcas consistentes, que dialoguem com os novos tempos e com as questões urgentes que o mundo nos impõe. É por esse futuro que a gente trabalha todos os dias. E é um futuro que precisa ser construído de forma coletiva, com o apoio de todos os setores. A moda sempre foi política por si só, mas está na hora dela também aprender a fazer política.
ESTILISTAS:

Fábia Bercsek
NOTTHESAMO: O que te motivou a criar essa coleção com base no design circular? E como foi o processo criativo?
Fábia: A motivação principal para criar essa coleção nasceu da urgência em ressignificar a relação entre moda, tempo e consumo. Em um mundo saturado por excessos e descartes, venho propondo uma nova perspectiva — a roupa como linguagem viva, que carrega memória, história e afeto. O design circular, nesse contexto, não é apenas uma prática sustentável, mas também um ato poético e político de reconstrução.
A "WORLD EXPO 2025" reforça esse olhar por meio do upcycling criativo, onde peças comuns, muitas vezes consideradas descartáveis, são transformadas em criações únicas. São roupas “banais” que ganham novas camadas — manuais, artísticas e conceituais — e se tornam veículos de expressão. Cada peça é um organismo vivo, reconstruído com um novo propósito.
O processo criativo, como sempre, é profundamente intuitivo e sensorial. Não parto de um plano fixo, mas de um estado de escuta ativa e sensibilidade ao que me cerca. Tudo o que vivo, sinto e absorvo se torna parte do processo — desde imagens cotidianas até experiências emocionais. Sou movida tanto por referências visuais intencionais quanto por descobertas espontâneas, aquelas que surgem por acaso e parecem “me escolher”. Gosto de pensar que deixo o destino conduzir o caminho, transformando encontros aleatórios em pontos de partida criativa. Garimpo tecidos, detalhes, memórias, e com isso componho uma espécie de colagem poética que dá vida às peças.
NTS: O que significa para você voltar à Casa de Criadores abrindo o evento?
F: Voltar à Casa de Criadores abrindo a 56ª edição do evento é, para mim, um momento simbólico de retomada, celebração e afirmação de identidade. É como reabrir um ciclo, mas agora com uma maturidade criativa mais intensa, uma visão ainda mais conectada às minhas verdades artísticas e à missão da marca.
A FÁBIA BERCSEK® é um espaço híbrido onde arte, moda, poesia e performance se encontram. Estar na Casa de Criadores é ocupar um espaço que valoriza a experimentação, a autenticidade e o pensamento crítico, tudo o que guia meu trabalho desde o início. E abrir o evento tem um peso simbólico: é como anunciar uma nova fase, não só da marca, mas também da própria cena criativa que se reinventa a cada edição.
Sinto que esse retorno vem carregado de significado. O desfile é quase uma metáfora da minha trajetória: uma colagem viva de passado, presente e futuros possíveis. Voltar à passarela, nesse contexto, é reafirmar que é possível criar moda com alma, com discurso. É ocupar, mais uma vez, um lugar onde a criação resiste — e inspira.

ALEBRITOxStudio115
NOTTHESAMO: Você passou por experiências muito diferentes da Alexander McQueen à Ginger. Como essas vivências influenciaram sua visão atual de moda autoral?
ALE: Cada lugar é uma experiência! Alexander McQueen é algo muito mágico, porque você vê as coisas acontecendo com muita facilidade, e vê que tudo é possível, tanto em modelagem, em tecido, desfile, casting, tudo muito possível! E tudo minucioso também. Então eu aprendi bastante.
E na Ginger, eu e a Marina tínhamos um match muito legal, ela deixava eu ter uma licença poética, bem livre para eu criar.
Acredito que ter passado pela Ellus, ficado quatro anos à frente da marca, cuidando do E-Commerce, desfile, atacado... me deu muita experiência para criar e respeitar o DNA de cada marca. Então, mesmo que o meu DNA seja bem diferente do DNA da Ginger, por exemplo, eu acho que um bom estilista consegue captar a essência da marca, melhorar e deixar com um viés mais apurado pela experiência. E foi isso que aconteceu na Ginger.
Já a Ellus foi uma escola para mim porque foi a primeira marca que eu trabalhei quando eu voltei da minha formação da Saint Martins em Londres.
Eu abri minha marca com a Casa de Criadores, e em 2016 eu fui convidado pela Adriana Bozon para fazer Ellus, após isso eu fui para o McQueen, de lá voltei e fiquei na Ginger, e agora eu estou focado nos meus projetos pessoais.
NTS: O que mais te empolga nesse reencontro com a Casa de Criadores?
A: A Casa de Criadores, para mim, abriu as portas para tudo. É onde eu realmente mostro o meu trabalho, meu portfólio, onde eu faço o que eu acredito. Eu posso me expressar sem me preocupar com o DNA das outras marcas, é onde eu respeito a minha marca e o meu nome. Eu faço, na medida do possível, o que eu acredito e o que eu acho possível fazer.
Eu amo fazer desfile, tenho tesão nisso! Eu acho que isso me deixa vivo e eu amo muito trabalhar com o que eu amo! Isso é muito bom, poder trabalhar com o que você ama. É tão gratificante o depois da entrega de um desfile que eu acho que só quem ama e faz entende mesmo.
E sobre o reencontro, já é a segunda edição que eu volto. Eu fiz a edição passada e agora é a segunda edição depois de cinco anos fora da CDC. Para mim está sendo muito bom porque eu estou voltando a mostrar o que realmente é o meu trabalho, depois de ter passado por todas essas marcas e vivências. E também há uma maturidade aí, eu fico muito grato ao André, a toda equipe da Casa de Criadores por acreditarem no meu trabalho e deixar eu fazer o que eu gosto.
Através da Casa de Criadores eu consigo me expressar como estilista mesmo, expressar a minha arte como estilista!

Casa Paganini
NOTTHESAMO: Você fala que "Raízes" é um espetáculo. O que você quer provocar no público com essa apresentação?
Casa Paganini: Quero provocar no público a ideia de uma moda minuciosa, feita com calma, respeitando os processos. Muitas das técnicas presentes são geracionais, passadas de mãe para filho, o que leva tempo para ser construído. Essa ideia de tempo, parte desde o fazer manual, até o caminhar dos modelos, à trilha sonora instrumental ao vivo. Spoiler, rs.
NTS: Como foi equilibrar processos manuais e sustentáveis com a ideia de criar algo grandioso, quase teatral?
CP: Confesso que até bem simples. Acho que os processos manuais em si já são teatrais desde sua base, o ato de tecer um vestido de renda filé por exemplo é,para mim, como uma poesia em movimento que leva semanas para ser escrita.
Quando digo que minha moda é teatral, não me refiro só ao espetáculo em si. Mas sim a todo o emaranhado de movimentos que antecedem a construção de uma peça. Às vezes brinco que o nosso trabalho aqui no ateliê é como uma orquestra. Os movimentos são sincronizados. Se um erra todos erram, se um acerta todos acertam.

NotEqual
NOTTHESAMO: A coleção parte do universo circense como resistência. Como vocês transformaram esse tema em peças que provocam e dialogam com o presente?
NotEqual: Nós pensamos a temática do circo para além da iconografia estética, mas também em sua presença sociocultural. Olhamos para os freak shows do início do século passado e em como as figuras/personagens eram construídas a partir de espetacularidade do “exótico”, e também em como essas comunidades de artistas itinerantes viviam em sua totalidade, depois que o picadeiro se desmonta. Olhamos muito para Benjamim de Oliveira e para a representatividade política de atuar como contra cultura.
Hoje, vemos o circo nas ruas, nos semáforos, retomando esse espaço público de forma performática — mas sem perder sua característica de guerrilha cultural.
Com isso, a roupa na passarela vai se apresentar com muitas camadas, às vezes em transparências enfatizando a construção. Em parceria com a Tear Têxtil, exploramos o denim estonado e gravado no laçasse em contraponto a exuberância de tecidos brocados e adamascados, remetendo a ilusão através da fantasia.
NTS: A coleção mistura teatralidade e política. Para vocês, qual o poder da moda como linguagem de resistência?
NE: Aqui na NotEqual, a roupa já vem pensada para que a corporeidade que o fruir lhe dê a forma, e não o sentido inverso.
Então, pensar no circo, que em seus figurinos subverte proporções clássicas criando novas silhuetas, nós criamos a coleção com o intuito de questionar padrões, já que a atuação política de uma marca preta se dá por nascença, pois se trata de um posicionamento contra um sistema imposto.

Studio Ellias Kaleb
NOTTHESAMO: O que inspirou vocês a olhar para os animais extintos e em risco de extinção como ponto de partida da coleção?
Studio Ellias Kaleb: Na nossa marca, sempre buscamos inspiração nos elementos da natureza: na estética das flores, das árvores, dos fungos, das aves. É algo que sempre me desperta e sempre me despertou para criar moda. E dessa vez eu decidi me inspirar nesses animais que realmente não existem mais e nos animais que estão sendo destruídos.
Há uma questão do poder humano que é mal direcionado, que, ao invés de cuidar da natureza, acaba destruindo e trazendo esse senso de urgência de que as coisas acabam. E eu quero aproveitar esse momento da moda, essa porta que a gente tem, para mostrar, falar e trazer esse imediatismo de contemplação de que as coisas acabam se a gente não cuida.
E que tudo na vida precisa de um cuidado, precisa de um asseio, precisa tratar com importância, até porque nós fazemos parte também. Nós somos um pouco de cada animal também, um pouco de cada bicho, de cada árvore, de cada planta. É como se o ser humano em si fosse uma compilação dos animais. Então, eu vejo que nós somos um reflexo da natureza e do universo.
Com isso, de forma subjetiva, a gente vai apresentar essas conexões através da performance, através da moda, aproveitando esse espaço de poder dialogar, de poder falar e de trazer essa lembrança da natureza que nos cerca - e que somos também parte desse grande elo.
NTS: A coleção fala sobre urgência e instinto. Como essas ideias se transformam em moda?
SEK: A coleção é como se fosse um grande caldeirão com uma mistura de elementos visuais, de elementos sensíveis, elementos invisíveis, daquilo que a gente não enxerga mas aquilo que a gente sente.
Alguns tipos de animais, por exemplo, conseguem enxergar cores que a gente não consegue, como as abelhas. Ou como as baleias que conseguem sentir muito mais do que a gente consegue.
Essa coleção não é para trazer uma resposta em si, mas é para trazer um respeito, uma apreciação de todo esse universo que nos cerca, tentando trazer uma conexão.

UMS458-LL
NOTTHESAMO: A UMS 458-LL trabalha sempre como um grande projeto contínuo. O que podemos esperar de novas camadas ou desdobramentos neste próximo capítulo?
UMS458-LL: Nessa nova coleção buscamos explorar novos materiais, texturas e cores. Traremos colaborações com artistas do airbrush e com isso buscando estreitar ainda mais a nossa relação entre moda/arte.
NTS: Qual foi a maior transformação pessoal ou criativa que aconteceu durante o desenvolvimento dessa nova coleção?
UMS: No desenvolvimento dessa coleção, revisitei alguns momentos da minha adolescência, como o período que morei no Nebraska por 1 ano em 2009, lugar/pessoas/experiências e de alguma forma misturei com memórias mais recentes.

NALIMO:
NOTTHESAMO: Qual sensação espera causar no público ao apresentar essa primeira coleção?
NALIMO: A Casa de Criadores é um espaço fundamental para a moda autoral e para vozes que desafiam padrões. Estar aqui é mais do que apresentar uma coleção. É afirmar que a moda pode ser política, ancestral e transformadora, um palco onde histórias como a minha e de tantas outras pessoas ganham visibilidade e força.
Quero que o público sinta que cada peça é mais do que roupa. É memória viva, é resistência. Espero provocar emoção, reflexão e orgulho, para que todos percebam que a floresta não é uma paisagem distante, mas um corpo coletivo que pulsa em nós. Que as pessoas saiam do desfile com a sensação de que vestir essa coleção é, também, um ato de luta, memória e de amor.
NTS: De onde vieram as principais inspirações para essa coleção?
N: Essa coleção nasceu do encontro com a história e o legado de Chico Mendes, da força das mulheres e filhos da floresta e da viagem que fiz à Reserva Extrativista que leva o nome dele, no Acre. Da família de Chico que carrega seu legado. Cada cor, textura e forma carrega a alma de lá. É uma coleção que se inspira no ativismo, na ancestralidade e na certeza de que a arte pode costurar futuro.
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