O espaço da Burberry no Hip Hop

Sep 9, 2025

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A trajetória que liga a Burberry ao hip-hop começa com três histórias distintas que se cruzam.

Em 1856, Thomas Burberry abre sua loja em Basingstoke e coloca a empresa no eixo da inovação têxtil britânica. A marca britânica nasceu como fornecedora de roupas funcionais, criadora da gabardine e dos trench coats usados em guerras e depois associados à aristocracia. Em 1879 surge a gabardine, tecido denso e respirável que vira base do Tielocken e, depois, do trench coat usado por oficiais na Primeira Guerra. Essa engenharia de produto cria um símbolo nacional exportável, com selo real e uma gramática visual única.

O famoso xadrez bege, preto e vermelho, lançado nos anos 1920 como forro interno, se tornaria um dos códigos visuais mais reconhecíveis do século. Durante décadas, ele significou tradição e pertencimento a uma elite que se via como guardiã de um estilo “clássico inglês”.

Enquanto isso, o hip-hop nasce no Bronx no começo dos anos 70 em festas de rua de DJs como Kool Herc, cuja gramática estética e semiótica alimentou linguagens visuais que, décadas depois, precisariam de códigos visuais para traduzir ascensão social e sucesso material.

O encontro entre o símbolo institucional britânico e a linguagem do hip-hop não foi inevitável, mas tornou-se plausível justamente porque o xadrez era visualmente inconfundível e, portanto, útil como índice de status em um gênero que fez da visibilidade uma moeda.

Nos anos 80 e 90, a cultura dos hooligans e dos casuals moldou um dos capítulos mais inesperados da moda britânica. Burberry, Stone Island, Aquascutum e outras marcas formavam um código de pertencimento, peças de luxo usadas por jovens de classe trabalhadora. Stone Island, Aquascutum e outras marcas participaram desse mesmo circuito, mas a Burberry ficou marcada como a que mais sofreu com a associação. No final dos anos 90 e início dos anos 2000, a massificação desse uso fez com que o check fosse até banido em pubs e casas noturnas por ser associado a violência de torcida.

Esse deslocamento é fundamental para entender a futura aproximação da Burberry com o rap britânico.

Enquanto isso, em Nova York, um outro movimento construía a gramática que conectaria luxo e hip-hop. No Harlem dos anos 80, Dapper Dan reconfigurava a construção de grifes como Gucci, Louis Vuitton e, ocasionalmente, Burberry, transformando-os em casacos, conjuntos e acessórios sob medida para rappers e atletas.

Sua loja era um laboratório, o luxo europeu, intocável para boa parte da juventude negra americana, possibilitou ampliar as possibilidades de uso, além de permitir o toque e a visualização dessa parte da população com roupas nichadas e de baixíssimo acesso.

Nos anos 2000 portanto, a adoção explícita da Burberry por artistas de R&B e rap articula essa genealogia a outros vetores.

Ja Rule em Always On Time utiliza um bucket da grife com o quadriculado apenas no lado interior da peça, porém, o toque foi justamente dobrar a aba e chamar mais atenção para o quadriculado do que para qualquer outra coisa.

Entre essa e outras aparições, esse movimento criou, por um lado, uma nova demanda direta e palpável por produtos Burberry em mercados antes pouco explorados e, por outro, um problema de saturação e falsificação que contribuiu para desgaste de prestígio em certos segmentos.

Christopher Bailey, que assumiu a direção criativa em 2001 e mais tarde a função de CEO, precisou lidar com essa saturação. Sua estratégia inicial foi defensiva, reduzindo a onipresença da grife e tentando recuperar o posicionamento institucional anterior.

Mas à medida que o tempo passava, ficou evidente que não havia como apagar a associação com a rua.

Em 2017, quando Stormzy lançou Gang Signs & Prayer e apareceu na primeira fila do desfile de setembro da Burberry, ainda sob direção de Bailey, ficou claro que todo o enxame de artistas e figuras do meio fez com que a organização interna da grife buscasse a relação com esse lado da conversa, ao invés de buscar o distanciamento. Em fevereiro de 2018, Skepta surgiu na última coleção de Bailey, consolidando a relação criada e negada durante todo esse tempo.

Anos depois, veríamos nomes como Aj Tracey, Central Cee e até mesmo rappers locais como Sainté usando a grife cotidianamente, um fator proveniente justamente desse momento da história.

A virada definitiva viria quando Riccardo Tisci assumiu a direção criativa em 2018. Conhecido por seu trabalho na Givenchy, onde aproximou a alta-costura do rap através da afinidade criada com Kanye West, Jay-Z e A$AP Rocky, Tisci trouxe a mesma lógica para a Burberry.

O arco dessa história mostra como símbolos podem mudar de mãos sem perder relevância. No caso, o luxo europeu, adotado por uma classe durante anos, foi o ponto primordial para os códigos de status que o hip-hop apropriou como narrativa de mobilidade e poder.

A música hoje é capaz de gerar uma legitimidade geracional, criando também a necessidade em conciliar esse envolvimento com exigências contemporâneas de transparência e responsabilidade.

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