O piso paulista de Mirthes Bernardes

Jun 16, 2025

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Mirthes dos Santos Pinto, conhecida artisticamente como Mirthes Bernardes, nasceu em Barretos, interior de São Paulo, em 1934. Sua formação foi multifacetada, mesclando pedagogia, serviço social, e uma ampla busca por conhecimento nas artes plásticas e design. Formou-se em Pedagogia e Serviço Social pela PUC-SP, mas sua inquietação intelectual a levou a aprofundar-se em diversas técnicas artísticas — cerâmica, escultura, pintura a óleo, esmalte sobre metais e trabalho com fibras.

Esse perfil multidisciplinar é essencial para entender sua atuação: não era apenas uma artista, mas uma profissional que via o ambiente urbano como uma tela e a arquitetura como um convite à experimentação estética e funcional.

Carreira e inserção no mundo da arquitetura

Na década de 1960, Mirthes trabalhou como desenhista de arquitetura na Secretaria de Obras da Prefeitura de São Paulo, período em que a cidade passava por um grande processo de modernização e crescimento acelerado, sobretudo sob a gestão de Jânio Quadros e posteriormente Faria Lima. Era um momento em que a arquitetura modernista paulistana buscava consolidar uma identidade própria, e a estética funcionalista encontrava espaço para dialogar com manifestações artísticas locais.

Porém, o ambiente profissional ainda era predominantemente masculino, e mulheres em cargos técnicos ou de criação no campo da arquitetura e urbanismo eram raras e pouco valorizadas. A atuação de Mirthes, portanto, já se destacava pela ousadia e pela capacidade de dialogar com os novos rumos da cidade.

O concurso e o nascimento do “Piso Paulista”

Em 1965, a Prefeitura de São Paulo, sob a gestão de Faria Lima, lançou um concurso para criar um revestimento de calçadas que pudesse ter identidade própria, refletindo a cultura e a geografia do estado. Havia uma demanda clara: criar um elemento urbano que não fosse apenas funcional, mas também representativo da cidade e do estado.

Mirthes, na época ainda servidora pública, fez um esboço inspirado nos mapas do Estado de São Paulo, utilizando formas geométricas que evocavam a malha urbana e os limites territoriais. Seu chefe logo percebeu a força do desenho e a encorajou a inscrevê-lo no concurso.

Entre outras propostas mais figurativas — como pés caminhando ou grãos de café, símbolos tradicionais do estado —, a simplicidade e a abstração geométrica do desenho de Mirthes foram premiadas. O padrão permitia uma reprodução modular, versátil, e profundamente simbólica, além de dialogar com a estética modernista da época.

A importância do Piso Paulista

Presente em dezenas de calçadas, ele torna-se uma linguagem visual reconhecida instantaneamente por moradores e visitantes, quase uma “marca registrada” da cidade. Ao unir funcionalidade e expressão estética, Mirthes inaugurou uma discussão sobre o papel da arte no espaço urbano. O piso não é apenas para caminhar — é para reconhecer a cidade, para integrar arte e cotidiano.

Curiosamente, apesar da onipresença do padrão, Mirthes nunca recebeu royalties ou ampla valorização institucional pela criação. Isso revela uma realidade triste de invisibilidade que muitas mulheres artistas e designers enfrentaram (e ainda enfrentam), especialmente quando atuam em espaços públicos e em profissões tradicionalmente masculinas.

Legado

Além do piso, Mirthes Bernardes manteve uma carreira plural, com exposições nacionais e internacionais, prêmios e trabalhos em diversas técnicas. Seu nome está registrado em coleções importantes e museus, mas é o “Piso Paulista” que permanece seu legado mais visível e acessível — mesmo que muitos desconheçam sua autoria.

Seu trabalho também foi referência para o design urbano brasileiro, inspirando debates sobre identidade, autoria e o papel das mulheres nas artes e arquitetura. Mirthes personifica a intersecção entre arte, arquitetura e cidadania.

No desafio de fazer São Paulo caminhar com identidade, Mirthes criou não só um padrão gráfico, mas um símbolo de resistência criativa e feminina numa cidade em constante transformação.

Editora e social mídia

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