Os sons das banlieues
As banlieues francesas surgiram como uma tentativa de solução urbana. No pós Segunda Guerra Mundial, a França enfrenta déficit habitacional, crescimento industrial acelerado e a necessidade de absorver uma grande massa de trabalhadores, muitos deles vindos das antigas colônias do Norte da África, da África Subsaariana e do Caribe. A resposta do Estado foi a construção dos grands ensembles, conjuntos habitacionais erguidos nos arredores das grandes cidades, principalmente Paris, Marselha e Lyon. Esses espaços eram pensados como infraestrutura funcional, prontos para exaurir qualquer criação de um território cultural. Com o passar das décadas, essa decisão moldou uma geografia social marcada por isolamento, precarização progressiva e distanciamento simbólico do centro urbano.
Esses bairros não são planejados como espaços de permanência, mas como soluções rápidas. Com o passar do tempo, a desindustrialização, o desemprego estrutural e o racismo institucional transformam essas áreas em zonas socialmente isoladas. A promessa de integração republicana não se concretiza. O resultado é uma juventude nascida francesa, mas tratada como estrangeira dentro do próprio país. A partir dos anos 60 e 70, as banlieues passam a concentrar populações racializadas, jovens e de baixa renda, enquanto o centro das cidades se reorganiza econômica e socialmente. O acesso desigual à educação, ao mercado de trabalho e aos espaços de poder cria um ambiente onde a identidade coletiva se constrói mais pela experiência compartilhada do que por qualquer projeto oficial de integração.

Musicalmente, as banlieues sempre funcionaram como espaços de circulação informal. Antes do rap, as banlieues escutavam aquilo que seus moradores traziam consigo. Rai argelino, chaabi marroquino, música gnawa, zouk caribenho, soul americano e chanson francesa conviviam nos mesmos apartamentos, festas familiares e cafés. O rádio e as fitas cassete funcionavam como meios de preservação cultural e, ao mesmo tempo, de adaptação ao novo território.
O rap entra nesse cenário no fim dos anos 80 com grupos como Suprême NTM, IAM e Ministère A.M.E.R. que articulam uma linguagem que descreve violência policial, racismo, desemprego e vigilância constante. Esse rap é confrontacional e explícito, e por isso enfrenta censura, processos judiciais e rejeição institucional. Ao mesmo tempo, se consolida como a principal forma de expressão musical das periferias urbanas francesas.

A partir dos anos 2000, o rap francês muda de estrutura. A internet, os estúdios caseiros e a queda de barreiras de entrada permitem que artistas lancem música sem mediação de gravadoras. É nesse contexto que surge JuL.
JuL nasce Julien Mari em 1990, em Marselha, e cresce em bairros populares da cidade. Antes da música, trabalha em empregos precários e passava por períodos de instabilidade financeira. Começa a lançar músicas de forma independente em 2013, utilizando beats simples, auto tune intenso e letras diretas sobre rotina, dinheiro, conflitos locais e sobrevivência. Seu primeiro grande sucesso, Dans ma paranoïa, alcança milhões de visualizações rapidamente.
Entre 2014 e 2023, JuL lança mais de 20 projetos, muitos deles alcançando certificações de ouro, platina e diamante na França. Ele se torna um dos artistas mais ouvidos do país, quebrando recordes de streaming. Seu modelo de produção é industrial, lança discos em ritmo constante, grava clipes nos próprios bairros e mantém uma relação direta com seu público. A música funciona como extensão da vida cotidiana em Marselha.

Enquanto isso, uma nova conexão começa a se formar entre França e Espanha. Nos últimos anos, a noção de banlieue se expande para além da França. A circulação cultural entre França e Espanha, especialmente entre Marselha, Paris, Barcelona e bairros periféricos de Madri, cria uma nova dinâmica sonora. Morad nasce em 1999, em L’ Hospitalet de Llobregat, na periferia de Barcelona, filho de imigrantes marroquinos. Cresce em um contexto urbano semelhante ao das banlieues francesas, alta densidade populacional, policiamento constante, desemprego e estigmatização social. Começa a lançar músicas em 2019, gravadas de forma caseira, com estética crua e narrativa direta.
Morad canta majoritariamente em espanhol, mas sua sonoridade e postura dialogam diretamente com o rap francês contemporâneo. Ele aborda conflitos com a polícia, vida de rua, amizades e dinheiro. Seus clipes são gravados nos bairros onde cresceu, sem cenografia elaborada. Em poucos anos, se tornou um dos artistas mais populares da Espanha, com milhões de ouvintes mensais e uma base de fãs espalhada pela Europa.

Beny Jr surge dentro desse mesmo circuito. Também de origem marroquina, atua como colaborador frequente de Morad e representa uma geração que não passa mais pelos filtros tradicionais da indústria. Suas músicas seguem uma lógica repetitiva, produção simples e narrativa direta. O foco está na identificação imediata com o público que compartilha experiências semelhantes.

Na França, Maes representa uma trajetória distinta, mas conectada. Nascido em Sevran, na região metropolitana de Paris, Maes começa a ganhar atenção no fim da década de 2010. Diferente de JuL, sua estética é mais próxima do rap tradicional, com narrativas estruturadas sobre ascensão social, criminalidade e tensões pessoais. Após passagens pelo sistema prisional, sua carreira cresce rapidamente, alcançando grandes números de venda e streaming.

O que se escuta hoje nas banlieues é resultado dessa acumulação histórica. Trap, drill, rap melódico, influências africanas contemporâneas e música árabe convivem no mesmo território. Os sons são produzidos localmente, distribuídos digitalmente e consumidos majoritariamente por jovens que reconhecem ali experiências comuns.
A música nas banlieues surgem como relato direto de um ambiente marcado por controle, exclusão e poucas alternativas de mobilidade social. JuL, Morad, Beny Jr e Maes são consequência direta de estruturas urbanas e sociais que produziram uma cena musical própria. Entender os sons das banlieues é entender que eles não nascem do isolamento cultural, mas de uma história longa de deslocamento, trabalho, exclusão e adaptação.
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