To Pimp a Butterfly é um clássico atemporal

Jun 17, 2025

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Entre seu segundo e terceiro álbum de estúdio (Good Kid, M.A.A.D City e To Pimp A Butterfly), Kendrick fez uma viagem à África do Sul em 2014 que mudou sua vida. Viajou pelo país e visitou locais históricos, como a cela de Nelson Mandela. Viu coisas que não o foram ensinadas. Essa passagem o fez descartar dois ou três álbuns inteiros, segundo seu engenheiro MixedByAli. Ele comenta que Lamar é como uma esponja, incorporou tudo que estava acontecendo na África e em sua vida para completar uma quebra-cabeça gigantesco.

Kendrick também resolveu apontar as raízes do problema, chegando ao ponto de como o Estado, a indústria de entretenimento e o modo de vida americano contribuem para a violência e o racismo contra ele. Por mais que esses questionamentos tenham ocorridos em 2015, eles também podem e devem ser feitos em dias atuais.

A vontade era de fazer música que refletisse os sons de sua criação em Compton. Ouvindo Sly Stone, Donald Byrd e Miles Davis, TPAB surgiu — incorporando jazz, funk, soul, poesia falada e claro, hip-hop. "Eu queria fazer um álbum assim no meu álbum de estreia, mas não tinha confiança suficiente", disse Lamar.

O álbum tornou-se uma interpretação dos problemas do negro na América, discutindo conceitos de conflito de identidade, escravidão mental, suicídio, trauma transgeracional, apartheid, Tio Sam, supremacia branca, etc. “O tema do álbum estava se formando ao longo do tempo e muitos dos problemas sociais que ele apresenta no álbum eram inevitáveis para ele, sendo um homem negro na América.”, disse Thundercat em uma entrevista. O amplamente aclamado projeto recebeu 11 indicações ao GRAMMY, incluindo Melhor Álbum de Rap e Álbum do Ano.

“O título capturou todo o conceito do álbum. [Eu queria] desconstruir a ideia de ser explorado na indústria, na comunidade e de todo o conhecimento que você pensava que tinha, para então descobrir uma nova vida e querer compartilhá-la.”

Pela capa, é possível ver as consequências de uma revolução negra no quintal da Casa Branca. O álbum é uma trilha sonora para a nova luta enfrentada pelas pessoas de cor. Corajoso, Kendrick é honesto e não tem desculpas para falar o que sente. É um produto de um sistema que falhou.

“Essa música é a capa do álbum”, comenta Sounwave, que co-produziu com Thundercat a primeira faixa — “Wesley's Theory”. A música surgiu de uma batida em particular que Flying Lotus estava tocando enquanto estavam em turnê com Kanye West. "Você não sabe de nada sobre isso. Isso é funk de verdade. Você não vai rimar sobre isso." Foi aí que Kendrick viu como um desafio.

Numa gama de personagens, como velhos amigos, um menino, um homem sem-teto e Lucy, Kendrick conta sua história. A América e seu governo são personificados no Tio Sam. Uma conversa entre Tupac e Lamar encerra o álbum. Cultura negra, racismo, dor negra, depressão, identidade, espiritualidade, fama e imagem são temas discutidos do início ao fim.

Dois poemas traçam o conceito principal do álbum e dão continuidade à narrativa. O poema do qual o álbum tira seu nome, conta a história de uma lagarta que se torna prisioneira de seu ambiente. A lagarta ressente a borboleta, que representa toda a beleza e potencial dentro de si mesma. A borboleta também representa a mudança e transformação. À medida que a lagarta está presa dentro das paredes institucionalizadas do casulo, ela começa a aprender e se liberta da luta eterna. Livre, ela lança luz sobre situações que a lagarta nunca considerou. “Embora a borboleta e a lagarta sejam completamente diferentes, elas são uma e a mesma coisa.”

O outro poema, revelado aos poucos ao longo do álbum, conta a luta pessoal de Kendrick com tudo que está lidando: dor, depressão, guerra espiritual, fama.

"Lembro que você estava em conflito Usando sua influência — às vezes, eu fazia o mesmo Abusando do meu poder, cheio de ressentimento Ressentimento que se transformou em uma depressão profunda"

“Eu tive que encontrar George Clinton no mato, cara. Ele estava em algum lugar do Sul e tive que voar até ele. Chegamos ao estúdio e nos conectamos imediatamente. Trabalhar com ele levou minha arte para outro nível e isso me incentivou a fazer mais músicas assim para o álbum.” disse Kendrick — "Wesley's Theory" e "For Free?" são as faixas de abertura que servem como uma introdução para o álbum. A primeira, faz alusão a Wesley Snipes, ator que foi preso por sonegação de impostos; além disso, conta com sample de “Every Nigger Is a Star”, do cantor jamaicano Boris Gardiner. Com Thundercat e George Clinton, a faixa antecipa o arco do álbum: ilusão do sucesso, ego e crise.

A segunda, referenciando bebop de Charles Mingus, é uma declaração. Kendrick responde a uma mulher — alegoria dos EUA — que o trata como propriedade, assim como o país consome o corpo negro sem pagar: “This dick ain't free!”.

Elas dão um bom panorama do que o disco se trata, mas a história ou conceito se concretiza em “King Kunta”, com o poema pessoal de Kendrick. Kunta Kinte, símbolo da luta contra a escravidão, é a referência central. Com funk que traz lembranças de James Brown, tem-se o baixo marcante de Thundercat. “Aquela batida forte com tambores e baixo foi criada por mim e Sounwave assistindo "Punho da Estrela do Norte" enquanto comíamos Yoshinoya”, comenta o produtor. Aqui, Kendrick se coloca como um rei que o sistema tenta controlar — um hino de poder e consciência racial.

Em “Institutionalized”, a mente permanece “institucionalizada” mesmo fora da prisão, uma crítica ao condicionamento social. Numa mistura de jazz-soul com boom bap, Kendrick narra como seus amigos de Compton reagem ao ambiente luxuoso de Hollywood. “These Walls” é uma das composições mais sofisticadas do álbum, combinando camadas de identidade espiritual, sexualidade, culpa e crítica social em versos repletos de metáforas visuais e arranjos sofisticados. A produção e as letras trabalham em conjunto para criar uma narrativa poderosa sobre limites físicos, mentais, sociais e íntimos.

“A sessão de "u" foi muito desconfortável. Ele escreveu isso na cabine. O microfone estava ligado e eu podia ouvi-lo indo e vindo e com vocais super zangados. Então ele começava a gravar com as luzes apagadas e era super emocional. Nunca perguntei o que o afetou naquele dia.”, disse MixedByAli em uma entrevista. Para Kendrick, foi realmente desconfortável, pois ele estava lidando com seus próprios problemas. O grande dilema para ele era estar de volta em casa enviando uma ‘mensagem de salvação’ ou na estrada, rimando.

Produzida por Pharrell e Sounwave, “Alright” se tornou hino do Black Lives Matter. “Aquele beat… Acho que o Pharrell nem ia tocar pra gente, mas um dos amigos próximos dele — que também é nosso amigo, e quem armou a sessão — falou: “Pharrell, você precisa mostrar esse beat pra eles.” E ele tocou pro Kendrick, e o beat estava lá, mas não estava totalmente lá, em termos de vibe. Então esse foi meu trabalho: adicionar as camadas de bateria, chamar o Terrace [Martin] pra mandar uns riffs de saxofone e deixar com a nossa cara. É uma música completamente diferente da original... você entenderia se pudesse comparar, mas isso provavelmente nunca vai acontecer.”. Ao ser produzida, não esperavam que a música fosse de protesto, mas tinham a certeza de que iam fazer algo, porque o momento em que viveram tornou a música perfeita.

Lucy — diminutivo carinhoso de Lúcifer — conversa com Kendrick em “For Sale? (Interlude)” e personifica a indústria, a fama e a tentação. Lamar fala sobre o diabo, sobre vender a alma e como está lutando contra isso. A origem espiritual do álbum se dá em “Momma”, onde Kendrick destaca referências a Compton e à África. Produzida por Knxwledge e Taz Arnold, com vocais de fundo de Lalah Hathaway, a música combina elementos de R&B, funk e hip-hop. Kendrick lista tudo o que “sabe”, mas termina reconhecendo que “não julgava saber tudo até o dia em que voltei para casa”.

“It’s been A-1 since day one, you niggas boo boo” — a crítica à falsa militância do rap mainstream aparece em “Hood Politics”, onde a política de rua é comparada à política de Washington. Kendrick demonstra sua habilidade de contar histórias em "How Much A Dollar Cost", uma música na qual ele interage com um mendigo que no final se revela ser Deus. A música termina enquanto Ronald Isley canta uma oração de arrependimento, pedindo perdão a Deus. É neste ponto que Kendrick se liberta de Lucy & Tio Sam. (Obama afirmou que essa era sua música favorita de 2015).

“O Thundercat criou a base da faixa, com certeza.”, comenta Sounwave sobre “Complexion”. No espírito de J Dilla, a ideia era fazer uma música que refletisse todas as tonalidades da pele das mulheres negras — conceito que veio da África do Sul, quando Kendrick visitou o país. O que tornou a faixa tão especial foi trazer Rapsody, uma perspectiva feminina sobre a tonalidade de pele: sentir-se insegura e ao mesmo tempo ter gratidão por sua tonalidade. A crítica à América pelas percepções e estereótipos frequentemente atribuídos à cultura negra continua em “Blacker the Berry”. A frase “Sou o maior hipócrita de 2015” acompanha cada verso da música, sem especificar o motivo. Kendrick quer que o ouvinte se sinta desconfortável.

Indo além da crítica social, em “You Ain’t Gotta Lie (Momma Said)”, Kendrick assume uma postura maternal, falando consigo mesmo. É uma música composta por coisas que sua mãe já disse para você na vida. As letras e seus significados vêm diretamente da vida real. Num contraponto a “u”, a penúltima faixa — “i” — é um testemunho do amor que podemos ter por nós mesmos. “I love myself”. A música é um final triunfante para se encontrar em um mundo que pode parecer estar contra você. "Passei por muita coisa. Julgamento, tribulação, mas eu conheço a Deus".

Por fim, para compreender a importância de TPAB, basta ouvir a última faixa. “Mortal Man” traz o poema completo. As faixas são “juntadas” e você entende, ao pensar profundamente, o significado de tudo. Aqui, Kendrick recita o poema “Another N*gga” para Tupac. “Quando Tupac estava aqui e o vi como um garoto de 9 anos, acho que foi o nascimento do que estou fazendo hoje. Desde o momento em que ele se foi, sabia que as coisas que ele estava dizendo eventualmente seriam transmitidas por outra pessoa. Mas eu era jovem demais para saber que seria eu quem faria isso.”, comenta Lamar em uma entrevista.

Tupac é seu ídolo, que apenas por um dia de diferença, não compartilha o aniversário com o rapper. A entrevista, tido como algo inédito, foi retirada por um fã de uma rádio sueca em 1994. Quem fez as “perguntas” foi o próprio Kendrick, sem engenheiro, sem nada. No seu computador, editando, já sabendo o que queria dizer.

Kendrick se coloca como um porta-voz da injustiça para a comunidade preta, mesmo reiterando que ele é apenas um homem mortal, que também cometerá erros. "Você me seguirá se eu errar? Me amará se eu cair?", cita ele. Em sua conversa com 2pac, reflete sobre a situação dos pretos nos EUA, mas que também se encaixam em outros países e épocas.

Após um processo de dois anos, o álbum foi finalizado. Kendrick sabia que precisava dos melhores ao seu lado. “Quis fazer esse disco denso. Não queria fazer algo para tocar no rádio. Nem algo para o carro. Isso vem do meu amor por música e do meu conhecimento sobre como as pessoas se conectam com um álbum.”

Em TPAB, Kendrick enfrente suas próprias inseguranças, mas de uma maneira em que, quem ouve, também pode se identificar. Ele se aceita como líder, valoriza isso e não foge da sua responsabilidade. A mudança assusta e ele deixa claro isso através do álbum. O álbum é uma obra de arte — não fornece respostas, mas contribui para a discussão que se deve ter diariamente sobre raça.

“Quero que você possa andar pela rua, sentar num ponto de ônibus e ficar escutando essas músicas repetidamente. E quero que você durma ouvindo essas faixas no fone de ouvido, porque o que acontece é que você começa a entender mais com o tempo — ao longo da semana, do mês, do ano. Daqui a dez anos, você ainda vai encontrar novas joias ali dentro. E esse foi, com certeza, o objetivo que eu queria alcançar”. Atemporal, sua importância é fundamental.

“Eu me lembro que você estava em conflito

Usando indevidamente sua influência

Às vezes eu fazia o mesmo

Abusando do meu poder, cheio de ressentimento

Ressentimento que se transformou em uma depressão profunda

Me encontrei gritando no quarto de hotel

Eu não queria me autodestruir

Os males de Lucy estavam ao meu redor

Então eu corri para obter respostas

Até eu chegar em casa

Mas isso não impediu a culpa de sobrevivente

Indo e voltando tentando me convencer das listras que ganhei

Ou talvez como a A-1 a minha fundação foi

Mas enquanto meus entes queridos estavam lutando uma guerra contínua na cidade

Eu estava entrando em uma nova

Uma guerra baseada no apartheid e na discriminação

Me fez querer voltar para a cidade e contar aos manos o que eu aprendi

A palavra era respeito

Só porque você vestiu uma cor de gangue diferente da minha

Não significa que eu não possa o respeitar como um homem negro

Esquecendo toda a dor e mágoa que causamos uns aos outros nessas ruas

Se eu te respeitar, nós nos unificamos e impedimos que o inimigo nos mate

Mas eu não sei, eu não sou um homem mortal

Talvez eu seja só mais um negro”

Editora e social mídia

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