A jornada do herói inversa em Scarface
A narrativa de Scarface (1983), dirigida por Brian De Palma e roteirizada por Oliver Stone, parece em primeiro olhar, apenas a história de um imigrante cubano que ascende no mundo do crime, quando na verdade, é um exercício de inversão da lógica clássica da jornada do herói, conceito consagrado por Joseph Campbell em O Herói de Mil Faces.
Em vez de atravessar provações, conquistar sabedoria e retornar para compartilhar conhecimento com sua comunidade, Tony Montana percorre um caminho que leva da marginalidade à glória momentânea e, inevitavelmente, à destruição. É a jornada do herói invertida, onde cada etapa da ascensão representa também um passo em direção à queda.
O contexto histórico em que o filme foi produzido ajuda a entender essa inversão. A década de 1980 nos Estados Unidos foi marcada pelo endurecimento das políticas de imigração após o êxodo de Mariel, em 1980, quando milhares de cubanos chegaram a Miami.
Ao mesmo tempo, a cidade se transformava em capital do tráfico de cocaína, com cartéis colombianos dominando a rota.
O governo Reagan promoveu um discurso de prosperidade, mas também um ambiente de desigualdade crescente e de consumo exacerbado. Oliver Stone, viciado em cocaína durante a escrita do roteiro, trouxe para o texto esse espírito de excesso, construindo uma narrativa onde o vício e a violência não são apenas temas, mas forças estruturais. Nesse cenário, Tony Montana é desenhado como figura alegórica do sonho americano distorcido.

Se na jornada clássica o herói parte de um mundo comum em direção ao extraordinário, Tony já começa deslocado. Um imigrante pobre, recém-chegado a Miami, sonhando com riqueza e poder, mas sem qualquer ideal de transformação e principalmente de forma coletiva. Seu chamado à aventura não é salvar ninguém ou trazer algo à comunidade, é conquistar para si o que acredita ser devido.
O mundo que o rejeita por sua origem e pobreza é, para Tony, um obstáculo que só pode ser superado pela violência e ascensão individual, ainda que para isso seja preciso deixar pessoas pelo caminho. O restaurante em que trabalha como lavador de pratos representa esse “mundo comum” que ele repudia e do qual precisa escapar a qualquer custo.
Na jornada do herói, a figura do mentor guia e ajuda o protagonista a atravessar os desafios.
Tony, no entanto, não tem mentores no sentido positivo. Frank Lopez, o chefão do tráfico que o introduz ao poder, é rapidamente descartado, assassinado em nome da ambição. Cada relação que deveria sustentar sua ascensão funciona, na verdade, como prenúncio de isolamento.

Nos mitos heróicos, as batalhas moldam a consciência do herói, ampliam seu entendimento do mundo e de si mesmo. Para Tony, cada inimigo derrotado apenas reforça sua lógica de brutalidade, as provações que enfrenta também não têm caráter de aprendizado.
O massacre na boate, o assassinato de Lopez, o confronto com Sosa e seus homens não ensinam nada, apenas alimentam a ilusão de que o poder absoluto pode ser mantido pela força. A recompensa, nesse arco invertido, é uma riqueza sem propósito e um trono de areia, A mansão em Miami, repleta de mármore, dourados e o famoso globo com a inscrição “The world is yours”, é símbolo dessa conquista vazia. A própria estrutura da casa, longe de tudo, expansiva, com muitas portas, escadas, representa o castelo construído pelo herói da história, mas de uma forma solitária.O elemento mais revelador da anti-jornada está na implosão das relações pessoais. Manny, seu irmão de vida, representa a lealdade e a parceria, mas é morto num acesso de paranoia. Elvira, que poderia ser companheira, transforma-se em espectro de desilusão, consumida pelas drogas e pelo tédio, símbolo de um casamento estéril. Gina, a irmã, é alvo de uma obsessão incestuosa que revela não só o ciúme doentio de Tony, mas também a incapacidade de aceitar qualquer desejo ou autonomia que não os seus. Enquanto o herói clássico constrói vínculos e alianças, Tony dissolve todos ao seu redor, tornando-se figura solitária antes mesmo da morte.
Essa inversão também se expressa na forma como o filme dialoga com o mito americano. Se a narrativa fundadora dos Estados Unidos é a de mobilidade social pelo trabalho duro, Scarface mostra a versão corrompida do imigrante que, em vez de ascender pela disciplina, conquista espaço pela violência e pelo tráfico. Tony Montana não é o self-made man admirado, mas sua caricatura extrema. Sua trajetória ecoa a estrutura da jornada do herói, mas cada passo é dado na direção contrária, o chamado é pela ganância, os aliados são descartados, a recompensa é envenenada, o retorno não existe.
Scarface é uma parábola sobre a inversão do mito heróico. Tony Montana percorre todos os estágios, mas não alcança iluminação nem legado.
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