As engrenagens invisíveis do rap
Spike Lee construiu sua carreira expondo camadas que geralmente permanecem fora do quadro. Seja ao filmar as tensões raciais no Brooklyn em Do the Right Thing ou ao mostrar a radicalização da juventude negra em Malcolm X, seu cinema sempre buscou revelar quem, de fato, move a história.
O novo projeto do diretor, Highest 2 Lowest, que olha para bastidores do rap, se insere nessa mesma tradição, lembrando que a cultura não é feita apenas por quem está no palco. O espetáculo depende de engrenagens invisíveis, figuras que moldam trajetórias, criam sistemas de distribuição, definem visuais e estabelecem as regras de um jogo que muitos acreditam dominar, mas poucos realmente controlam.
Essa lente permite revisitar o rap como uma arquitetura cultural construída por múltiplas mãos. O palco está na frente, mas a estrutura que o sustenta é feita por executivos, designers, produtores e estrategistas que raramente recebem o mesmo reconhecimento que os astros. Figuras como Ghazi Shami, Steven Victor e Virgil Abloh ajudam a compreender esse circuito.
Cada um deles opera em um campo distinto, tecnologia e distribuição, gestão e estratégia de carreira, estética e construção imagética, mas todos compartilham a mesma função de dar forma ao que seria apenas potência dispersa.
Ghazi Shami talvez seja o caso mais emblemático dessa transição de bastidores para centro da engrenagem. Nascido em San Francisco, filho de imigrantes palestinos, cresceu entre música e tecnologia, duas áreas que a princípio parecem paralelas, mas que em sua trajetória se fundiram. Trabalhou como engenheiro de som em estúdios locais, mas também em empresas de tecnologia como Sun Microsystems. Esse hibridismo foi a base para criar, em 2010, a Empire, uma distribuidora digital que alterou de maneira estrutural a lógica da música independente.

Ao contrário das majors, que exigiam contratos longos e direitos perpétuos, a Empire oferecia acordos flexíveis, transparência de royalties e, sobretudo, agilidade. Em uma era em que a viralidade no YouTube ou no SoundCloud podia transformar um desconhecido em fenômeno global em questão de dias, Shami entendeu que a velocidade era mais valiosa do que a burocracia. Foi assim que artistas como Kendrick Lamar no início de carreira, Young Dolph, XXXTentacion e Rod Wave encontraram na Empire uma plataforma para estabelecerem seus nomes.
Se Ghazi representa a estrutura invisível, Steven Victor encarna a figura do estrategista. Nascido no Brooklyn em 1980, formou-se no Morehouse College, mas foi na Interscope Records que iniciou a ascensão que o levaria a ser um dos executivos mais influentes do rap contemporâneo. Primeiro como assistente de publicidade, depois como A&R, Victor aprendeu a equilibrar a lógica corporativa das majors com a sensibilidade necessária para identificar talentos e cultivá-los. Seu nome está ligado principalmente a Pusha T, que ele gerenciou com atenção minuciosa, e Pop Smoke, cuja ascensão meteórica no drill nova-iorquino teve em Victor um dos arquitetos principais.
Em 2016 fundou a Victor Victor Worldwide, um selo que funcionava como espaço de autonomia dentro de grandes estruturas, mas ao mesmo tempo assumiu cargos de peso na Universal e na Def Jam. Sua habilidade foi justamente habitar duas dimensões ao mesmo tempo, dar suporte ao artista no cotidiano, mas também negociar acordos e estratégias de longo prazo em mesas de diretoria.

O caso de Virgil Abloh já opera em outro nível. Diferente de Shami e Victor, que atuam em campos de infraestrutura e gestão, Abloh criou uma gramática visual que deu rosto ao rap contemporâneo. Estudado como arquiteto e engenheiro civil, ele se tornou globalmente conhecido pela Off-White e, depois, por assumir a direção criativa da Louis Vuitton Menswear em 2018.
Mas sua função na cultura do rap começou muito antes, nos anos em que atuava como braço direito de Kanye West, elaborando cenários de turnês, capas de discos e colaborações que expandiram os limites da estética musical. Para Abloh, o design era uma linguagem que permitia remixar o lado cultural, transformando símbolos banais em arte e arte em produto de consumo. Sua lógica de apropriação e recontextualização foi aplicada a tênis, capas, clipes e desfiles, criando uma ponte entre moda e o que era criado no cotidiano da rua.

Mas o backstage do rap é maior do que esses três nomes. Anthony “Top Dawg” Tiffith montou a TDE como uma fortaleza de autonomia criativa em Los Angeles, garantindo a Kendrick Lamar e SZA carreiras estáveis dentro e fora do mainstream. Lyor Cohen, figura polêmica e controversa, levou a Def Jam a outro patamar nos anos 90 e depois migrou para o YouTube Music, alterando a forma como o rap circula no digital.
Kevin “Coach K” Lee e Pierre “P” Thomas, da Quality Control, criaram uma estrutura empresarial que moldou a ascensão de Migos e Lil Baby em Atlanta, entendendo antes de muitos a força do streaming e do trap como um quadro em branco para transformar seus artistas através do desenvolvimento de suas imagens.
Esses nomes não aparecem em capas de revista com frequência, mas formam o alicerce de uma cultura que não para de se expandir. Se o rap é hoje a maior linguagem musical do planeta, é porque houve quem cuidasse da engenharia por trás do palco, sistemas de distribuição, contratos adaptados, selos independentes com lógica global, e designers que transformaram estética de rua em passarela.
No Brasil, a engrenagem invisível também foi essencial para sustentar o crescimento do rap e de outras vertentes da música periférica. A trajetória dos Racionais MC’s, por exemplo, só foi possível porque havia um cuidado estrutural que ia além dos microfones. Eliane Dias, advogada e empresária, foi peça central nesse processo. Atuando na gestão dos Racionais e de outros artistas da cena, ela conseguiu estabelecer bases sólidas para que o grupo mantivesse sua autonomia em um mercado historicamente hostil à música negra.

Seu trabalho garantiu contratos mais justos, circulação internacional e um cuidado administrativo que se tornaria referência. Em paralelo, nomes como KondZilla construíram plataformas que levaram o funk a outro patamar, transformando videoclipes em ferramenta de alcance global. São exemplos de como a lógica do bastidor também é decisiva na música brasileira, garantindo que a potência das ruas pudesse se projetar para fora dos limites locais.
No Brasil, essa engrenagem também foi essencial. Ao falar de Racionais MC’s, por exemplo, temos que lembrar de Eliane Dias, advogada e empresária, peça central em estabelecer bases sólidas para que o grupo mantivesse sua autonomia em um mercado historicamente hostil à música negra.
Mas há uma questão que permanece em aberto. Se essas figuras conseguiram alterar estruturas e estéticas, o quanto desse movimento foi revertido em benefício coletivo? Ghazi construiu uma empresa que multiplicou oportunidades, mas ainda se discute se os contratos digitais são realmente justos a longo prazo.
Steven Victor ajudou a transformar Pop Smoke em símbolo global, mas também precisou lidar com a fragilidade de um sistema que não conseguiu proteger o artista de um destino trágico. Virgil Abloh, celebrado por unir mundos, morreu aos 41 anos, deixando a sensação de que parte de sua obra foi interrompida antes de alcançar toda a potência que poderia.
O bastidor, portanto, é um espaço aberto a contradições, onde as mesmas mãos que constroem carreiras precisam constantemente negociar com um mercado que extrai mais rápido do que devolve. O filme de Spike Lee funciona, então, como provocação. Não se mantém somente em mostrar o espaço atrás da cortina, mas de entender como ambos espaços estão interligados em um mesmo processo cultural.
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