Panteras Negras: As mulheres do partido

17 de dez. de 2025

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Quando se fala sobre o Partido dos Panteras Negras, a memória coletiva tende a fixar as imagens masculinas, as armas, as patrulhas de autodefesa e a figura de Huey Newton erguer o rifle diante da câmera. Essa imagem é forte, mas ela esconde a estrutura real que sustentou o partido, porque a maior parte do trabalho político, comunitário e organizacional foi feita por mulheres que raramente aparecem nos registros populares. A história do partido só existe porque existiram Angela Davis, Elaine Brown, Kathleen Cleaver, Assata Shakur, Ericka Huggins, Tarika Lewis, Safiya Bukhari e centenas de outras que transformaram uma organização inicialmente centrada em autodefesa armada em um movimento social amplo, com projetos educacionais, nutricionais, de saúde e de alfabetização distribuídos pelos Estados Unidos. Entender o papel das mulheres é entender o que de fato manteve o partido vivo durante as perseguições, infiltrações e ações sistemáticas do FBI.

Nos anos 60, o movimento dos direitos civis já tinha atravessado uma década de embates, e a desilusão com as táticas de integração e pacifismo crescia entre jovens negros urbanos. O assassinato de Malcolm X em 1965, as revoltas em Watts, Detroit e Newark, a violência policial constante e a concentração de pobreza em guetos construídos por políticas municipais transformaram o cenário político. Quando os Panteras surgem oficialmente em 1966 em Oakland, a proposta inicial é direta, vigiar ações policiais, registrar abusos e criar um mecanismo defensivo contra assassinatos cometidos por agentes do Estado. Porém, o partido se expande rapidamente e o crescimento cria uma demanda organizativa que apenas autodefesa não respondia.

Kathleen Cleaver se torna a primeira mulher a ocupar um cargo de grande visibilidade no partido, responsável pela comunicação e pela articulação nacional. Ela transforma os eventos, discursos e publicações dos Panteras em algo capaz de dialogar com universidades, sindicatos, comunidades e grupos internacionais. Não era apenas uma porta-voz, era quem organizava a estrutura discursiva que manteve o partido coerente durante os momentos de maior tensão. Ao mesmo tempo, Tarika Lewis se tornava a primeira mulher a integrar formalmente as fileiras armadas, rompendo uma barreira que até então mantinha a imagem militarizada exclusivamente masculina. Sua atuação desmonta a ideia de que o combate simbólico ou literal era reservado aos homens, e a partir dela o partido vê centenas de mulheres ocupando posições em patrulhas, segurança e instrução política.

O crescimento dos programas comunitários também nasce da atuação feminina. Em Los Angeles, Chicago, Nova York e Oakland, mulheres foram responsáveis pela criação e manutenção dos Free Breakfast Programs que serviam refeições para milhares de crianças antes da escola

Ericka Huggins, que passou anos presa e ainda assim continuou dirigindo projetos educacionais e organizando cursos dentro e fora das prisões, é um dos nomes centrais dessa estrutura. Ela coordenou a Escola Intercomunal de Oakland, um experimento educacional que reunia crianças de diferentes idades e introduzia história, política, nutrição e saúde de forma integrada, oferecendo uma educação que o Estado jamais implementaria em bairros negros.

Assata Shakur, antes de se tornar o símbolo mais reconhecido da repressão do FBI e da COINTELPRO, atuou nos escritórios de Nova York e depois Nova Jersey organizando grupos de estudo, alfabetização política e apoio jurídico para vítimas de violência policial. Sua trajetória evidencia o motivo pelo qual o FBI classificava as mulheres como “agentes de radicalização”. A lógica estatal sempre tratou a mulher negra como alvo secundário, mas as investigações internas do governo identificaram que elas eram responsáveis por manter o partido funcionando mesmo quando os homens eram presos, mortos ou exilados. Por isso, nos documentos da COINTELPRO, aparece repetidas vezes a preocupação com “female leadership” que o FBI considerava mais difícil de neutralizar porque não se encaixava nas narrativas tradicionais de militância perigosa.

A repressão intensificada a partir de 1968 reorganizou o partido. Muitos homens são presos ou mortos, e o vácuo organizacional poderia ter desestruturado completamente o movimento. O que ocorre é o oposto, mulheres passam a ocupar cerca de dois terços das posições internas, dirigindo escritórios, cuidando de logística, coordenando os jornais The Black Panther, organizando debates políticos e garantindo que os programas de saúde e nutrição continuassem funcionando. A imagem pública do partido permanece masculina, mas a realidade operacional passa a ser feminina.

Em 1974, essa configuração chega ao seu ponto mais alto quando Elaine Brown assume a presidência do Partido dos Panteras Negras, tornando-se a primeira mulher a ocupar o cargo máximo. Ela reorganiza o partido administrativamente, amplia relações internacionais, fortalece programas educacionais e tenta estabilizar uma organização que já havia perdido parte de seu núcleo fundador para a repressão. Sua gestão é frequentemente apagada porque ela confronta diretamente o machismo estrutural presente tanto na sociedade quanto dentro do movimento. Em suas próprias palavras, não era possível dirigir um partido revolucionário com homens que reproduziam dentro dele as mesmas lógicas patriarcais que o movimento dizia combater. Sua liderança representa o ponto máximo da atuação feminina, mas também revela os limites internos que elas enfrentaram diariamente.

O legado das mulheres Panteras não está apenas nos nomes conhecidos, mas na estrutura que mantinha os programas funcionando. Eram mulheres que acordavam antes do amanhecer para montar cozinhas comunitárias, que passavam noites inteiras traduzindo textos políticos para aulas da manhã seguinte, que cuidavam dos filhos de militantes presos, que organizavam linhas de comunicação durante operações policiais, que seguravam escritórios ameaçados por bombardeios e que treinavam novas integrantes em formação política. Era trabalho físico, intelectual e emocional contínuo, sustentado por uma convicção que a repressão estatal não conseguiu destruir.

O Estado americano tratou essas mulheres da mesma forma que tratou o movimento como um todo, como uma ameaça estrutural. Uma mulher negra politizada, capaz de organizar redes comunitárias e sustentar programas sociais independentes, representava uma ruptura direta com o projeto histórico de desumanização que estruturava os guetos urbanos. Por isso, muitas delas foram presas sob acusações forjadas, monitoradas em tempo integral, tiveram suas famílias destruídas e foram submetidas a campanhas de difamação sistemáticas. Mesmo assim, boa parte continuou atuando em projetos educacionais, redes de apoio mútuo e investigações sobre violência policial muito após o declínio do partido.

Sem elas, não teria existido estrutura comunitária, organização política, continuidade prática nem sustentação durante os anos mais duros da repressão. Foram elas que desviaram o foco do partido de um imaginário exclusivamente armado para uma construção social ampla que desafiava diretamente o abandono estatal. A dimensão política da atuação feminina não cabe nas imagens que se popularizaram sobre os Panteras, porque essas imagens foram moldadas pela mídia e pela repressão para apagar a verdadeira potência organizativa que elas representavam.

Compreender o Partido dos Panteras Negras a partir das mulheres é compreender que o movimento partiu da criação de alternativas concretas de sobrevivência para a população negra urbana. É entender que não existiria rede comunitária sem o trabalho delas, não existiria alfabetização política, não existiria estrutura educacional e não existiria continuidade do partido após sua fase mais dura. A história do movimento só se sustenta porque essas mulheres reconstruíram diariamente aquilo que o Estado tentava destruir, e é nesse ponto que se revela o verdadeiro alcance da atuação feminina dentro da luta negra dos Estados Unidos.