As esquinas da vida de Lô Borges.

4 de nov. de 2025

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Salomão Borges Filho, o Lô, nasceu em Belo Horizonte em 1952 e cresceu ouvindo uma mistura que definia uma geração mineira prestes a se abrir para o mundo. O rádio ainda era o principal mediador de descoberta e, na mesma sequência em que tocavam sambas e canções de rádio, vinham os Beatles, as bandas inglesas e os discos importados que chegavam por amigos de amigos. Essa convivência entre o regional e o estrangeiro formou o eixo da sua criação: a possibilidade de ser de Minas e do mundo ao mesmo tempo.

Desde cedo, a música era uma extensão natural da casa. O irmão mais velho, Márcio Borges, escrevia letras e poemas, e essa parceria familiar se tornaria o núcleo criativo de um dos momentos mais importantes da música brasileira. Em 1969, Lô conhece Milton Nascimento, então um artista em ascensão que já representava a ponte entre o interior e o Brasil urbano, e o encontro entre os dois altera o curso de toda uma cena. Milton trazia a densidade e a espiritualidade. Lô, a juventude e o experimentalismo. A partir desse encontro nasce o Clube da Esquina, não como grupo formal, mas como um espaço de convergência.

Na virada dos anos 1970, Belo Horizonte era uma cidade em transformação, com uma juventude intelectualizada e curiosa. A ditadura ainda endurecia o ambiente político, e essa repressão forçava a criação a se manifestar por outras vias. Em vez de fazer da arte um grito direto, Lô e seus parceiros faziam dela uma fuga lírica e harmônica. Em 1972, aos 20 anos, ele divide com Milton Nascimento a assinatura de um dos álbuns mais importantes da história da MPB, Clube da Esquina. O disco é um ponto de ruptura. Enquanto a Tropicália havia integrado o pop à brasilidade, o Clube propôs uma outra modernidade, menos urbana, mais contemplativa, feita de arranjos sofisticados e harmonias de jazz, sem perder a melancolia mineira.

Lô era o contraponto do peso adulto da época. As melodias que criou em músicas como Tudo o Que Você Podia Ser e O Trem Azul nascem da mesma lógica de quem cresceu com a guitarra dos Beatles e o piano de casa. Sua música tinha o que poucos conseguiam traduzir, uma juventude sem ingenuidade.

No mesmo ano, Lô lança seu primeiro álbum solo, Lô Borges, que ficaria conhecido como o “disco do tênis”, pela capa que exibe um par de tênis surrados sobre o chão. O disco foi gravado às pressas, enquanto o sucesso do Clube ainda se expandia, mas sua sonoridade o colocaria entre as obras mais influentes da música brasileira. Mistura de rock psicodélico, folk, harmonias abertas e lirismo cotidiano, o álbum consolidou uma estética que se tornaria referência direta para gerações seguintes, de Nando Reis a Tim Bernardes, de Samuel Rosa a Rodrigo Amarante. Na época, foi um fracasso comercial, mas se transformou com o tempo em um dos álbuns mais cultuados da história da MPB, reverenciado como símbolo de liberdade criativa.

Após esse período, Lô se afastou do circuito do sucesso. Voltou para Belo Horizonte e viveu longos períodos sem gravar, rejeitando a lógica de mercado e as pressões de uma indústria que buscava repetir fórmulas.

Nos anos 1980, Lô retorna aos estúdios com A Via Láctea (1979) e Nuvem Cigana (1982), álbuns que mantêm o espírito livre e o olhar introspectivo. A parceria com Milton e Márcio Borges continuou sendo o eixo da criação, e o Clube da Esquina se afirmava como movimento duradouro.

Os anos 1990 e 2000 consolidaram Lô como figura de referência. O disco Meu Nascimento (1996) foi uma espécie de reencontro com o público e reafirmação da sua identidade. Em 2003, participou do projeto Clube da Esquina 2 – 30 anos. Nessa fase, artistas de diferentes gerações começaram a reconhecer sua influência direta, o nome de Lô passou a circular também entre músicos independentes que enxergavam nele um modelo de integridade criativa.

O som de Lô Borges sempre foi construído a partir do concreto e do sonho. A simplicidade dos acordes escondia estruturas complexas. Ele escrevia canções que pareciam fáceis, mas que carregavam a matemática intuitiva de quem vive a música como linguagem nativa. O jeito de cantar sem ênfase, as guitarras cristalinas e as harmonias abertas criaram uma assinatura que ultrapassa a própria MPB.

Lô Borges nos deixou neste início de novembro, aos 72 anos, em Belo Horizonte. Sua ausência deixa um repertório que nunca envelheceu, com músicas que continuam a soar como se tivessem sido escritas ontem.

O Clube da Esquina, o “disco do tênis” e toda a sua obra são a demonstração de que é possível fazer música sem se curvar ao imediatismo, e que o afeto, quando é construído com verdade, sobrevive a qualquer época.

O garoto de 20 anos que um dia colocou um tênis surrado na capa do próprio disco talvez não soubesse que estava registrando ali mais do que um álbum, um modo de existir.

Assistente de redação

Assistente de redação