Arte, reinvenção e coragem: A história de Ney Matogrosso

4 de jun. de 2025

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Ney Matogrosso não é só uma lenda da música brasileira — ele é uma revolução em carne, voz e coragem. Desde os anos 70, sua trajetória atravessa décadas como um grito de liberdade, subversão e beleza única. Com um visual andrógino, uma voz inconfundível e uma presença de palco hipnotizante, Ney não apenas transformou a MPB, mas também questionou paradigmas sociais e culturais.

Os primeiros passos de Ney

Ney nasceu em 1º de agosto de 1941, em Bela Vista, no interior do Mato Grosso do Sul, numa família marcada pela disciplina e pela arte. Filho de um militar e uma pianista, ele cresceu entre contradições: a rigidez da caserna do pai e a sensibilidade da mãe. Desde cedo, Ney mostrou um fascínio pelas artes, especialmente pela música e pelo teatro, que seriam sua válvula de escape e a arena de sua transformação pessoal.

Ainda jovem, Ney sentiu o chamado da cidade grande e partiu para o Rio de Janeiro. A mudança foi uma ruptura necessária, pois ele buscava um espaço para se expressar longe das amarras conservadoras do interior. No Rio, Ney trabalhou em funções simples — foi garçom, auxiliar de enfermagem, dançarino de boate — até que encontrou seu lugar no teatro e, logo depois, na música. O encontro com o universo artístico foi o ponto de partida para a construção do que viria a ser uma das mais importantes carreiras da cultura brasileira.

A influência do teatro na sua performance sempre foi fundamental. Ney incorporou o corpo e a voz como instrumentos expressivos, transcendendo o mero ato de cantar para se tornar um performer completo. Essa base teatral foi o que o diferenciou desde o início, criando uma linguagem visual e sonora nunca antes vista no Brasil. Seu destino artístico estava traçado — e seria marcado pela ousadia, pela inovação e pelo inconformismo.

O ano de 1973 foi o divisor de águas na carreira de Ney Matogrosso. Ele se uniu ao grupo Secos & Molhados, que rapidamente virou fenômeno nacional. Com um som que misturava rock, MPB, música regional e poesia, o grupo chamou atenção pelo repertório original e pela performance visual inovadora, com Ney usando maquiagem pesada, figurinos extravagantes e coreografias que desafiavam as normas de gênero.

A voz aguda de Ney, junto à sua figura andrógina, foi um choque para a sociedade conservadora da época, em pleno regime militar. As músicas “O Vira”, “Sangue Latino” e “Rosa de Hiroshima” se tornaram hinos que atravessaram gerações e carregaram mensagens de resistência, liberdade e questionamento político. Ney, com seu corpo em movimento e sua interpretação visceral, transformou cada show num manifesto visual e sonoro.

Além do impacto musical, o Secos & Molhados colocou em pauta questões de identidade e liberdade sexual, algo raríssimo e subversivo nos anos 70 no Brasil. Ney não era apenas um cantor — era um símbolo de ruptura, uma provocação ambulante que obrigava o público a repensar preconceitos. O sucesso meteórico do grupo, que durou apenas alguns anos, deixou um legado duradouro que reverbera até hoje.

Desde os anos 1970, quando a visibilidade queer era praticamente inexistente e o preconceito imperava, Ney se colocou na linha de frente da liberdade de expressão, usando seu corpo, sua voz e sua arte para desafiar normas rígidas de gênero e sexualidade. Sua postura corajosa abriu espaço para que muitas pessoas LGBTQ+ pudessem se reconhecer, se afirmar e lutar por seus direitos com mais confiança.

Ao longo da carreira, Ney sempre defendeu a diversidade e o respeito, se tornando símbolo de resistência contra o preconceito e modelo de autenticidade para gerações que vieram depois dele. Por isso, sua importância vai muito além da música — ele é um farol que ilumina o caminho da luta por igualdade, liberdade e amor sem rótulos.

A carreira solo e a reinvenção constante

Após a dissolução do Secos & Molhados, Ney não perdeu fôlego — pelo contrário, ganhou espaço para mostrar sua versatilidade artística. Lançou em 1975 seu primeiro disco solo, “Pecado”, onde já se percebe uma assinatura forte e uma busca por novos caminhos. Ney se afastou um pouco do rock para mergulhar em um universo musical mais diverso, transitando entre MPB, samba, pop e até influências latinas.

Sua discografia é um exercício contínuo de reinvenção. Discos como “Bandido” (1976), “Feitiço” (1978), “Pescador de Pérolas” (1983) e “Folheto de Empréstimo” (1986) mostram que Ney não tem medo de experimentar, seja nas escolhas do repertório, seja nas parcerias musicais. Ele trabalhou com nomes fundamentais da música brasileira como Chico Buarque, Caetano Veloso, Itamar Assumpção e Cazuza — sempre imprimindo sua personalidade inconfundível.

A interpretação é o ponto alto da carreira solo de Ney. Ele não apenas canta as músicas, ele as reinterpreta, dando nova vida e novas camadas de significado a cada verso. Essa capacidade faz com que suas versões permaneçam atuais, mesmo décadas após o lançamento original. Ney Matogrosso é, acima de tudo, um intérprete com uma técnica vocal apurada e uma sensibilidade rara, que ele explora com a maturidade dos anos.

O estilo como expressão e revolução

Ney Matogrosso não é apenas uma voz icônica; ele é um símbolo visual inconfundível. Desde os tempos do Secos & Molhados, Ney desafiou os padrões tradicionais de masculinidade com sua estética única. Usar maquiagem, figurinos coloridos e andróginos, usar o corpo como palco, tudo isso fazia parte da sua revolução silenciosa.

A ousadia estética de Ney não era mero fetiche, mas uma forma de expressão e resistência contra o conservadorismo da sociedade brasileira. Num país onde homens precisavam provar masculinidade rígida, ele exibia sua liberdade com plenitude. Seus figurinos foram assinados por grandes nomes da moda e do teatro, e sua performance se tornou um manifesto político sobre o direito de ser quem se é.

Essa postura abriu portas para debates sobre sexualidade, identidade de gênero e liberdade artística que só se tornaram mais fortes nas décadas seguintes. Ney mostrou que a arte pode — e deve — quebrar barreiras, e que o corpo do artista é território político. Essa coragem estética faz de Ney Matogrosso uma das figuras mais influentes não só da música, mas da cultura brasileira como um todo.

Clássicos que marcaram gerações

A obra musical de Ney Matogrosso é um baú repleto de clássicos que atravessam gerações. Canções como “Homem com H”, que questiona padrões machistas, virou hino para quem busca liberdade. “Poema”, uma parceria com Cazuza, é um mergulho nas emoções mais cruas, cantada com uma entrega visceral. Já “Balada do Louco”, ao lado dos Mutantes, une o psicodelismo com a irreverência de Ney.

“Sangue Latino” e “Rosa de Hiroshima” não são só músicas, são verdadeiros marcos culturais, símbolos da resistência contra a opressão e a ditadura militar. Com um repertório que mistura poesia, crítica social e emoção, Ney sempre escolheu músicas que tinham uma mensagem potente, que falassem de humanidade e contradição. Essas canções continuam presentes na cultura popular, sendo regravadas, estudadas e reverenciadas.

Ney não só construiu um repertório de hits — ele construiu uma obra com significado e impacto. A durabilidade dessas músicas reflete a capacidade do artista de conectar passado, presente e futuro.

O palco como templo da liberdade

Assistir a um show de Ney Matogrosso é testemunhar um ritual. Ney vai além do canto: ele vive a música, performa a emoção. Suas apresentações são uma mistura de teatro, dança e música, em que cada gesto carrega um significado. Mesmo com a idade avançada, Ney mantém a energia e a intensidade, fazendo do palco um espaço sagrado onde a liberdade é celebrada. Ele domina o palco com um carisma quase hipnótico, transformando a relação com o público em uma experiência visceral. A entrega é total, e o impacto, inesquecível.

Seja nas grandes casas de show ou em palcos menores, Ney cria uma conexão única, onde a música vira ponte para tocar emoções profundas. Ele reafirma que o artista deve ser, acima de tudo, um agente de transformação — e que a arte pode libertar, curar e revolucionar.

Vida pessoal, sonhos e o legado

Fora dos palcos, Ney é reservado, mas não menos intenso. Vegetariano convicto, amante da natureza e da tranquilidade, ele escolheu um sítio no Rio de Janeiro para viver longe do burburinho da fama, mas perto de sua essência. Sempre falou abertamente sobre sua sexualidade e identidade, quebrando tabus em uma época muito mais conservadora. Ney não apenas abriu portas para que outros se expressassem, como construiu sua vida com uma coerência admirável — sem jamais abrir mão da liberdade de ser quem é.

Em entrevistas recentes, Ney revelou que seu maior sonho é continuar cantando até o fim, sem parar. Ele não pensa em aposentadoria, pois para ele a arte é um oxigênio. O legado de Ney Matogrosso vai além dos discos e dos palcos: é um legado de coragem, autenticidade e de constante reinvenção.

Assistente de redação

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