Martin Scorsese entre Deus, sangue e cinema

15 de out. de 2025

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A trajetória de um diretor que transformou religião, violência e culpa em linguagem cinematográfica, moldando décadas de cinema americano.

Martin Scorsese nasceu em Nova York em 1942, filho de uma família ítalo-americana criada no bairro de Little Italy. A asma crônica o afastou da rua ainda na infância, empurrando-o para dentro de cinemas de bairro onde passava horas observando narrativas, rostos e códigos visuais que mais tarde formariam sua linguagem.

A igreja católica foi outra presença constante. Durante um tempo, Scorsese pensou em ser padre, frequentou seminário e foi educado sob a forte moral religiosa que atravessa toda sua obra, marcada por culpa, redenção e tentativas de salvação. Essa combinação de cinema, bairro e religião criou um imaginário muito específico.

Sua entrada no cinema foi natural, quando estudou na NYU Tisch School of the Arts nos anos 1960, período em que a contracultura e a Nova Hollywood questionavam os modelos industriais. Ali, começou a dirigir curtas e absorver o espírito de renovação estética e narrativa que circulava entre jovens cineastas como Coppola, De Palma e George Lucas.

Em seu primeiro filme, “Who’s That Knocking at My Door” (1967) já deixava evidente o interesse de Scorsese pela tensão entre desejo e culpa, violência e fé. O filme é quase autobiográfico, inspirado no ambiente católico e ítalo-americano do diretor, mostrando um protagonista dividido entre a devoção religiosa e a atração sexual, incapaz de conciliar os dois mundos.

Mas foi com “Mean Streets” (1973) que sua voz artística foi mostrada. Ambientado no bairro onde cresceu, o filme mergulha na vida de pequenos criminosos e amigos de infância em meio à igreja, bares e dívidas impagáveis. A violência surge como cotidiano, não espetáculo. A câmera é inquieta, colada aos corpos, e a trilha sonora, marcada por canções populares da época, anuncia uma das assinaturas mais fortes da sua filmografia: a integração visceral entre música e imagem.

Os temas que Scorsese exploraria ao longo das décadas já estavam ali. A violência, a religião e a culpa se infiltram em cada gesto dos personagens, de forma conceitual e como uma concepção sucinta de acordo com cada narrativa.

Essa tríade, parte de uma tradução direta da experiência ítalo-americana católica de Nova York nos anos 1940 e 50, somada a uma profunda cinefilia. Scorsese cresceu assistindo a westerns, musicais e filmes neorrealistas italianos.

Nos anos seguintes, sua evolução estética acompanhou seu domínio técnico e narrativo. “Taxi Driver” (1976) é um marco absoluto. Ao lado de Robert De Niro e do roteirista Paul Schrader, Scorsese construiu um retrato febril da solidão urbana, do ressentimento e da violência reprimida nos Estados Unidos pós-Vietnã, onde Travis Bickle é o anti-herói que emerge do colapso moral de uma cidade em decomposição. A câmera de Scorsese percorre as ruas de Nova York como se fosse mais um personagem, revelando sujeira, luzes neon e alienação. O uso sem qualquer limitação do jazz de Bernard Herrmann cria uma atmosfera tensa e introspectiva.

Em “Raging Bull” (1980), a história do boxeador Jake LaMotta é contada em preto e branco, com cenas de luta que funcionam como coreografias brutais e confessionais. O filme é também sobre autodestruição e penitência, reforçando a presença da culpa religiosa. Scorsese estava em crise pessoal, e o projeto, incentivado por De Niro, funcionou como espécie de renascimento artístico. O resultado foi um dos filmes mais poderosos da história do cinema americano.

Nos anos 1990, Scorsese mergulhou de vez na crônica do crime organizado com “Goodfellas” (1990) e “Casino” (1995). A violência explode onde os personagens oscilam entre controle e desintegração, e a câmera, aliada ao roteiro e as emoções parecem sempre em busca de um ponto de equilíbrio que nunca chega. Nesse período, sua colaboração com Thelma Schoonmaker, montadora de longa data, alcança uma precisão rítmica rara, a montagem é tão narrativa quanto os diálogos, conduzindo a história como um instrumento musical.

“The Wolf of Wall Street” (2013) mostra como a ganância financeira pode ser tão brutal quanto a máfia, filmada com a mesma energia febril de seus trabalhos anteriores, mas agora aplicada ao mercado financeiro.

Em “The Irishman” (2019), Scorsese confronta o tempo e a morte. Usando tecnologia de rejuvenescimento digital, revisita décadas de história do crime organizado e da política americana através do olhar envelhecido de um assassino interpretado por De Niro. De ritmo  mais lento, reflexivo, sem aquela energia que sobrava em seus outros trabalhos, como se ele estivesse revisando os próprios temas com distância crítica. O silêncio final do protagonista, abandonado em um asilo, funciona como uma espécie de balanço moral de toda a trajetória filmada por Scorsese ao longo de décadas.

Sua filmografia é marcada por uma coerência rara. Seja narrando histórias de gangsters, boxeadores, financistas ou missionários, Scorsese retorna sempre aos mesmos núcleos temáticos: a violência como força constitutiva da sociedade americana, a religião como estrutura moral e fonte de culpa, e a ambiguidade humana como motor narrativo. Esteticamente, combina precisão cirúrgica com liberdade formal, absorvendo referências do neorrealismo, da Nouvelle Vague e da cultura popular americana. É um cineasta que filma tanto a queda quanto a busca por redenção, consciente de que ambas são partes inseparáveis da experiência humana.

Editora chefe

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