Do underground ao culto: a saga de MF DOOM

24 de jul. de 2025

-



Um nome essencial para qualquer fã de rap, MF DOOM tem uma habilidade única e uma enorme dedicação à arte do rap. O rapper favorito do seu rapper favorito. Ele nunca foi o mais popular — prosperou no cenário underground, sendo extremamente prolífico tanto em seus próprios lançamentos quanto em suas centena de colaborações.

Ele não se importava com aparência, status ou popularidade. Sua música não era feita para ser comercialmente fácil, e ele nunca comprometeu sua integridade artística para agradar o público. Foi um verdadeiro mestre do jogo, sempre fiel a si mesmo e à sua arte. Ele era o mais puro que poderia ser.

MF DOOM era sobre a arte — e apenas sobre a arte.

Nessa matéria, mergulhamos em toda sua jornada — desde sua infância e apego por quadrinhos, à aproximação com o hip hop, KMD, sua carreira solo e suas variadas personas.

A fagulha do hip hop

Daniel Dumile nasceu na Inglaterra mas cresceu em Long Island, Nova York, num lar marcado por disciplina cultural e intelectual. Sua mãe era uma mulher religiosa e bastante politizada, que incentivava os filhos a estudarem sobre cultura negra, história da África e Islã. A família inclusive adotou os princípios da Nação do Islã e, mais tarde, do grupo Ansaaru Allah, uma seita islâmica afro-americana que influenciou diretamente o imaginário lírico de Doom.

Ele começou ouvindo rádio, participando de crews de grafitti e breakdance em Long Island. “Minha primeira experiência com o som que hoje chamamos de hip hop foi ouvindo rádio. Na época, era a WBLS, com Frankie Crocker, tocando músicas como Grover Washington Jr. e outras que tinham aquele clima.”, conta ele.

Ainda quando criança, ele e seus amigos tinham irmãos mais velhos que já estavam envolvidos com festas, DJs e tocavam discos em casa. Olhando os mais velhos, tinha vontade de aprender aquilo. Foi, de fato, se sentir ‘pertencido’ quando começou em uma crew de graffiti, chamada KMD, de Freeport. Eles desenhavam, faziam arte, breakdance. Com o tempo, a crew foi se envolvendo cada vez mais com música, gravando fitas, praticando rimas, até que a parte musical se tornou o foco principal.

No vizinho, Queens, morava um jovem chamado MC Serch. Serch e Dumile se tornaram amigos rapidamente, e quando Serch e seu grupo 3rd Bass assinaram um contrato com a Def Jam, ele perguntou a Dumile se queria fazer um verso em uma das músicas deles.

O resultado foi “Gas Face”, de 1990. Construída sobre o piano de “Respect”, de Aretha Franklin, a faixa se tornou um dos singles mais marcantes do que hoje é conhecido como a Era de Ouro do hip hop. “Meio que fui eu quem teve a ideia do conceito. A gente brincava muito, então inventei o termo ‘gas face’ — é só aquela cara que você faz quando está chocado ou surpreso. Tipo quando alguém te pega desprevenido.”, lembra Daniel.

Logo depois, o KMD assinou com a Elektra Records e começou a trabalhar no álbum de estreia, Mr. Hood (1991). Eles haviam mudado o significado do nome — agora era “uma Causa positiva em uma Sociedade Muito Danificada” — e adicionaram um terceiro membro, Onyx The Birthstone Kid. Dumile e seu irmão ainda eram adolescentes e iam de Long Island até o estúdio Chung King, em Manhattan, todas as noites. “Gravamos todo o álbum à noite. O disco é exatamente como era: eu na casa da minha mãe, fazendo beats, cortando cabelo pra ganhar um dinheiro extra, trocando discos e tal. Tempos divertidos, sabe? Era a adolescência, aquela fase de jovem.”


O amadurecimento em “Black Bastards”

Mr. Hood foi o primeiro álbum do KMD, lançado em 1991, após serem descobertos por Dante Ross, que os ouviu na faixa “The Gas Face” do grupo de NY 3rd Bass. Na época, o grupo se identificava como parte da comunidade Jund Ansar Allah (organização islâmica armada) e o disco em questão falava sobre questões raciais negras nos EUA, religião, panafricanismo e racismo — equilibrando o peso dos temas com samples de Vila Sésamo. Leve e vibrante, o disco era de apenas meia geração atrás de De La Soul e A Tribe Called Quest, mas parecia de alguém bem mais jovem.

Mas foi em 1993, com o disco Black Bastards, o tom mudou radicalmente. “O segundo disco realmente vem de muitas experiências que passamos depois do primeiro. Eu tinha uns 18, 19 anos quando fiz o primeiro, então ainda estava amadurecendo, aprendendo sobre a vida e a indústria.”, comenta DOOM. Com o tempo, foi necessário crescer, entender melhor a sociedade e lidar com as dificuldades do mercado musical, o que reflete no tom mais agressivo do sedungo álbum.

As críticas e imagens controversas fez a gravadora Elektra engavetar o disco e romper com o grupo. “Acho que foi considerado polêmico demais para a gravadora. Eles não sabiam como vender aquilo, então preferiram não lançar.”, comenta DOOM. O disco foi pirateado e deu ao grupo um status de culto, sendo oficialmente lançado apenas em 2000.

Ainda em 1993, uma tragédia marcaria para sempre a vida de Daniel: DJ Subroc, seu irmão, foi atropelado fatalmente ao tentar atravessar a pé a Long Island Expressway. Esse foi o fim do grupo.

RIP Subroc

Dingilizwe Dumile, irmão de DOOM, com apenas 19 anos, faleceu em 23 de abril de 1993, vítima de um atropelamento. Subroc era a outra metade do KMD (Kausing Much Damage) e os dois irmãos eram as cabeças pensantes. Rodan e Onyx chegaram a fazer parte do grupo também, mas com uma breve participação. A morte de Subroc foi uma das grandes primeiras tragédias na vida de Daniel — ele faleceu um ano antes do primeiro álbum do KMD ser lançado, que estava praticamente pronto.

“A gente estava quase terminando o disco, e aí aconteceu o acidente em que Sub perdeu a vida. Eu terminei o disco mesmo assim, porque só faltava um pouco. Se tivesse acontecido comigo, ele teria terminado também.”

DOOM teve que ser forte e assumir a responsabilidade naquele momento, pois era o mais velho. Além da perda do irmão, o álbum também não foi lançado e o contrato com a gravadora foi encerrado, com algumas justificativas falhas. Black Bastards trazia na capa o Sambo —personagem sinônimo de ofensa racial — sendo enforcado e com um soco no olho (desenhado por DOOM). O enforcamento em si era apenas uma forma de dar fim a um personagem.

O apego ao primeiro álbum do KMD era tão grande que, no velório de Dingilizwe, Daniel ficou ao lado do caixão com um Boombox, tocando as músicas ainda não finalizadas. Depois disso, ele sumiu. Foi para Atlanta e, lá em 1997, ele reaparece mascarado. Foi seu renascimento e, em 2000, ele lançou oficialmente o álbum pela primeira vez.

“Era verão, um dia lindo, e eu tava tentando pensar nas coisas… aí me bateu. Se eu fosse voltar, teria que ser como DOOM. Surgiu na minha cabeça do nada: se um dia eu tiver a chance de fazer isso de novo, vai ser assim — nesse nível mais público, mais de superfície.”


O renascimento como MF DOOM

DOOM conta, em uma entrevista à Red Bull Music Academy, de 2015, que seu ressurgimento como MF DOOM foi planejado desde a época do KMD. Além disso, enquanto ainda trabalhavam em Black Bastards, ele e Subroc já pensavam em seguir carreiras solo, cada um com um personagem diferente. “Mesmo enquanto estávamos trabalhando no Black Bastards, eu e Sub já íamos fazer discos solo, cada um com seu personagem. Eu já ia fazer o Doom desde aquela época, e ele ia lançar o dele também.”

Após a morte de Subroc e o fim do KMD, DOOM continuou desenvolvendo o personagem MF DOOM e as músicas, até que Bobbito ouviu o material e decidiu lançar. Bobbito Garcia era um amigo próximo de DOOM, trabalhava na Def Jam na época e estava começando seu próprio selo (Fondle ‘Em Records). Ele percebeu que DOOM estava fazendo música, ouviu algumas fitas dele e o chamou para lançar alguns sons. “Isso reacendeu tudo”, afirma ele.

Em 1997, Fondle ‘Em lançou o primeiro single de Doom, “Dead Bent”. Venderam mil cópias em um mês e ele se impressionou e viu que aquilo poderia dar certo. Operation: Doomsday foi então lançado em 1999. Foi por essa época que ele começou a esconder o rosto em público. Aparecia em clubes de hip-hop de Nova York nas noites de microfone aberto usando uma meia-calça no rosto.

Sobre a máscara, Doom explica, que “O verdadeiro motivo é que sou tão feio que não quero distrair o público quando subo no palco. Nem sei se conseguiria terminar uma música — iam começar a jogar tomate.”


O vilão da máscara

Zev Love X era o nome artístico original, usado ainda na época do KMD. Mas Zev e DOOM não são personagens totalmente separados, mas sim diferentes aspectos de sua identidade artística. Zev é sua fase inicial, mais jovem e leve, enquanto DOOM surge após experiências difíceis, trazendo uma visão mais profunda e série. “O personagem DOOM é mais sério, mais reflexivo, enquanto Zev era mais leve. Doom passou por coisas que Zev ainda não tinha passado”. Foram a morte de seu irmão, o “desaparecimento” do KMD, o cancelamento pela Elektra que o deram a máscara.

Desde 1997, DOOM se apresenta mascarado. No início, era uma meia-calça cobrindo o rosto, para manter o anonimato e simbolizar um “renascimento artístico” após os traumas da perda do irmão Subroc e o cancelamento do álbum do KMD. Pouco tempo depois, quando lançou seu primeiro álbum solo (Operation: Doomsday) adotou a máscara metálica inspirada no Doutor Destino da Marvel, que passou a ser sua assinatura visual definitiva.

A máscara vem do filme Gladiador, que era vendida como réplicas do filme. DOOM conta que um amigo (Lord Scott 79), grafiteiro que também rima, viu e disse que seria perfeita para o personagem. Era como um item de colecionador, com suporte de madeira para exposição. “Sabe aqueles capacetes de obra que têm um ajuste interno de plástico? Ele pegou um desses e adaptou na máscara. Ele montou isso pra mim. Depois disso, eu cromei ela, botei até um rubi. Foi assim que surgiu a máscara.”, comenta ele em uma entrevista de 2004.

Naquela época, o hip hop estava se tornando cada vez mais visual e comercial, com a indústria dando mais importância para a aparência dos artistas do que para a qualidade da música. A máscara simboliza a rejeição ao foco na aparência e valoriza a música acima da imagem. “O que eu fiz foi vir com a ideia de que não importa como eu pareço, não importa como o artista parece, importa o que ele soa. A máscara representa essa rebeldia contra vender o produto como um ser humano. É mais sobre o som.”

E claro, a teatralidade também está presente — o show se torna mais interessante, mas sem perder o foco na mensagem. No final das contas, é um símbolo de autenticidade e uma resistência à superficialidade da indústria.

Seu processo criativo

O processo criativo de MF DOOM começa pela batida, que inspira as letras, e envolve muita experimentação com samples e colagens sonoras. Segundo ele, começa produzindo a batida antes de pensar nas letras. A batida serve como base e inspiração para o restante da música. “O que eu geralmente faço quando estou produzindo um disco é criar a batida primeiro. Depois, a batida inspira as letras”.

DOOM prefere não exagerar na produção, mantendo a música próxima do original e deixando espaço para a imaginação do ouvinte. “Eu não exagero muito, gosto de manter o mais próximo possível do original, deixar algo para a imaginação, mas o suficiente para passar a mensagem”.

“Às vezes, deixo de lado por alguns meses e depois volto para encontrar aquela última peça que faltava”, comenta ele. O processo pode ser longo e não linear, com ele deixando a música de lado por um tempo e voltando depois para adicionar detalhes ou encontrar o elemento que faltava.

Suas referências vêm de programas de rádio antigos, colagens de áudio e estilos de produção dos anos 80. As fontes são inúmeras — fitas VHS antigas, discos de vinil, rádios, filmes e até comédias. É um processo que torna a experiência auditiva rica e imprevisível. Para ele, encontrar e misturar sons obscuros é parte da arte.

Para a escrita, Bukowski é, por incrível que pareça, sua principal referência. Se denominando inúmeras vezes como escritor, Daniel não se deixa influenciar pelo o que os outros estavam fazendo, essencialmente como escritores de verdade. “Se escritores realmente bons não fossem autênticos, não seriam interessantes. O estilo de escrita dele sempre me pegava de surpresa. Eu lia achando que sabia pra onde ele ia, e ele virava à esquerda e virava tudo de cabeça pra baixo. Várias vezes. Cada conto era único. Até hoje, quando me sinto travado ou quero relaxar, pego Bukowski e leio um conto curto. As coisas dele são tão esquisitas que me fazem me sentir normal. Eu não posso ser mais esquisito que esse cara [risos], o que é ótimo, porque quando você entende onde estão os extremos, pode fazer qualquer coisa.”, afirma ele.

A música só está pronta quando ele sente que está completa, mas admite, em uma entrevista, que poderia continuar mexendo indefinidamente. “Eu sei que está pronta quando sinto que está completa, mas poderia continuar trabalhando nela para sempre”.

Ele se define, antes de tudo, como um escritor, mesmo sendo MC e produtor. “Quero que minhas músicas sejam como um livro clássico, bem escrito, que você queira ouvir de novo e passar para um amigo.”, comenta ele. Suas rimas sempre estão um ou dois passos à esquerda, mantendo a história interessante e surpreendendo quem ouve.

“Tem hip hop feito de qualquer jeito, só para diversão, e tem o realmente bem trabalhado. Tento fazer esse segundo tipo, o de qualidade.”


As variadas personas

Suas inúmeras personas têm o objetivo de enriquecer suas narrativas e manter sua música interessante. Cada um tem suas características e histórias próprias. MF DOOM, Viktor Vaughn e King Geedorah são elas.

Para ele, MF DOOM é inspirado nos vilões das histórias em quadrinhos, especialmente o Doutor Destino (Dr Doom) da Marvel. “Ele é o típico vilão de qualquer história, muitas vezes incompreendido, visto como o cara mau, mas com um coração de ouro. Ele é como um Robin Hood, amado pelo povo, mas não necessariamente pelas autoridades”. Ele representa alguém que não se importa com a fama, mas sim com a mensagem e a arte.

Já Viktor Vaughn é o jovem rebelde, uma versão mais impulsiva e ousada. “Viktor é mais novo, tipo 18 ou 19 anos, acha que sabe tudo, muitas vezes discorda do DOOM, mas ainda assim o admira”, afirma ele. Com Viktor, DOOM pode explorar temas e estilos de uma forma mais experimental e até conflituosa.

King Geedorah é de outro mundo: é inspirado no monstro de três cabeças dos filmes do Godzilla. “Geedorah não é nem da Terra, é um ser etéreo, um reptiliano dourado de 300 pés, que transmite mensagens para DOOM.” Ele serve como uma espécie de canal de inspiração, trazendo ideias “de outro planeta” para DOOM.

DOOM conta que criar esses múltiplos personagens é uma forma de evitar que a narrativa fique monótona e de trazer diferentes pontos de vista para suas músicas, como acontece em filmes com vários personagens, por exemplo.

“Ter vários personagens permite que eu conte histórias de diferentes perspectivas, até mesmo com opiniões conflitantes.”

Ele tem momentos: dependendo da época, uma persona pode estar mais em destaque do que as outras, mas todas coexistem e podem voltar à tona a qualquer momento. Ele se considera, acima de tudo, um escritor. O mais importante para ele é a escrita, a construção de rimas e narrativas inteligentes, surpreendendo sempre o ouvinte. “Eu sempre me descrevo como escritor, mesmo sendo MC ou produtor. O que faço é escrever. Tenho cadernos para provar, muita escrita, mais do que imaginei que faria.”

DOOM comenta em uma entrevista que até já pensou em fazer um álbum com todas as suas personas interagindo ou “batalhando”. “Na verdade, está rolando um pequeno rap beef agora entre Vic e DOOM. Vic está meio com ciúmes porque DOOM está brilhando mais, então ele está pensando em lançar uma diss track”, brinca ele.

O aspecto mais interessante de tudo isso é que as rimas raramente revelam a identidade do narrador. Os personagens de Doom aparecem como convidados nos álbuns uns dos outros; eles se ajudam na produção; e Dumile paira acima deles, sem medo de usar a segunda ou terceira pessoa. Ele faz questão de apontar que todos esses personagens são personagens, não facetas de sua (ou da) personalidade do Doom. “Nunca me interponho”, afirma. “Me mantenho fora disso — acho que sou muito sem graça, não seria divertido. Tem que ser esses caras.”


Os dois Ms: MF DOOM e Madlib

DOOM conta que recebeu uma ligação de Peanut Butter Wolf, da gravadora Stones Throw, apresentando Madlib e falando que ele queria fazer um disco juntos. Eles tinham visões parecidas sobre música, mas estilos únicos. A colaboração entre os dois foi natural, com ambos respeitando o espaço criativo do outro.

Daniel acabou indo à LA para se encontrar com ele e sentiu que era “gente boa, de bom coração, verdadeiro pesquisador de discos, beatmaker”. Durante a produção de Madvillainy, eles trabalhavam na mesma casa, na época da própria gravadora, mas quase não se viam, cada um focado na sua parte. Madlib ficava no estúdio e DOOM no deck, escrevendo. Ele conta que Madlib o dava um CD com beats e ele escrevia. “A gente quase não conversava, mas a música era a conversa. Até hoje é assim.”, contou ele numa entrevista.

O foco era intenso e estavam trabalhando rápido — mas sem sacrificar a qualidade. Como quase não se viam durante o processo, quando chegava o fim de semana, se reuniam e ouviam juntos o que tinham feito. O disco se transformou num clássico do hip hop experimental, com beats inovadores de Madlib e rimas complexas de DOOM.

Um grande fun fact é que a maioria dos instrumentais que Madlib criou para o álbum foi durante uma viagem ao Brasil, trabalhando com uma estrutura mínima em seu quarto no hotel (Strange Ways e Rhinestone Cowboys, por exemplo. A sua vinda é uma das histórias lendárias do hip hop. Em 2002, ele veio a convite da Red Bull Music Academy e para claro, crate digging.

O então diretor de arte da Stones Throw Record, em 2003, Jeff Jank, foi quem pensou na capa de Madvillainy. Na época Doom não tinha uma imagem pública, de certa forma. E Jank queria que a capa fosse realmente ele. Quem fez a foto foi Eric Coleman, que um dia chegou na casa em que todos moravam (e onde o álbum estava sendo gravado) em Los Angeles, e fotografou Dumile.

Jeff conta que uma capa o marcou muito como criança — n the Court of the Crimson King, do King Crimson — e era essa a sensação que ele queria que um vilão com uma máscara de metal causasse numa criança de 5 anos por aí. Outro funfact (que chega a ser uma piada interna do dir. de arte) é que a capa o lembrava muito da capa do primeiro álbum da Madonna. O pequeno pedaço de laranja no canto foi colocado para ser distinguido e também combinar.

[Um funfact mais fun ainda: quando salvei a foto do site da Stones Throw, que compara a capa dos dois álbuns, o nome do arquivo da imagem era: beauty-and-the-beast.jpg — A Bela e a Fera.]

Por fim, a capa só foi aprovada quando Big Benn Klingon (amigo de longa data de Doom e colaborador desde a época do KMD) olhou e entendeu o conceito na hora. “Olha esse cara, qual é a história dele?! Isso é perfeito!”.

O grande mérito de Madvillainy reside justamente na imprevisibilidade de seus protagonistas: nunca sabemos que experimentos sonoros Madlib vai apresentar ou quais versos surpreendentes DOOM irá soltar. O disco consegue ser, ao mesmo tempo, meticulosamente elaborado e totalmente espontâneo.

Não chega a ser um álbum conceitual. Mas foi criado para se tornar lendário, começando pela icônica capa, que exibe seu protagonista oculto atrás de uma máscara — como se já soubesse, durante o processo, que estava criando um objeto de culto. Se existe um disco de rap dedicado à arte do rap, é este. Ao contrário de muitos, Madvillainy não tem outra intenção artística além de expressar um amor declarado pela música enquanto diversão.


Metal Fingers

A maioria das vezes mascarado sob o pseudônimo de MF DOOM, em 2001, surge Metal Fingers. No intuito de diferenciar o projeto Special Herbs de seus álbuns de rap, ele assina com outro cognome. De fato a produção sempre foi um elo central em sua carreira e essa série nasceu do seu desejo de compartilhar seus instrumentais — feitos tanto para ele, como para outros artistas.

“Isso é o que une todos os álbuns do DOOM: a produção — a técnica de misturar hip-hop com rimas. Tinha algumas dessas; continuava esbarrando em novas. Tipo no circuito de mixtapes, eu podia acabar com eles com as ideias que eu tinha, com instrumentais de hip-hop misturados com músicas lentas dos anos 80.”, comenta ele.

Cada faixa leva o nome de uma erva ou planta, e os discos foram lançados por diferentes selos independentes ao longo do anos seguintes, mostrando que, no fim das contas, seu trabalho era pelo amor à arte. Aqui, ele se consolida como produtor e mostra que sua experiência como DJ, lá no começo, o afirma como versátil e amplo.


King Malachi

Daniel sempre foi muito privado sobre sua família. Em seu hiato — entre o último lançamento do KMD e 1997, quando reapareceu mascarado —, Daniel começou namorar sua esposa e seus dias eram basicamente iguais. “Na maior parte do tempo, eu ficava em casa, mais duro do que tudo, ouvindo jazz e só escrevendo.”

Em entrevistas, conta que, quando foi à LA para gravar Madvillainy com Madlib, mal esperava para voltar para casa. Na época, seu filho, Malachi — “meu mensageiro” ou “o mensageiro de Deus” em hebraico — havia acabado de nascer. Quando ele voltou, o filho já havia crescido mais. “King Malachi. O melhor garotinho que eu poderia imaginar ter. Ele era um rei, um rei nato.”

Sua vida particular e profissional eram separadas: não fazia música em casa. Segundo ele, sempre foi pelo dinheiro — não escutava hip-hop, apenas jazz, instrumentais. “Só faço isso pelo simples fato de pontos por rima, o jogo dos pontos. Parece ser algo lucrativo hoje em dia, e ninguém mais presta atenção nisso. Você pode focar nos seus pontos, e se ninguém mais faz isso, você pode ganhar um troco, porque só você faz desse jeito. É isso que tiro das rimas.”

Malachi foi o único filho de Daniel, de 5 filhos, de qual ele falou sobre publicamente. Contou em uma entrevista em 2019 que ele acabou se tornando um jovem escritor, assim como o pai. “Ele era um mestre das palavras. O fruto não cai longe do pé, como dizem. Sempre foi um jovem bem articulado. Eloquente nas palavras, na forma de falar, no jeito de se expressar, no comportamento, essas coisas”. Contou inclusive, que o filho trabalhava em um livro de contos e estava prestes a organizar tudo para publicar.

King Malachi Ezekiel Dumile acabou falecendo em 2017, aos 14 anos de idade. A causa da morte não foi informada. Mas Dumile foi às redes sociais homenageá-lo. “O melhor filho que alguém poderia pedir”, escreveu DOOM no Instagram, legendando uma foto de Malachi em seus braços. “Boa viagem e que todos os nossos ancestrais te recebam de braços abertos. Uma das nossas maiores inspirações. Obrigado por nos permitir ser seus pais. Te amamos, Mali.”


A influência do Islã

Um dos pilares fundamentais na formação do seu pensamento artístico e identidade lírica foi sua religião. Nascido em um berço bastante religioso, sua família adotou os ensinamentos da Nação do Islã. “Os ensinamentos do Islã me deram uma estrutura — tipo um projeto — para disciplina, para me conhecer. É sobre conhecimento de si, acima de tudo. Eu posso não ser perfeito, mas essa base me mantém centrado.”, afirma Daniel.

Daniel e Dingilizwe cresceram na comunidade Ansaaru Allah, um grupo religioso e cultural fundado por Dwight York nos anos 70 nos EUA. Eles surgiram no Harlem como uma ramificação do movimento Black Muslim, mesclando elementos do islamismo, judaísmo, cristianismo, afrocentrismo e crenças esotéricas. “Minha mãe nos criou no Islã”, diz Doom. “E meu pai, sendo professor, sempre nos ensinou sobre nosso povo, sobre Marcus Garvey e o Honorável Elijah Muhammad. Mas quando comecei o ensino fundamental, percebi que a galera não conhecia essas pessoas! Então pensei: ‘Vamos espalhar a palavra.’ Nós éramos verdadeiros professores.”

O grupo promovia a ideia de que os afro-americanos eram descendentes diretos dos antigos hebreus e egípcios. A ênfase era em reconstruir o orgulho negro, rejeitando as narrativas ocidentais tradicionais e reafirmando uma conexão espiritual e genética com a África e o Oriente Médio.

É possível notar nas letras do primeiro álbum do KMD, Mr. Hood (1991), esse reflexo. Embora as letras são bem-humoradas e com críticas sociais, mostram preocupação com identidade racial, linguagem e autodeterminação. A estética visual também remete a roupas e turbantes usados por membros da Ansaaru Allah.

"I'm not tryin' to say I'm somethin' I'm not/But a black man taught me how to act a lot/And when I see a black woman, I know I'm protected/'Cause I respect her, and that's expected"

Em Nitty Gritty, com Brand Nubian — grupo também influenciado pelo Islã Negro (Five Percenters, especialmente) — fica clara a influência: "Now I'm a Nubian, flippin' a style, and so on/With the KMD crew, so get your flow on" rima Zev Love X. “Nubian” é um termo comum entre nacionalistas negros para expressar sua herança africana pré-colonial.

Em Black Bastards, lançado apenas em 2000, foi ainda mais explícito. O título, a arte e os temas do disco refletem muito do pensamento radical de grupos como os Ansaaru: a denúncia da opressão branca e a necessidade de que o povo negro domine sua própria narrativa. Na música de mesmo nome do álbum (Black Bastards!), fica ainda mais claro a influência do discurso dos Ansaaru Allah e Five Percenters. A enumeração negativa (o que ele não é) é uma técnica clássica dessas escolas de pensamento — desconstruir os estereótipos impostos ao homem negro e afirmar um eu espiritual e consciente.

"Yo, I'm a black bastard, not a dumb nigga/Illegal alien, not a drug dealer/A born leader, not a gang banger/A street teacher, not a gun slanger"

Quando MF DOOM decide seguir sua carreira solo, o que era direto e explícito em KMD, se torna um criptograma — cheio de pistas, símbolos, múltiplos personagens e perspectivas. Operation: Doomsday de 1991 é o renascimento de Daniel Dumile, após o trauma da morte do irmão e o boicote da Elektra. Agora, como MF DOOM, ele se torna um vilão — não por maldade, mas como rejeição ao sistema que o excluiu. Inclusive, há na contracapa uma foto de DOOM e de Subroc, na instalação Nuwaubian — que assim como os Five Percenters, compartilham raízes no nacionalismo negro e influências do Islã — no interior de Nova York.

DOOM chegou a frequentar instalações Nuwaubian, como uma chamada Tama-Re, perto de Atlanta, mas não era ativo na Ordem. “O que eu penso, é só um palpite projetado. Tento olhar para os fatos. A vibe é boa—diferente de tudo que já senti em outro lugar. É um dos primeiros lugares que já vi onde há mais de 100 pessoas e ninguém fuma cigarro. (…) Quanto ao andamento das coisas, ao que ele tem dito, à criação das crianças, manter as pessoas unidas em uma propriedade de verdade… Bem, vejo como algo que está funcionando.”, afirmou ele em uma entrevista quando perguntado sobre a experiência Nuwaubian.

Em Doomsday, ele afirma que é “vilão”, mas também alguém que cuida, constrói, ensina — a mesma base de um “street teacher” dos Ansaaru Allah. A contradição é proposital, como nas parábolas do Islã negro. “Definition: supervillain/A killer who loves children/One who is well skilled in destruction, as well as building”.

Ao lado de Madlib, em Madvillainy, DOOM atinge o auge da forma. Seu lirismo vira um emaranhado de ideias, samples e personagens. Mas as mesmas questões que o formaram continuam ali: conhecimento oculto, resistência racial e espiritualidade, mas agora em forma de alegorias e charadas. Em All Caps, os “names of power” dos deuses egípcios, profetas e nomes escolhidos por membros dos Ansaar, aparece: “Just remember ALL CAPS when you spell the man name” — DOOM, em maiúsculas.


Charles Bukowski é um escritor de verdade

Se aproximando duma profecia e tornando sua figura de vilão como oráculo, é em Born Like This — o disco mais sombrio e hermético da sua discografia solo —, que a persona DOOM culmina. Agora escrita como “DOOM” em definitivo, ele reforça a ideia do nome como um símbolo.

Suas letras cruas e realistas, abordando temas como a vida urbana, marginalidade e a luta cotidiana, coincidem com os temas de Bukowski. DOOM na verdade não sabia quem era o escritor. Foi em uma entrevista para a revista LSD, que o jornalista, ao perguntar sobre se seu processo criativo era influenciado pelo fato de estar feliz ou infeliz, que o compara com Bukowski.

Daniel não sabia quem era. O entrevistador explica que, “basicamente, ele era alcoólatra e escrevia muito sobre ficar preso nesse ciclo de depressão e álcool para continuar escrevendo, porque isso era o que mantinha ele em pé.” Claro que para DOOM, a grande coisa que importava era a escrita. Ele responde dizendo que nunca se colocaria num buraco só para tirar algo criativo disso mas, como qualquer ser humano, ele aproveita o que a vida tem para oferecer para ele, independente do momento.

A entrevista é de 1999. A partir daí, ele fala abertamente sobre o escritor ser sua referência. Em Cellz, de Born Like This a faixa é aberta com um trecho recitado do poema Dinosauria, We, de Bukowski, que começa assim:

“Born like this, into this/As the chalk faces smile/As Mrs. Death laughs/As the elevators break/As political landscapes dissolve”

O mundo está em ruínas e o álbum é uma espécie de testamento final. É como se DOOM assumisse o papel de profeta que observa essa decadência. Em uma entrevista para Rolling Stone, ele diz: “Ele é tão bom quanto qualquer rapper ali. Ele meio que define o tom do disco, já que estamos vivendo o que ele descrevia.”


Os quadrinhos de DOOM

‘DOOM’ surge ainda criança: na terceira série, devido a seu sobrenome Dumile, era chamado de Doom por abreviação. O Supervilão veio depois, como personagem. Desde criança, Daniel tinha costume de ler quadrinhos. Cresceu nos anos 70 e 80 em Nova York, época que os quadrinhos faziam parte do cotidiano de muitos jovens. Desde pequeno, era fascinado pelas histórias e se identificava pelos vilões e anti-heróis — muitas vezes incompreendidos ou outsiders.

Nos anos 80, a cultura hip-hop e a cultura dos quadrinhos se cruzavam frequentemente, com grafiteiros, MCs e DJs usando nomes e imagens inspirados em super-heróis e vilões. “Quadrinhos são a fundação. Foi assim que aprendi a contar histórias. Um vilão nem sempre precisa perder, e ele nem sempre está errado. Eu adorava isso — a zona cinzenta.”, comentou ele em uma entrevista para o New Yorker, em 2009.

O gênio não compreendido se enxergava em personagens como Doutor Doom ou Magneto. No final das contas, para ele, tudo girava em torno da máscara. Como nos quadrinhos, o personagem coloca a máscara e vira outra coisa. E para Daniel, é assim que se separa a arte do ego.

Editora e social mídia

Editora e social mídia