O cinema, pelas mulheres
A história do cinema sempre foi contada como se tivesse nascido sob assinatura masculina, como se a linguagem audiovisual tivesse sido expandida apenas por diretores, teóricos e movimentos que ocuparam a linha de frente das escolas e dos manifestos. A narrativa oficial consolidou esse mito por décadas, apagando o fato de que as mulheres estavam presentes desde o início, dirigindo, editando, roteirizando, produzindo e criando estruturas narrativas que sustentariam todo o desenvolvimento do século 20. Quando falamos de cinema feito por mulheres, não falamos de uma participação tardia, falamos de uma fundação que foi sistematicamente negligenciada pelo discurso dominante.

O caso mais simbólico é o de Alice Guy-Blaché. Em 1896, enquanto os Lumière, os irmãos inventores do cinema, ainda exploravam a captação do cotidiano e Georges Méliès caminhava para seus experimentos, Alice assinou “La Fée aux Choux”, um dos primeiros filmes de ficção da história. Ela dirige, roteiriza e cria métodos que antecipam a narrativa cinematográfica. Por décadas, sua presença foi apagada dentro da história francesa e só recentemente reconhecida como pioneira. O que funciona como símbolo dessa estrutura é a constatação de que, desde o nascimento do cinema, as mulheres foram primeiro ocultadas, depois redescobertas como se fossem exceção, quando sempre foram parte da base.

Esse apagamento se intensifica quando falamos de mulheres negras. Se a história do cinema foi escrita majoritariamente por homens brancos europeus e americanos, a história das mulheres negras no cinema foi escrita à margem, sustentada por resistência, prática comunitária e estruturas paralelas. Enquanto Hollywood se consolidava como indústria, a segregação racial nos Estados Unidos impedia diretoras e atores negros de acessarem espaços de formação, financiamento ou circulação. Foi nesse ambiente que surgiram figuras como Zora Neale Hurston, escritora, antropóloga e uma das primeiras mulheres negras a filmar comunidades afro-americanas no Sul dos EUA. Em 1928, Hurston documenta gestos, danças e cotidiano negro com um olhar que contrariava o olhar antropológico branco. É arquivo e cinema ao mesmo tempo, uma forma de proteger a existência de um povo que o Estado tentava apagar.
O que une essas histórias é a escalação silenciosa de mulheres que criaram linguagem sem reconhecimento institucional. Ida Lupino, por exemplo, dirigiu filmes nos anos 50 sobre maternidade, violência doméstica e autonomia feminina em pleno código Hays, um conjunto de diretrizes morais auto impostas pela indústria cinematográfica de Hollywood, muitas vezes tocando em temas que nenhum estúdio queria abordar. Mas seu nome é colocado em nota de rodapé enquanto diretores de sua geração são celebrados como visionários. Quando o cinema mundial entra nos anos 60 e 70, é por trás dessa estrutura que mulheres passam a criar movimentos de ruptura.
No Brasil, o processo é ainda mais revelador. Em uma cinematografia sempre centralizada em homens brancos, é impossível entender a formação cultural do país sem passar pela obra de Adélia Sampaio, primeira mulher negra a dirigir um longa comercial brasileiro. “Amor Maldito”, de 1984, surge como marco pela própria existência, feito com orçamento reduzido, filmado de forma independente e exibido numa época em que mulheres negras sequer apareciam nas listas de diretores brasileiros. O filme articula temática LGBTQIA+, violência institucional e afeto negro, expandindo o repertório do cinema nacional em uma década dominada por moralismos e narrativa branca. Adélia filmou o que ninguém filmava. E o mais explícito nessa história é que, apesar de sua importância, sua obra ficou anos fora das discussões acadêmicas e historiográficas.
A presença de mulheres negras no cinema brasileiro foi construída paralelamente à institucionalidade. As pioneiras nunca tiveram acesso a estúdios, capital, câmeras ou salas. Tudo era feito com empréstimos, favores, coletividade. Essa lógica persiste nos anos posteriores, onde movimentos de cinema periférico, cineclubes comunitários e oficinas de audiovisual se tornaram espaço de formação para mulheres que nunca entraram nas escolas tradicionais. A história do cinema feito por mulheres negras no Brasil é antes de tudo uma história de prática. Quando a estrutura não reconhece, a prática cria futuro.

Nos Estados Unidos, o impacto contemporâneo de cineastas como Julie Dash e Ava DuVernay mostra como essa trajetória se reconfigura ao longo do tempo. Julie Dash, com “Daughters of the Dust” (1991), torna-se a primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem distribuído comercialmente no país. O filme não nasce apenas como obra estética, nasce como ruptura. A forma como Dash articula diáspora, ancestralidade e tempo circular dialoga diretamente com cosmologias africanas, recuperando narrativas que sempre existiram na oralidade, mas nunca tinham sido traduzidas ao cinema com essa densidade. Décadas depois, Ava DuVernay amplia esse alcance com “Selma”, “13th” e “When They See Us”, estabelecendo uma gramática do cinema político que combina rigor histórico e visão estética.
Euzhan Palcy ocupa um lugar que durante muito tempo não foi devidamente reconhecido pela história do cinema. Nascida na Martinica, ela rompeu uma barreira dupla ao chegar ao centro da indústria cinematográfica norte-americana, sendo mulher e sendo negra em um espaço que tradicionalmente excluía ambas as identidades. Quando dirige Rue Cases-Nègres no início dos anos 80, ela apresenta ao mundo uma narrativa que reorganiza a maneira de filmar a diáspora caribenha, adotando uma abordagem realista e profundamente consciente das estruturas coloniais que moldaram a região. O impacto do filme é imediato, não apenas pelo conteúdo, mas pela forma como ela articula linguagem cinematográfica com memória histórica. A repercussão leva Palcy a Hollywood, onde realiza A Dry White Season em 1989, tornando-se a primeira diretora negra a dirigir um grande estúdio. O filme expõe as engrenagens do apartheid com um rigor político raro para produções do período e coloca Marlon Brando em uma de suas últimas atuações indicadas ao Oscar. A presença de Palcy na indústria abre brechas que outras diretoras atravessariam nas décadas seguintes. Ela demonstra que cinema negro não é nicho, não é regional e não é restrito a orçamentos alternativos. É uma produção capaz de tensionar sistemas, lidar com política em escala global e reorientar o olhar do público sobre narrativas que antes eram marginalizadas.
Quando falamos de linguagem, a contribuição das mulheres negras se torna ainda mais decisiva, o olhar que filma é também o olhar que pertence ao território. Isso altera a maneira como personagens são apresentados, como narrativas são construídas e como as imagens circulam.

Essa perspectiva se estende à diáspora africana. No cinema africano, nomes como Safi Faye, diretora senegalesa, redefiniram o modo como documentário e ficção operam dentro do continente. Seu filme “Kaddu Beykat”, de 1975, é um marco por registrar a vida rural sem exotização, sem a tutela da antropologia ocidental, apresentando a aldeia como agente de sua própria narrativa. Faye se torna a primeira mulher africana a dirigir um longa exibido no Festival de Cannes. O impacto dessa obra atravessa décadas e influencia gerações posteriores de diretoras que passam a pensar o cinema como instrumento de reconstrução histórica.
No Brasil contemporâneo, a presença de mulheres negras dirigindo longa-metragens expandiu de forma significativa. Sabrina Fidalgo, Viviane Ferreira, Yasmin Thayná, Renata Martins, Everlane Moraes e tantas outras fazem parte de uma geração que não está apenas entrando no cinema, mas reorganizando sua forma. Elas produzem filmes que dispõem memória, corpo, cotidiano e espiritualidade como elementos centrais, deslocando o eixo da narrativa clássica para uma lógica que nasce das suas próprias experiências. São obras que entendem cinema como investigação, não como fórmula.
A ideia de futuro sempre esteve ligada à imagem. E por isso é impossível pensar o futuro do cinema sem considerar que sua expansão depende diretamente dessas diretoras. Elas são responsáveis por deslocar narrativas, corrigir apagamentos, recuperar histórias e reorganizar a gramática visual contemporânea. O que muda agora é o espaço de circulação, o alcance e a possibilidade de definir o cinema global sem precisar da chancela das instituições que historicamente controlaram essa narrativa.
Falar de cinema pelas mulheres é falar de uma linha estética e política que se sustentou mesmo com toda rejeição, e reconhecer que o cinema sempre se passou por disputas. E que dentro dessa disputa, as mulheres negras foram responsáveis por preservar memórias, reinventar forma e ampliar horizonte.
Quando pensamos na história do cinema, é necessário entender que a verdadeira genealogia das imagens passa por essas diretoras.
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