O piso paulista de Mirthes Bernardes
Mirthes dos Santos Pinto, conhecida artisticamente como Mirthes Bernardes, nasceu em Barretos, interior de São Paulo, em 1934. Sua formação foi multifacetada, mesclando pedagogia, serviço social, e uma ampla busca por conhecimento nas artes plásticas e design. Formou-se em Pedagogia e Serviço Social pela PUC-SP, mas sua inquietação intelectual a levou a aprofundar-se em diversas técnicas artísticas — cerâmica, escultura, pintura a óleo, esmalte sobre metais e trabalho com fibras.
Esse perfil multidisciplinar é essencial para entender sua atuação: não era apenas uma artista, mas uma profissional que via o ambiente urbano como uma tela e a arquitetura como um convite à experimentação estética e funcional.

Carreira e inserção no mundo da arquitetura
Na década de 1960, Mirthes trabalhou como desenhista de arquitetura na Secretaria de Obras da Prefeitura de São Paulo, período em que a cidade passava por um grande processo de modernização e crescimento acelerado, sobretudo sob a gestão de Jânio Quadros e posteriormente Faria Lima. Era um momento em que a arquitetura modernista paulistana buscava consolidar uma identidade própria, e a estética funcionalista encontrava espaço para dialogar com manifestações artísticas locais.
Porém, o ambiente profissional ainda era predominantemente masculino, e mulheres em cargos técnicos ou de criação no campo da arquitetura e urbanismo eram raras e pouco valorizadas. A atuação de Mirthes, portanto, já se destacava pela ousadia e pela capacidade de dialogar com os novos rumos da cidade.

O concurso e o nascimento do “Piso Paulista”
Em 1965, a Prefeitura de São Paulo, sob a gestão de Faria Lima, lançou um concurso para criar um revestimento de calçadas que pudesse ter identidade própria, refletindo a cultura e a geografia do estado. Havia uma demanda clara: criar um elemento urbano que não fosse apenas funcional, mas também representativo da cidade e do estado.
Mirthes, na época ainda servidora pública, fez um esboço inspirado nos mapas do Estado de São Paulo, utilizando formas geométricas que evocavam a malha urbana e os limites territoriais. Seu chefe logo percebeu a força do desenho e a encorajou a inscrevê-lo no concurso.
Entre outras propostas mais figurativas — como pés caminhando ou grãos de café, símbolos tradicionais do estado —, a simplicidade e a abstração geométrica do desenho de Mirthes foram premiadas. O padrão permitia uma reprodução modular, versátil, e profundamente simbólica, além de dialogar com a estética modernista da época.


A importância do Piso Paulista
Presente em dezenas de calçadas, ele torna-se uma linguagem visual reconhecida instantaneamente por moradores e visitantes, quase uma “marca registrada” da cidade. Ao unir funcionalidade e expressão estética, Mirthes inaugurou uma discussão sobre o papel da arte no espaço urbano. O piso não é apenas para caminhar — é para reconhecer a cidade, para integrar arte e cotidiano.
Curiosamente, apesar da onipresença do padrão, Mirthes nunca recebeu royalties ou ampla valorização institucional pela criação. Isso revela uma realidade triste de invisibilidade que muitas mulheres artistas e designers enfrentaram (e ainda enfrentam), especialmente quando atuam em espaços públicos e em profissões tradicionalmente masculinas.


Legado
Além do piso, Mirthes Bernardes manteve uma carreira plural, com exposições nacionais e internacionais, prêmios e trabalhos em diversas técnicas. Seu nome está registrado em coleções importantes e museus, mas é o “Piso Paulista” que permanece seu legado mais visível e acessível — mesmo que muitos desconheçam sua autoria.
Seu trabalho também foi referência para o design urbano brasileiro, inspirando debates sobre identidade, autoria e o papel das mulheres nas artes e arquitetura. Mirthes personifica a intersecção entre arte, arquitetura e cidadania.
No desafio de fazer São Paulo caminhar com identidade, Mirthes criou não só um padrão gráfico, mas um símbolo de resistência criativa e feminina numa cidade em constante transformação.
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