O realismo fantásico de Ana Elisa Egreja

16 de jan. de 2025

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Desde cedo, a artista sempre esteve em contato com a arte e foi na sua infância que percebeu através da pintura maneiras de se expressar - onde as memórias e o imaginário se encontram. Dominando o realismo desde criança, Ana explora diversas temáticas que transcendem o cotidiano promovendo reflexões fora do habitual. Foi ao unir toda sua bagagem que ela firmou seu estilo, com um visual marcante que flerta com o realismo fantástico, brincando com mundos fictícios e trazendo um sentimento de pertencimento e nostalgia.

Conversamos com ela sobre sua vida, processos criativos e elementos que se destacam nas suas obras como as saboneteiras, azulejos e vidros canelados e a forma que eles se transformam em ferramentas capazes de contar histórias. Confira abaixo:

  • Desde muito nova você já sabia que queria trabalhar com arte. Mas qual lugar a pintura, especificamente, ocupava nos seus interesses?

Desde pequena eu sempre gostei de arte. Guardo as memórias de todos os presentes de aniversário e Natal da minha infância.. Eu sempre pedia lápis de cor - alguém viajava e eu pedia Prismacolor, um lápis de cor que não vendia aqui no Brasil nos anos 80. 

Quando eu tinha uns 16 anos, comecei a trabalhar como assistente no ateliê da Marina Saleme, uma artista amiga da minha mãe.. Então ainda no colegial já estava com esse contato direto com as tintas, com um ateliê em atividade. O que me fez tomar a decisão de que no momento de prestar alguma faculdade eu iria fazer artes plásticas. Então depois de três anos trabalhando com ela, eu entrei em artes visuais e lá eu desenvolvi e me apaixonei de vez pela pintura.

  • Em que momento da sua vida você se viu, digamos que, “definida”, por esse estilo de pintura que é característica sua hoje?

Lembro muito desse momento e ele foi depois da minha formação. Eu estava na faculdade de artes no começo dos anos 2000 e naquele momento a pintura tinha muito menos conhecimento, apelo e visibilidade do que tem hoje em dia. Os artistas que estavam fazendo sucesso naquela época eram de performance ou de fotografia. E a pintura estava, de certa forma, esquecida, tanto que alguns dos professores que eram grandes pintores e artistas dos anos 80, falavam que eles continuavam pintando mas que a moda tinha virado. Meu interesse pela pintura se manifestou ali, lendo e aprendendo história da arte, junto com esses professores artistas - Paulo Pasta no centro - e alguns outros amigos, que mais tarde se tornaram o “Grupo 2000e8”.

Quanto à técnica, inicialmente eu pintava de forma muito mais gestual do que hoje, talvez por influência da Marina , que eu trabalhei, quanto do Paulo que era meu professor e orientador, ambos abstratos, bem como dos artistas expressionistas abstratos americanos que tanto adoro. 

Mas eu me via num problema, porque eu tinha um desenho realista, desde criança . Eu sabia, sei desenhar tudo o que eu quero… Eu desenhava as pessoas, as casas que eu morei. Sempre um desenho super cuidadoso e virtuoso. E na pintura, quase abstrata, por essas influências.

Então, foi só quando eu saí da faculdade e que eu fiquei ali na minha casa, livre dos “problemas e modismos acadêmicos”, que eu consegui juntar o meu desenho à minha pintura. E ali, no antigo quarto de brinquedos da casa dos meus pais começou a se formar um ateliê e o pensamento de pintura que eu tenho até hoje, com pinturas realistas feitas através de colagens virtuais, a mistura de elementos eruditos e populares com a mesma importância, tecidos e tintas por todos os lados! 

  • Quais são suas principais influências e como elas te inspiram a criar?

Eu já falei um pouco dessa influência da internet que foi radical para quem viveu, sabe? Eu entrei na faculdade e não tinha internet. E eu saí da faculdade com celular e internet. Então, eu vivi essa transformação de começar pesquisando obras de arte em livros,no mundo analógico e terminar no site, na esfera digital. Por causa dessa profusão de imagens disponíveis na rede, quase todos trabalhavam com pintura figurativa. No meu caso, eu vivia caçando coisas na web, para montar minhas pastas de trabalho, e com elas criava as pinturas. Eu buscava cortinas em sites do mundo inteiro e colecionava essas cortinas, assim como tapetes, azulejos. Desde a minha formação, eu já tinha um grande interesse pelo gênero da pintura de Interior e Natureza morta, ambos desenvolvidos na Holanda no século XVII. Me identifiquei demais com a temática doméstica e o virtuosismo na pintura e é meu grande tema até hoje.

  • Durante a pandemia você poderia ter pintado sobre diversos cenários. Por que pintar saboneteiras, com os azulejos destacados ao fundo?

Acho que preciso voltar um pouco… Em 2016, eu comecei a ficar muito exigente com a representação na pintura  - eu queria pintar um abacaxi em cima de uma mesa de espelho, e não dava pra achar essa imagem na internet. Eu precisei ir na feira comprar um abacaxi, comprar uma mesa de espelho e trazer pra casa. Depois queria pintar um pintinho numa pia: é impossível! então eu aluguei os pintinhos. Assim, eu comecei a precisar encenar e utilizar procedimentos cinematográficos, como aluguel de animais, produção de cenários, alagamentos, produção de objetos… Encenar pra depois pintar. 

Muitos artistas modernistas fizeram isso. Eu retomei um processo criativo do Matisse por exemplo, encenando com tecidos e odaliscas no começo do século XX. 

Em 2020, com a pandemia, ficou impossível ir pra rua, pra 25 de março atrás de cacarecos, alugar casas ou animais, então comecei a trabalhar com meu próprio arquivo. Os azulejos que estavam nas pastas que eu comentei que coleciono há mais de 15 anos.. comecei a trabalhar com eles como um exercício formal. 

Quando eu fiz a primeira pintura de saboneteira e postei, no meio daquele caos de pandemia, eu não sabia que as saboneteiras iam ser um dispositivo afetivo, ter tanta identificação e alcançar um inconsciente coletivo… Fiquei surpresa e depois de pintar muitas e não ver perspectiva de fazer uma exposição com elas pelo avanço da pandemia, lancei o livro “Saboneteiras”.

Nas minhas pinturas, você pode reconhecer um lugar que não existe - e situações reconhecíveis que não existem tem tudo a ver com a minha pesquisa de Realismo Fantástico. Algumas vezes eu consigo condensar numa pintura pequena a potência das grandes… É o caso das saboneteiras, dos vidros e dos pratos.

A escala real, a verdadeira grandeza das coisas, é muito importante para mim. Então, as pinturas grandes são grandes porque as coisas têm o tamanho real do cômodo, 1 para 1. O mesmo acontece com os pequenos formatos.

  • Em muitas de suas obras há o uso dos vitrais. Há alguma lembrança ou motivo específico para imprimi-los nos quadros?

Eu adoro pintar vidro! Tem uma certa subversão da técnica. Pintar com a tinta óleo, que é a mais matérica, uma superfície transparente, translúcida.

Os vidros canelados e martelados pintei pela primeira vez em 2013. Eles são parte da arquitetura brasileira, e tem o nome lindo “vidro fantasia”. E eu sempre me liguei neles ali nas áreas de serviços e banheiros de casinhas antigas... E quando eu pintei o primeiro, eu achei muito interessante o pixelamento da imagem que pode chegar a abstração e essa questão da técnica: a tinta óleo é a tinta mais carnal, cheia de volume - eu adoro esse volume e as possibilidades infinitas dela na chamada “cozinha da pintura “, e o desafio que é pintar o vidro com ela. 

  • Você é uma retratista da realidade cotidiana, mas seus cenários são, de certa maneira, inventados. De que forma você equilibra essa dualidade?

Eu adoro pensar que a pintura nunca é um fato real, a pintura é sempre um fato pictórico, mas por ser pintada de forma realista, muita gente tem uma interpretação de que aquele lugar é real, de que eu visitei aquele lugar para pintar daquela maneira. E eu adoro essa confusão, eu me identifico com o Realismo Fantástico, o movimento de literatura latino-americano, que, assim como faço na pintura,  utiliza recursos linguísticos que confundem o  tempo, o espaço, com metáforas e confusão geográfica e temporal, e a gente sempre fica em dúvida se aquilo existiu ou não. Situações improváveis, mas não impossíveis.

  • Quais são suas aspirações para o futuro? Tem algum projeto ou algo específico que queira realizar?

Eu quero expor uma série que venho produzindo há dois  anos - pinturas que falam da passagem da vida e dos símbolos que cada cor tem durante essa passagem... Estou trabalhando duro nesse projeto, espero poder fazer uma exposição com elas em breve!