RAF SIMONS: Deus abençoe a América

8 de fev. de 2018

-

A passarela estava pronta para um grande banquete com frutas, vinho e muita comida. Apesar de todos terem a sensação de festa, o tom era mais sombrio e macabro do que de celebração. Como se algo triste e belo fosse acontecer.


Em seu último desfile, Raf Simons usa o ícone do cinema oitentista, Christiane F, como inspiração. Mas essa não é a primeira vez em que o estilista utiliza o retrato da personagem em seu trabalho. Já que em 2001, ele também a referenciou em sua coleção de Outono. Baseado no livro "Eu, Christiane F - 13 anos, drogada e prostituída"a publicação relata uma história real de uma jovem alemã na efervescente Berlin do final dos anos 70 e no ápice do consumo de heroína e música eletrônica no País. Com participação de David Bowie, o  longa repleto de controvérsias, tornou-se um clássico por retratar de forma bastante real o cotidiano da juventude europeia naquele período. No entanto, em 2001 Raf trouxe mais a intensidade e autenticidade naquele momento para agora expor o exagero e glamourização.


E haveria período melhor para isso do que agora? Alguns meses depois do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, declarar uma epidemia de opióides como emergência  nacional. Ou seja: o consumo de heroína e remédios derivados do ópio- mesmo quase quatro décadas depois - é um problema de saúde pública grave. E para apontar isso de maneira mais política, Raf revisita sua própria estética e história para lançar um novo olhar.

E será que em pleno 2018, falar sobre o consumo de drogas não é algo datado? Raf é mais assertivo do que nunca ao ter Christiane F como referência, pois overdose e dependência química voltou a ser um tema tão atual quanto antes. Num momento em que artistas com menos de 21 anos morrem pelo uso excessivo de tóxicos e expõem tudo isso em suas redes sociais.

É óbvio que o desfile de Raf não soluciona a questão, mas cria uma narrativa que talvez os norteamericanos não queiram enxergar, nem os jovens de todo o mundo. Há quem diga que o Hip Hop tem seu papel nessa história atual e  contribui na glamourização das drogas. Nitidamente um viés preconceituoso, já que a epidemia acontece em bairros residenciais brancos, em sua maioria. Mas, o estilista traz algo bem mais profundo e que está no alicerçado do “american way of life’. É a hora que a anestesia norteamericana para esconder os problemas é injetada e que o consumismo volta à pauta. Por conta de sua nomeação para diretor criativo da Calvin Klein, Raf se mudou para os EUA. Dizem que isso o deixou com um olhar comercial mais apurado. Sobretudo, ele segue criticando o consumo a partir de um desfile que traz looks com linguagem mais popular. É confuso, mas ele critica o consumo sendo ainda mais comercial. Coisa de gênio, senhoras e senhores.


Os moletons com ‘Drugs’ estampados no peito – e que certamente será um hit de vendas - é uma referência à peça homônima escrita por Cookie Mueller e Glenn O'brien - que eram da turma de Andy Warhol nos áureos tempos da Factory. Onde ser livre, criativo e transgressor era sinônimo de experimentar e consumir drogas em excesso. Outro exemplo de glamourização, mas como é um recorte histórico e majoritariamente branco, é bem aceito.


Raf usa cores vibrantes e tons terrosos para deixar o assunto mais atraente e menos sombrio, afinal, o olhar comercial americano é para vender, não é mesmo?O styling do desfile é de chorar de tão bom, as blusas de gola alta de longe parecem cachecóis. Depois parece ser uma peça só e por fim, descobrimos que ele utiliza o volume das blusas e os caimentos para dar essa impressão. AULA DE  S-T-Y-L-I-N-G.


O desfile, apesar do espetáculo, é mais sobre construção de imagem. É sobre a embalagem, muito mais sobre a capa do livro, mas não seu conteúdo. Afinal, ninguém quer se aprofundar, todo mundo quer se anestesiar e usar a liberdade como disfarce.

Ficam aqui apenas os nossos votos de que Raf abençoe a América.