A Democracia Corinthiana: o grito que ecoou nas arquibancadas e fora delas

Jun 5, 2025

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Quando o Futebol Jogou pela Democracia

Em pleno início dos anos 1980, enquanto o Brasil ainda vivia sob os ventos autoritários da ditadura militar, um dos mais improváveis movimentos de resistência política surgiu dentro de um clube de futebol. A Democracia Corinthiana não foi apenas um experimento de autogestão esportiva — foi um ato de subversão simbólica que transpôs as quatro linhas do campo e entrou para a história como um gesto político ousado e necessário.

Liderado por jogadores como Sócrates, Wladimir, Casagrande e Zenon, o Corinthians se transformou em um laboratório de democracia direta, onde decisões que iam do horário de treinos às contratações eram tomadas por votação coletiva. Em um país onde o povo não podia eleger seu presidente, ver um time inteiro tomando decisões em conjunto, com igualdade de voz entre jogadores, comissão técnica e até funcionários, era revolucionário.

Mais do que um modelo de gestão, era um símbolo de luta por liberdade. Os jogadores usaram sua visibilidade midiática como plataforma política, posicionando-se publicamente a favor das Diretas Já e levando faixas e discursos engajados para dentro dos estádios. O futebol, então, assumia um papel de agente político — e mostrava que, mesmo no epicentro da cultura de massa, era possível resistir, provocar e transformar.

Esse movimento, nascido dentro de um clube popular e majoritariamente operário, escancarou o potencial democrático do esporte. Foi um grito coletivo por participação, liberdade e cidadania, que reverberou muito além do gramado. Um futebol jogado com consciência — e com coragem.

Em plena ditadura militar, quando a censura calava vozes e o voto direto parecia um sonho distante, o Corinthians fez algo improvável: transformou o futebol em um ato de resistência. Entre 1982 e 1984, o clube não jogava só dentro das quatro linhas — ele ensaiava uma democracia real, de verdade, em pleno coração de um Brasil autoritário.

O Corinthians vivia uma crise pesada, com dívidas e decisões concentradas nas mãos de poucos. Foi aí que entrou em cena Adílson Monteiro Alves, sociólogo e novo diretor de futebol. Ele mudou tudo: propôs que o clube fosse gerido de forma coletiva. E não era só da boca pra fora. Roupeiros, jogadores, comissão técnica, diretoria — todo mundo tinha o mesmo peso nas reuniões semanais. Treinamento, escalação, design da camisa… Tudo era decidido em conjunto. Em um país acostumado ao “manda quem pode”, abrir espaço para o debate era quase revolucionário.

O movimento precisava de um nome à altura. Foi num debate no TUCA, com mediação de Juca Kfouri, que Washington Olivetto rabiscou “Democracia Corinthiana” num guardanapo. Pronto: ali nascia um símbolo. Ele topou fazer tudo de graça — com uma condição: que ninguém usasse aquilo como trampolim político. Ironicamente (ou não), alguns dos envolvidos depois viraram políticos. Mas ali, naquele momento, o espírito era outro: era liberdade, era autonomia.

Não foi só um modelo de gestão. Foi uma atitude. Um posicionamento. E ninguém encarnou isso melhor que Sócrates. Médico, craque, carismático — ele foi o porta-voz de um novo jeito de ser atleta. Fez discursos em comícios, usou a camisa “Eu quero votar para presidente” e até prometeu ficar no Brasil se a emenda das Diretas Já fosse aprovada. Não era só futebol. Era um ato político. Ao lado dele, Wladimir era o equilíbrio. Menos midiático, mas essencial. Era ele quem organizava, escrevia pautas, mantinha o movimento firme. Casagrande, jovem e explosivo, era a alma rebelde da turma, a cara da juventude que queria mais do que só jogar bola. E tinha ainda Biro-Biro e Zé Maria — operários da bola que provaram que democracia também se constrói com humildade, suor e coragem de falar, mesmo sem holofote.

O que nasceu dentro do Corinthians logo escapou do campo. Escolas criaram grêmios estudantis, sindicatos passaram a fazer assembleias abertas, empresas começaram a testar decisões coletivas. A ousadia do Timão virou inspiração para quem queria mudar o Brasil por dentro.

Nesse contexto, os clubes de futebol abriram caminho para um outro espaço de representação e tomada de decisão. Naquele momento parecia ser possível que o modelo de gestão dos clubes caminhariam para um lugar de diálogo, reconstruir relações de poder e transformação para lidar com conflitos e decisões.

Através dela, nos mostrou que futebol e política não estão em mundos separados. Mostrou que o que acontece em meios aos gramados reflete — e muitas vezes antecipa — o que a sociedade inteira está vivendo.

Ela não ficou só no discurso bonito. Dentro de campo, vieram dois Campeonatos Paulistas. Fora dele, o clube zerou dívidas que pareciam eternas. Com todo mundo participando, o Corinthians se mostrou mais eficiente, mais engajado. Provaram que dividir o poder não enfraquece. Fortalece.

Não obstante, a convivência e o debate constante ensinaram que a democracia não é apenas um regime de governo — mas sim um estilo de vida. Foi por meio de reuniões, nos vestiários, nos momentos de decisão, que jogadores, técnicos e funcionários descobriram que a voz de cada poderia — e pode, importar. Nisso, a suma maioria deram lugar aos ouvidos para ouvir, mas também para discordar e chegar a consensos. A consciência ultrapassou o estádio e se espalhou pelo país como inspiração para outras formas de participação coletiva.

Em 1984, o vento mudou. A profissionalização do futebol exigia negociações rápidas, contratos milionários, centralização. A derrota de Adílson numa eleição interna selou o fim do experimento. Ironicamente, a própria democracia interna decidiu encerrar a Democracia Corinthiana. A ideia não faleceu, mas virou símbolo. Como referências para gerações futuras — mesmo diante de exigências do sistema profissionalizado — a participação coletiva e a busca por igualdade de voz deixam marcas profundas. De tal modo, essa memória afeitva se torna uma espécie de legado, que transcende o gramado e ecoa na luta por direitos, nas assembleias de trabalhadores, nos grêmios estudantis e nas rodas de conversa de política.

Décadas depois, essa história ainda ressoa. Porque ela nos cutuca com uma pergunta simples e incômoda: por que temos tanto medo de dividir o poder? Se uma equipe de futebol comprovou que decisões compartilhadas geram excelência, por que aceitamos estruturas concentradas? Ela continua aí, como um convite.

Communication and Projects Assistant

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