As diferentes labels de Comme des Garçons

Nov 11, 2025

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Compreender a Comme des Garçons é entender que o próprio conceito de marca se desfaz em múltiplos corpos. O império construído por Rei Kawakubo desde 1969 nunca se limitou a uma só identidade, mas se espalhou por diferentes labels, cada uma com seu papel dentro de um sistema que ela mesma criou. Essas linhas funcionam como variações de uma mesma linguagem, cada uma explora uma dimensão do vestir, do consumo e da imagem.

A label principal, Comme des Garçons, é o eixo central. É nela que Kawakubo apresenta as coleções conceituais que moldaram o imaginário da moda contemporânea. Desde os anos 1980, suas apresentações são mais ensaios visuais do que desfiles. A marca original é o laboratório, o espaço de desconstrução de formas, volumes e sentidos. Cada temporada é uma reflexão sobre corpo, identidade e estrutura. É onde nasce o pensamento estético que alimenta todas as outras linhas. Não há intenção de agradar, mas de deslocar. O prêt-à-porter (Pronto para vestir) de Kawakubo sempre esteve mais próximo da arte do que da indústria.

Em paralelo, Comme des Garçons Homme e Comme des Garçons Homme Plus surgiram como ramificações masculinas. O primeiro, criado no fim dos anos 1970, mantém o equilíbrio entre alfaiataria tradicional, acessível e experimentação discreta. O segundo, lançado em 1984, tornou-se o espaço onde Kawakubo estende ao guarda-roupa masculino o mesmo impulso conceitual da linha principal. É nas campanhas de Homme Plus que ela inverte proporções, questiona gênero e propõe uma nova leitura da roupa masculina, sendo também uma das labels que mais consolidou o vínculo da marca com o universo dos desfiles de Paris, traduzindo a estética avant-garde para o corpo do homem.

Nos anos 1990, quando o mercado global começou a exigir diversificação, nasceram novas faces. Comme des Garçons Shirt explorou o básico reconfigurado. Camisas, estampas, cortes simples, mas sempre deslocados de um ponto de equilíbrio tradicional. O foco estava no produto, na leveza e na repetição, sem abrir mão da lógica de subversão. Ao contrário da linha principal, voltada para o conceito, shirt pensava o cotidiano. Era uma forma de democratizar o pensamento de kawakubo sem diluir sua assinatura.

A virada dos anos 2000 trouxe o que se tornaria o braço mais popular da maison: Comme des Garçons Play. Criada em 2002, a Play foi a resposta direta à expansão do streetwear e à nova geração de consumidores. O coração com olhos, desenhado pelo artista filipino polonês Filip Pagowski, tornou-se um dos símbolos mais reconhecíveis da moda contemporânea. A simplicidade das peças, t-shirts, moletons, cardigãs, contrastava com o peso conceitual das outras linhas. Era um produto acessível, mas que claramente carregava a identidade de ser Comme des Garçons, ainda que apenas um braço, era talvez a porta de acesso para um grande público. A força de play está justamente nessa dualidade, o símbolo leve sustentado por uma história densa.

Há ainda a Comme des garçons Homme Deux, lançada como uma vertente mais formal e direta da linha masculina, e a Comme des Garçons Girl, que introduz leituras mais delicadas, sem abandonar a estranheza que define o DNA da maison. Cada uma dessas variações nasce de uma necessidade de linguagem, não apenas de público. Kawakubo entende a marca como um sistema de múltiplas vozes, um organismo onde cada célula tem função própria.

Em meio a esse ecossistema, surge também a Comme des Garçons Parfum, que desde 1994 redefiniu o conceito de fragrância como extensão de identidade. O primeiro perfume, Comme des Garçons Eau de Parfum, rompeu com a ideia de aroma tradicional, trazendo notas de pimenta, cravo e madeira seca. A linha se expandiu com o tempo, mas manteve o mesmo espírito, perfumes provocativos e totalmente diferentes. Os frascos e embalagens, criados em parceria com designers como Marc Atlan, transformam o ato de consumir em uma experiência estética.

A presença da Comme des Garçons Black também merece destaque. Criada em 2008, em plena crise econômica global, a linha surgiu como resposta à recessão. Era uma forma de oferecer produtos mais acessíveis sem abandonar o discurso da marca. O nome, mais do que uma cor, representava um estado de espírito.

Entre as ramificações menos discutidas, mas fundamentais para entender a estrutura da marca, estão Comme des Garçons Shirt e Comme des Garçons Wallet. A primeira, lançada nos anos 1980, nasceu como uma reflexão sobre o objeto mais universal do vestuário masculino, a camisa. Dentro dela, Kawakubo aplica as mesmas estratégias de desconstrução da linha principal, mas em escala reduzida. As camisas são cortadas em blocos de cores, tecidos sobrepostos e padrões que desafiam a simetria. É a tradução do rigor da Comme des Garçons em uma peça de uso diário. A Shirt funciona também como espaço de colaborações, reunindo artistas e marcas como Supreme, Invader e Futura em edições que tensionam a fronteira entre o streetwear e o design de moda.

Já Comme des Garçons Wallet surgiu a partir da demanda de traduzir o universo conceitual da marca em objetos funcionais. Lançada nos anos 2000, a linha é focada em acessórios de couro e pequenos artigos, como carteiras, bolsas e cases, reconhecíveis pela precisão geométrica e paleta de cores vibrantes. As peças mantêm o mesmo pensamento minimalista da Play, mas com acabamento e materiais que reforçam a herança artesanal japonesa. Em um sistema de moda cada vez mais guiado por colaborações, Wallet se consolidou como uma das portas de entrada mais diretas ao universo CDG, equilibrando o luxo e a acessibilidade, o funcional e o simbólico.

Por fim, temos a Comme des Garçons Comme des Garçons, conhecida também como Comme Comme, uma subdivisão criada exclusivamente para abordar roupas que além de criar, Rei Kawakubo gosta de vestir.

Essa multiplicidade de labels pode parecer confusa para quem observa de fora, mas dentro da lógica da marca, é o que garante sua coerência. Kawakubo sempre evitou a ideia de evolução linear. Cada label é uma ramificação de uma mesma pergunta: o que é vestir? Enquanto a maioria das marcas constrói hierarquias entre o conceitual e o comercial, a comme des garçons constrói ecossistemas.

A fragmentação também é uma forma de preservar a independência criativa. Cada linha tem sua própria estrutura, seu próprio público e seu próprio ritmo de lançamento. Isso permite que a maison atue simultaneamente em diferentes esferas, do luxo ao streetwear, do museu ao varejo.

A Comme des Garçons não é uma marca unificada, mas uma rede de discursos. Suas labels são como dialetos de uma mesma língua, cada uma traduz à sua maneira a tensão entre forma e sentido, conceito e corpo, arte e consumo e o resultado é uma das obras mais completas da moda moderna, não por sua coerência, mas por sua capacidade de permanecer em movimento.

No fim, todas essas subdivisões retornam a uma mesma origem, a ideia de que a roupa é um pensamento. E pensar, para rei kawakubo, é nunca se repetir.

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