Brutalismo Tropical: Como o brutalismo foi traduzido no Brasil?

Nov 14, 2025

-

Entre o fim dos anos 1950 e o início dos 1970, a arquitetura brasileira viveu uma mudança profunda. O ciclo do modernismo de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa já havia consolidado o país no mapa da arquitetura mundial, com Brasília como símbolo máximo de utopia. Mas, em São Paulo, uma nova geração de arquitetos começava a rejeitar a ideia de monumento e a aproximar o projeto do cotidiano, das universidades, das fábricas e das ruas. É nesse ponto que nasce o chamado brutalismo brasileiro, ou o que mais tarde se convencionou chamar de “brutalismo tropical”.

A origem do termo brutalismo remonta ao béton brut de Le Corbusier, o concreto cru, aparente, que não esconde as marcas da construção. No Brasil, essa linguagem se desenvolveu de modo particular, não como mera tradução do modelo europeu, mas como resposta direta à realidade material e social do país. A industrialização ainda era limitada, o acesso a materiais era desigual e o trabalho de pedreiros e mestres de obra definia a fisionomia dos prédios tanto quanto o traço dos arquitetos. O resultado foi um brutalismo com textura humana: menos sobre rigidez formal e mais sobre adaptação.

Em São Paulo, a chamada Escola Paulista de Arquitetura representou esse movimento de forma mais contundente. Liderada por Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha, Lina Bo Bardi e outros nomes, ela questionava a distância entre arquitetura e sociedade. O projeto moderno carioca, marcado pela leveza escultórica e pelas curvas de Niemeyer, era visto como uma arquitetura voltada ao Estado e à monumentalidade. Em oposição, a vertente paulista buscava clareza estrutural, espaços coletivos e função social. As obras da época, como o edifício da FAU-USP e o Ginásio do Ibirapuera, foram concebidas mais como equipamentos públicos do que como obras de assinatura.

O edifício da FAU-USP, inaugurado em 1969, sintetiza esse pensamento. Projetado por Artigas, o prédio é quase uma cidade interna. Não há corredores fechados, nem hierarquia espacial. Tudo se conecta por uma grande rampa central, e os estúdios, abertos, incentivam a convivência e o diálogo. O concreto aparente não é um artifício estético, mas o registro da construção, um documento material. A ideia de transparência, tanto física quanto ideológica, atravessa toda a obra. Era uma arquitetura que expressava, em forma, o ideal de universidade pública e democrática.

Paralelamente, Lina Bo Bardi desenvolvia uma abordagem mais experimental e sensível. Nascida na Itália, Lina chegou ao Brasil em 1946 e se estabeleceu entre São Paulo e Salvador. Seu trabalho não se limitava à arquitetura, envolvia design, curadoria e pesquisa cultural. No MASP, Lina criou uma estrutura que sustentava as obras suspensas, afastando o museu da noção de templo da arte. No SESC Pompeia, reconfigurou uma antiga fábrica de tambores num centro de lazer e convivência, preservando os vestígios industriais e inserindo blocos de concreto ligados por passarelas. A materialidade bruta convivendo com improviso e afeto sintetiza o que se passou a chamar, muito depois, de “brutalismo tropical”.

A expressão “tropical” aqui não indica exotismo ou cor, mas a adaptação de uma técnica importada às condições reais do país. O concreto aparente se mostrou ideal para o clima úmido e quente: resistente, econômico e eficiente no controle térmico. Os brises, pilotis e coberturas profundas respondiam à insolação. Mas, mais do que clima, tratava-se de adequação cultural, a incorporação do improviso construtivo, da textura manual e da imprevisibilidade local. O resultado foi uma arquitetura que, mesmo em obras públicas monumentais, carregava o gesto artesanal.

Durante os anos 60 e 70, o brutalismo brasileiro passou a ser também um gesto político. Muitos dos arquitetos ligados à FAU-USP foram perseguidos pela ditadura militar, e suas obras continuaram a abrigar espaços de crítica e debate mesmo sob censura. O concreto cru, direto, sem revestimento, passou a simbolizar integridade. Era uma recusa à aparência e à ostentação. Cada viga exposta e cada pilar visível afirmavam a ideia de verdade estrutural, num momento em que a política operava na base da aparência.

A linguagem se expandiu pelo país. No Nordeste, João Filgueiras Lima, o Lelé, levou o pensamento brutalista para uma dimensão mais técnica e social. Com sistemas pré-moldados, criou hospitais, escolas e centros de reabilitação, entre eles a Rede Sarah, que combinavam engenharia precisa e sensibilidade climática. No Recife e em Salvador, arquitetos como Acácio Gil Borsoi e Mário Cravo Neto adaptaram o concreto às dinâmicas regionais, explorando a ventilação natural, o sombreamento e a integração entre paisagem e edificação.

Nos anos 80 e 90, com a redemocratização e a privatização dos grandes projetos públicos, o brutalismo perdeu força. As construtoras passaram a priorizar custo e velocidade, e a arquitetura se distanciou da dimensão pública que a movia. Muitas obras da era brutalista se deterioraram, e apenas recentemente passaram a ser reconhecidas como patrimônio. Hoje, o brutalismo tropical é revisitado não como estilo, mas como um modo de pensar a cidade, direto, funcional, acessível e coletivo.

A força desse período está na coerência entre forma e propósito. O brutalismo brasileiro não nasceu de manifesto, mas de contexto. Nasceu da tentativa de projetar com os recursos disponíveis e de transformar o espaço em ferramenta pública. Entre as décadas de 1950 e 1970, essa linguagem construiu a paisagem de universidades, centros culturais, museus e ginásios. Mais de meio século depois, suas estruturas continuam de pé, não apenas como obras, mas como testemunhos de uma arquitetura que acreditava no coletivo, na honestidade construtiva e na ideia de que o espaço é, acima de tudo, uma forma de resistência.

Writing Assistant

Writing Assistant