Entre tradição, moda e cultura: o surgimento das tabis

Aug 5, 2025

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Entre tradição, moda e cultura: o surgimento das tabis.

Originalmente criada no Japão, a Tabi nasceu como um calçado prático, usado por trabalhadores que evoluiu ao longo dos séculos, ligado fortemente à cultura local. A chegada de Martin Margiela nos anos 1980 transformou esse símbolo ancestral em um ícone de moda conceitual — abrindo um novo capítulo que une a herança artesanal à provocação estética.

Hoje, com mais de 178 milhões de visualizações no TikTok e um aumento de 342% nas buscas no Google, a Tabi voltou ao centro das conversas culturais. Enquanto uns a veem como peça de culto fashion, outros questionam sua popularização digital e o valor real por trás do hype.

Dos trabalhos e atividades domésticas às passarelas, a Tabi segue desafiando ideias de beleza, dos padrões e identidade. Exploramos sua história, contradições e o impacto do calçado que continua até hoje. Confira abaixo:

Surgimento e origem

Sendo mundialmente reconhecida através de uma das maisons mais icônicas, as "Tabis” possuem uma narrativa muito mais antiga do que a própria existência da Margiela, mostrando que sua jornada não começou dentre as passarelas e na alta-costura, e sim num mergulho ancestral nas tradições japonesas.

Apesar de registros comprovarem um possível surgimento dos calçados a partir do século VIII —durante o período Nara (710–794) —, as Tabis surgiram no Japão no século XV, como sandálias tradicionais chamadas de zori ou geta. Apesar da clássica separação entre os dedos aparentar ser algo simplesmente estético, é proposital, marcada para ter melhor aderência, estabilidade e conforto.

Naquela época, a país já desenvolvia uma cultura de vestimentas mais refinadas, que além de ser influenciada pelas trocas com a China e Coreia, era adaptada ao clima e as estruturas sociais. Seu surgimento não só trouxe um formato icônico como conhecemos hoje, como também mostrou que mesmo durante aquele tempo, cada cor, material ou textura tinham propósitos. Como por exemplo, as cores que indicavam status e poder eram representadas em roxo e dourado para a nobreza, enquanto aos pobres eram limitados a cor azul, e ainda ‘tabis brancas’ — que simbolizava a pureza — eram utilizadas em ocasiões formais, tais como: chás, eventos religiosos e ambientes tradicionais; como em templos, em exemplo: o Noh.

Por meio da abertura comercial com a China, as Tabis naquele tempo se tornaram mais acessíveis, graças a maior disponibilidade do algodão, que era um dos materiais mais utilizados na confecção das sandálias para a população em geral. Uma curiosidade, é que mesmo sendo um item tão comum na época, muitos não o utilizavam, como por exemplo as cortesãs — mulheres da alta sociedade que ofereciam companhia, entretenimento e relações sexuais a homens —, pois os pés descalços eram considerados eróticos.

Em diversas paletas, materiais, de cano alto ou baixo, em todas as suas versões as Tabis vem se destacando como item intrigante ao longo do anos. Seu visual futurista conseguiu transcender as origens japonesas do século XV e se tornar algo cotidiano e presente no guarda roupa de muitos para além de integrantes da cultura, mas também para os amantes da moda e dos designs japoneses.

Materiais, cotidiano e processo de criação

Refletindo o porte e tecnologia do Japão, os materiais usados nas Tabis apenas comprovam a potência do país. Inicialmente, os modelos eram feitos em couro, em específico couro de veado — que eram exclusivamente separados para a nobreza. O couro possuía uma proteção duradoura e resistente à água, aspectos que eram importantes para as atividades ao ar livre da aristocracia daquele tempo.

Com o tempo, durante o século XIV o algodão revolucionou a produção das sandálias, tornando-as mais acessíveis e confortáveis à todas as classes. Era mais respirável, prática e ideal para o clima úmido japonês. Tal mudança marcou não só a maneira como as tabis era usadas no cotidiano como também rompeu barreiras sociais da época. E com a evolução dos materiais, os artesãos refinaram ainda mais suas produções. A seda passou até ser usada para versões mais sofisticadas, delicadas e cerimoniais.

Apesar de aparentar ser somente mais um item cultural e cotidiano, para a sociedade tradicional japonesa, a tabi era mais que um simples calçado. E sendo mais que uma peça do guarda-roupa, ela possuía momentos importantes como: cerimônias do chá, casamentos e festivais religiosos — adquirindo um valor sagrado além da função básica.

Trocar de Tabi marcava transições sociais, que eram demarcadas por suas cores e padrões que poderiam variar também conforme a estação, idade e status. A Tabi branca, por exemplo, era reservada a ocasiões solenes, simbolizando pureza e respeito. Esse sistema revelava a profundidade da cultura visual japonesa.

No dia a dia, elas acompanhavam a pessoa em todos os afazeres domésticos até os profissionais. Seu design facilitava o movimento dentro das casas japonesas, onde as pessoas se movimentavam agachadas ou ajoelhadas. Em suma, as Tabis eram um reflexo do estilo de vida local.

Para alem da sua função doméstica e estética, o design da Tabi com dedo separado atende a princípios biomecânicos específicos. Seu formato permite que o dedão — que é essencial para equilíbrio e propulsão — se mova de forma independente. Essa liberdade melhora a estabilidade e a percepção corporal, que são bases fundamentais pro caminhar em terrenos irregulares. O dedão é responsável por cerca de 80% da propulsão ao andar. Então, com essa separação o calçado consegue reforçar a força intrínseca dos músculos do pé, ajudando a evitar problemas comuns causados por sapatos convencionais fechados.

Os benefícios da Tabi romperam com o ambiente de trabalho e chegaram ao universo esportivo. Artes marciais como judô, caratê e aikido adotaram o calçado por sua aderência e estabilidade superiores. Sua estrutura, como já dito, favorecia a distribuição do peso, ativava músculos profundos do pé além de aprimorar a performance em movimentos que exigem precisão e equilíbrio. Até mesmo corredores minimalistas passaram a utilizá-la, comparando a experiência a correr descalço, agora com proteção.

Ascensão e entrada no universo da moda

O ato de transformar meias em sapatos iniciou no final do século XIX , com a introdução do jika-tabi, que significa: "Tabi para o chão", que eram feitas com um solado de borracha para andar diretamente no solo, sem precisar de outro calçado por cima. Essa adaptação fez com que o sapato se adequasse melhor as atividades do dia a dia, inclusive para trabalhos mais intensos. Hoje, ainda pode se ver Tobi Shokunin — operários de construções civis —, no Japão, que utilizam desses modelos agora de forma repaginada, com biqueiras de aço.

1951 foi o ano que marcou a introdução e ascensão das tabis no mundo. Essa popularização se decorreu graças ao maratonista japonês Shigeki Tanaka, que venceu a Maratona de Boston utilizando como tênis de corrida os clássicos sapatos com dedos separados. Tal momento despertou não só a atenção do globo, como também de grandes marcas como a Nike, que acabou lançando o Air Rift em 1996, um tênis com a icônica divisória, feito para melhorar o equilíbrio e o movimento dentre as atividades físicas.

Contextos, surrealismo e o belo

Nos anos seguintes, graças também a ascensão, sua entrada na indústria da moda era algo já marcado para ocorrer. No entanto, não foi somente por esse contexto isolado e — propriamente dito —, que seu surgimento no meio se decorreu, mas também por causa das influências do século XX, como a Guerra Fria, corrida espacial e por movimentos filosóficos como o estruturalismo e minimalismo.

Neste momento de Pós-Segunda Guerra e início da Guerra Fria, a busca pelo diferente, ousado, ou até estranho começou. Temas clássicos deste período como o New Look de Dior — marcado pela feminilidade nas silhuetas, curvas e luxo após a escassez da guerra, foi se moldando em paralelo à existencialistas franceses que já começavam uma contracultura, dentre os anos 50 que usavam preto e roupas austeras.

E perante à essa troca de valores, o que antes era belo, límpido e estético passou a ser estranho, carregado de simbolismos, metálicos, geométricos e até mesmo plásticos. E neste mesmo período conturbado que nasceu o Surrealismo, dentre os anos 1924 e 1950; movimento que propunha desestabilizar o olhar tradicional sobre o corpo e a roupa, brincando com símbolos, desejos ocultos, humor ácido e erotismo.

Já na década de 60, a corrida espacial teve seu papel de destaque — mesmo que não diretamente. Seu papel influenciou desdobramentos estéticos e conceituais, na moda ou na arte pop futurista. E apesar daquele surrealismo — de André Breton, Salvador Dalí e cia — não estar mais presente na época dessa corrida, a sua essência se reverberava ainda na busca do extraordinário, pelo vislumbre e do sonho, que eram linguagens e códigos que haviam dentro do surrealismo.

A corrida espacial, principalmente entre 1957 e 1969, mexeu com o imaginário coletivo e se voltou para o espaço, o futuro, o desconhecido, o além da Terra. O que ocasionou o destaque de grandes designers como Pierre Cardin, André Courrèges e Paco Rabanne, que começaram a criar roupas que pareciam trajes espaciais — prateadas, geométricas, com plásticos e metal. A estética em si, não era surrealista no sentido tradicional, porém flertava com o estranho, o irreal e o simbólico, conceitos que eram baseados no surrealismo.

Além disso, o movimento não parou na moda. Se estendeu ao design e a arquitetura, em formas abstratas, flutuantes e estruturas que pareciam ou desafiavam a lógica. E por fim, esse momento também marcou a psicodelia e o escapismo — onde muitos nessa idealização e busca do estranho, o desconhecido e o cosmos, se misturaram ao uso de drogas psicodélicas, arte pop, espiritualidade e uma vontade coletiva de fugir da realidade.

Inspiração da Maison Margiela

Em detrimento aos acontecimentos passados, a estética futurista de Courrèges e Cardin influenciaram a Maison Margiela — mostrando um universo de possibilidades da roupa como meio de expressão minimalista, surreal e estranhamente belo.

Inspirado numa viagem ao Japão, Martin se sentiu motivado, mais uma vez à desafiar os padrões da moda impostos naquela época. Com isso, ele apresentou a sua própria versão das botas Tabi em seu desfile de estreia de Primavera/Verão 1988. O desfile foi marcado por um cenário teatral e ao mesmo tempo sombrio das modelos com rostos cobertos, deixando pétalas de rosa caindo no chão enquanto desfilavam as roupas.

A proposta era clara: criar uma versão da Tabi “invisível", que de certa forma, fizesse uma ilusão de um pé descalço caminhando sobre um salto grosso. Tamanha radicalidade chegou a ser um impasse para os sapateiros daquela época que se recusaram a fabricar o modelo. Só virou realidade quando um artesão italiano quase aposentado, Sr. Zagato, aceitou o desafio de faze-lô.

Por fim, o calçado não só se consolidou como um clássico, como ganhou releituras a cada nova temporada. No início, por conta do baixo orçamento, Margiela costumava repintar os pares de botas Tabi que não haviam sido vendidos — prática que logo se transformou em uma decisão estética e parte fundamental do ethos da marca, voltado pra reciclagem e reinvenção.

Martin Margiela claramente não inventou as Tabis, mas ele certamente demonstrou com excelência sua visão criativa e talento em desconstruir formas já estabelecidas para manifestar novas ideias.

O impacto das Tabis na Alta-Costura

Transcendendo fronteiras culturais e estéticas, a Tabi desencadeou uma revolução. Designers encontraram nela e através dela, uma fonte de inspiração, marcada pela ideia infinita de reinventar códigos da moda ocidental. Além de grandes maisons adotarem a silhueta, cada um em sua própria visão, fotógrafo, stylists e artistas foram impactados por seu design — tornando-se um símbolo moderno universal.

Tabificação e o online

Hoje, nos auge do consumo de tendências, as botas Tabi conquistaram o TikTok com o viral do Tabi Swiper, que somam mais de 178 milhões de visualizações e ainda provocam um aumento de 342% nas buscas no Google. Mesmo sendo vistas como símbolo de estilo disruptivo e moderno, a ponte entre tradição e a tendência global revela como a cultura se transforma ao circular pelo mundo. As Tabis saíram das ruas de Kyoto para as passarelas de Paris e, mais recentemente, para o feed frenético das redes sociais.

Essa trajetória reforça seu poder simbólico: elas não são apenas um calçado, mas um questionamento em forma de design — sobre beleza, estranhamento e status. Com o avanço da “tabificação”, vemos o retorno das Tabis ao cotidiano. Muitas empresas das indústrias de calçados absorveram o formato do dedão separado e multiplicaram suas variações para tênis, mocassins, sandálias e botas; que replicam agora o design Tabi em versões acessíveis.

Hoje, principalmente a Geração Z enxerga na Tabi não apenas um item de moda, mas uma afirmação de identidade. Ao escolher uma peça com peso histórico e visual, eles buscam mais do que estilo, mas sim identificação e propósito.

Legado que rompeu a cultura

O formato com o dedão separado ressurge em múltiplas versões e plataformas, de tênis esportivos a virais no TikTok, provando que o poder das Tabis está em sua capacidade de adaptação. Elas deixaram de ser apenas um calçado para se tornarem linguagem visual, um manifesto silencioso sobre tradição, inovação e o direito de ser diferente. Assim como Jean-Baptiste Alphonse Karr disse: “Quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas”, as Tabis deixaram de ser apenas um calçado: agora são uma linguagem, que fala sobre tradição, inovação e ruptura estética.

Assistente de redação

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