Muhammad Ali e suas lutas fora dos ringues

Aug 25, 2025

-

Cassius Marcellus Clay Jr.: 61 lutas dentro dos ringues, 56 vitórias e apenas 5 derrotas. A escolha de melhor boxeador de todos os tempos é subjetiva à análise, mas todos sabem quem foi o maior. Grandioso não apenas por todos os nocautes e por suas performances e frases marcantes, mas por ser uma síntese na luta por direitos civis e um símbolo de resistência contra a injustiça.

Quando Cassius Marcellus Clay Jr. venceu Sonny Liston em 1964 e se tornou campeão mundial dos pesos pesados, ele tinha apenas 22 anos, um carisma incendiário e um estilo de luta que contrariava as normas do boxe.

Rápido demais para um homem de sua envergadura, lutava com as mãos baixas, desafiando os golpes e apostando em reflexos e footwork para dominar os adversários. Mas o que o tornaria um dos personagens mais marcantes do século XX não estava apenas na maneira como se movimentava no ringue — e sim na maneira como transformou cada vitória e cada aparição pública em plataforma política.

Pouco depois de conquistar o título, Clay anunciou que havia se convertido ao Islã e adotado um novo nome, que ficaria marcado nos livros de história: Muhammad Ali.

“Clay era o nome de um homem branco. Era um nome de escravo. Eu não sou mais Clay. Não sou mais escravo. Então, agora sou Muhammad Ali.” - disse em entrevista à NBC.

Ao se unir à Nação do Islã, movimento religioso e político afro-americano liderado por Elijah Muhammad, Ali rompeu com a narrativa do atleta “nacional” que representava a bandeira dos Estados Unidos. Sua conversão também foi um ato de recusa ao nome herdado diretamente da história colonial americana, reivindicando para si uma identidade que se alinhava a um imaginário pan-africano e muçulmano.

O contexto como um todo era explosivo. O movimento pelos direitos civis estava em ebulição, um período de intensa luta social e política, entre meados da década de 1950 e o final da década de 1960, que visava acabar com a segregação racial e a discriminação contra afro-americanos.

Malcolm X, com quem Ali manteve amizade até seu rompimento com a Nação do Islã, se tornava voz central de um discurso mais radical contra a supremacia branca, e a Guerra do Vietnã se intensificava. Em 1967, quando foi convocado para o serviço militar, Ali recusou-se a servir, dizendo: “Nenhum vietcongue jamais me chamou de negro”. Sua objeção não era apenas religiosa, mas profundamente política, um repúdio à hipocrisia de um país que lhe negava direitos básicos enquanto exigia que ele lutasse em nome de sua bandeira.

Em 17 de fevereiro de 1966, enquanto treinava para uma luta contra Ernie Terrell - que viria a julgar sua troca de nome pouco tempo depois -, Ali recebeu a notícia de que seu status de recrutamento havia sido alterado de 1-Y (não apto para o recrutamento militar) para 1-A (o topo da lista).

Robert Lypsyte, do New York Times, relatou que a primeira reação de Ali foi perguntar por que o conselho de recrutamento local havia alterado seu status de recrutamento tão drasticamente. Ele reclamou que estava sendo discriminado e que, segundo Ali, ele fez mais pelos militares e pela Guerra do Vietnã pagando enormes impostos sobre seus ganhos em combates do que jamais faria como soldado.

A recusa lhe custou caro à época, foi banido do boxe durante 5 anos, perdeu seu título mundial e passou três anos sem lutar no auge físico e técnico. Enfrentou um processo judicial que só seria revertido em 1971, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu a seu favor. Nesse período, sua figura se consolidou como símbolo internacional de resistência à guerra e ao racismo.

A relação com a mídia sempre foi uma batalha paralela. Durante os anos 60, boa parte da imprensa esportiva o retratava como arrogante, ingrato e perigoso. Seu hábito de se autoproclamar “o maior” era interpretado como vaidade fora de controle, mas, na prática, era uma estratégia calculada para desafiar os estereótipos raciais que esperavam ver atletas negros humildes, submissos e gratos por sua visibilidade. Ali entendia que o discurso era tão poderoso quanto suas exibições, e que se declarar o melhor antes mesmo de provar no ringue era uma forma de romper com a narrativa de inferioridade imposta ao homem negro nos Estados Unidos.Vale lembrar que tudo isso acontecia dentro de um esporte que sempre movimentou cifras milionárias nos Estados Unidos, sustentado por uma elite econômica e midiática que, em grande parte, rejeitava seus ideais e não hesitava em confrontá-lo publicamente.

Essa confiança não era apenas uma característica pessoal, mas um gesto político. Ele dizia a jovens negros para acreditarem na própria força, para não aceitarem definições impostas pela sociedade branca. Ao adotar um tom provocador, Ali obrigava a mídia a lidar com um tipo de atleta singular, que confrontava os posicionamentos de cada um que se opunha a ele. Esse comportamento o colocou lado a lado com outras figuras da época que politizaram sua imagem, como James Brown, Nina Simone e Stokely Carmichael.

Fora do ringue, sua imagem circulava pelo mundo como referência para movimentos negros globais. Na África, ele foi recebido como herói em países recém-independentes.

Sua luta contra George Foreman no Zaire, o “Rumble in the Jungle” de 1974, foi transmitida para dezenas de países africanos como símbolo de afirmação e conexão diaspórica.

A mídia americana, por outro lado, levou décadas para reconstruir a narrativa sobre Ali. No auge da Guerra do Vietnã, ele foi retratado como ameaça à ordem pública, apenas anos depois, com o distanciamento histórico, passou a ser celebrado como herói nacional. Esse processo de “domesticação” de figuras radicais é comum. paga-se a radicalidade para preservar apenas a imagem simpática. Mas o Ali dos anos 60 e 70 era desconfortável para o sistema.

Sua volta ao boxe em 1970 e o regresso ao título mundial contra Foreman no Zaire transcenderam o esporte. A luta foi organizada como um evento pan-africano, com festivais de música e discursos que conectavam a diáspora africana ao continente. Ali venceu utilizando a estratégia “rope-a-dope”, absorvendo golpes até desgastar Foreman.

Mesmo debilitado pelo Parkinson, Ali manteve-se figura de impacto. Compareceu a eventos políticos, fez discursos, visitou zonas de guerra e participou de missões humanitárias. Sua presença carregava uma força simbólica imensa. A prova de que um corpo fragilizado ainda pode ser um corpo político, carregando anos e anos de luta contra um lado perverso do mundo.

Assistente de redação

Assistente de redação