As religiões afro-brasileiras e a preservação de história, cultura e linguagem
Brasil, do tupi "Terra das Palmeiras", ou então "Vermelho como Brasa”, referenciado a exploração e devastação de um dos bens naturais locais do país, o pau-brasil, madeira de cor avermelhada, que lembrava brasas de fogo, e era muito valiosa para a produção de tinturas na Europa.

Um país que, entre todas a ambiguidade entre injustiças e belezas naturais, tem em sua formação histórica nome de ruas, bairros, cidades, estátuas e até mesmo o nome do país reverenciando exploradores e feridas abertas em nossa história. Por outro lado, não é novidade dizer que em partes, culturas e pessoas que escreveram nossa história e fundaram nossas tradições e costumes, têm suas vidas e presenças apagadas.
Entre apagamentos, violências e tentativas de silenciar identidades, as religiões afro-brasileiras preservaram aquilo que o Estado e a história oficial não registraram. Muito antes de serem entendidas como fé ou espiritualidade, Candomblé e Umbanda funcionam como sistemas de preservação cultural, espaços onde memória, língua, música, corpo e tradição resistiram ao tempo. Num país que se formou em meio à violência colonial, esses terreiros foram, e ainda são, estruturas de continuidade, guardiões de uma narrativa que atravessou séculos sem mediação institucional. No dia da Consciência Negra, olhar para esse universo faz parte de um reconhecimento histórico.
As religiões de matriz africana foram forjadas dentro de um cenário de proibição, a partir da imposição da escravidão, que forçou africanos de tribos diferentes a coexistirem no mesmo espaço, e transformar seus costumes a um só, adaptados também ao catolicismo empregado pelos europeus. Durante séculos, práticas culturais africanas estiveram submetidas ao código penal, aos tribunais de polícia e às campanhas moralistas que associavam saberes tradicionais à criminalidade.

Foram nos terreiros que idiomas como iorubá, kimbundu e ewe, línguas africanas, sobreviveram quando o país tentava apagá-los. Foi lá que ritmos, toques, culinárias e cosmologias permaneceram mesmo quando o mundo exterior classificava tudo isso como superstição. A força dessas religiões está justamente nessa relação entre continuidade e adaptação, entre permanência e movimento, cada ritual carrega camadas de história, deslocamentos, misturas, conflito e sobrevivência.
A grande questão é, onde toda essa gama cultural, sustentada durante anos, nos levou?
A formação cultural do Brasil passa diretamente por esse eixo. A música popular brasileira, por exemplo, nasce atravessada por referências religiosas que se manifestam tanto na estrutura rítmica quanto nos imaginários que moldaram canções e artistas.

Jorge Ben Jor, ao construir uma obra baseada em síncope, percussão e energia corporal, ampliou essa ponte entre o popular e o sagrado. Quando canta “Zumbi” em seu disco A Tábua de Esmeralda, álbum completamente voltado a religiosidade, “Cantos de Ossanha” ou “Umbabarauma”, Jorge utiliza do mais intrínseco lado cultural que aprendeu durante anos para codificar a história negra dentro da música brasileira. Seu repertório reaproxima o país das referências que sempre estiveram lá, mas que foram sistematicamente desvalorizadas.
O mesmo aconteceu com Clara Nunes, que transformou sua carreira na afirmação pública das religiões afro-brasileiras em plena ditadura, período que ainda operava a lógica de repressão moral e cultural.

Djavan, com sua mistura de harmonias complexas e rítmicas africanas reconfiguradas, também é parte desse movimento de continuidade. Ele incorpora um tipo de estrutura musical que deriva completamente de matrizes africanas. A sonoridade dele é marcada por claras inspirações rítmicas, do modo de pensar em como construir a música, os instrumentos e uma pulsação que deriva de tradições muito mais antigas do que o próprio MPB. O que Jorge Ben, Djavan, Gilberto Gil, Clementina de Jesus e tantos outros fizeram foi transformar o que antes era restrito a espaços comunitários em linguagem nacional.
Esse impacto ultrapassa a música. O imaginário brasileiro inteiro é moldado por referências que nasceram dentro das religiões afro-brasileiras.

A centralidade da comida como forma de afeto, a relação entre corpo e festa, a ideia de tempo circular. A própria estética brasileira, muitas vezes vendida como espontânea e despretensiosa, é fruto direto de sistemas simbólicos africanos que foram reinterpretados ao longo do tempo. Há uma lógica cultural que antecede o país, atravessa a violência colonial e emerge como base da nossa cultura.
Quando o Brasil tentou construir sua identidade moderna entre os anos 1930 e 1970, as religiões afro-brasileiras foram alvo simultâneo de perseguição e apropriação. O Estado criminalizava rituais ao mesmo tempo em que absorvia referências para vender a ideia de brasilidade ao mundo.

Exemplos? O samba enfrentou censura antes de virar símbolo nacional, a capoeira foi proibida antes de se tornar patrimônio cultural, o Candomblé foi alvo de operações policiais enquanto seus ritmos serviram como base ao carnaval e outros momentos. Tudo isso revela a relação contraditória entre poder e cultura no Brasil, onde a força dessas tradições não se deu por aceitação oficial, mas porque sobreviveram mesmo quando todas as estruturas trabalhavam contra elas.
Na contemporaneidade, a influência desses sistemas se expande para outras esferas. No cinema, nomes como Glauber Rocha e Zózimo Bulbul incorporaram cosmologias afro-brasileiras como linguagem de resistência.
Mesmo com essa presença ampla, o país continua reproduzindo violência simbólica contra essas religiões. Os ataques a terreiros aumentam a cada década, alimentados por racismo religioso, ignorância e instrumentalização política e a demonização dessas práticas não é resultado de conflito teológico, mas de continuidade histórica da perseguição ao que é negro. Por isso, compreender o papel das religiões afro-brasileiras é entender como cultura, política e memória se atravessam. Elas preservaram aquilo que o Brasil tentou esconder, a origem real do país, que não está na Europa, mas na África transportada à força para cá.

Ao longo dos últimos anos, a presença dessas referências na cultura se tornou mais visível. Artistas recolocaram elementos afro-diaspóricos no centro das discussões culturais, onde ao falar de Orixás, ancestralidade, corporeidade e espiritualidade.
No dia da Consciência Negra, olhar para esses universos é reconhecer que parte significativa da cultura brasileira só existe porque houve resistência, porque existiram terreiros, porque existiram mães e pais de santo que guardaram histórias que nenhum livro contaria. A cultura que consumimos, a música que ouvimos, a estética que nos forma e a linguagem que utilizamos são atravessadas por essas tradições. A presença delas é a prova de que o Brasil real se sustentou naquilo que não foi legitimado pela história oficial, mas que continuou existindo porque fazia sentido para quem o vivia.
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