100 anos de Jiu Jitsu no Brasil e a relação com as periferias

7 de nov. de 2025

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O jiu-jitsu completa um século no Brasil. Cem anos desde que o japonês Mitsuyo Maeda, o Conde Koma, chegou a Belém do Pará e ensinou seus primeiros golpes aos irmãos Gracie, numa época em que o país ainda experimentava o impacto da imigração oriental e a formação das suas primeiras elites urbanas. O que começou como uma arte marcial restrita, praticada por quem tinha acesso a clubes e mestres, se tornou um dos esportes mais enraizados nas comunidades brasileiras.

E foi nas favelas, subúrbios e bairros periféricos que o jiu-jitsu encontrou seu verdadeiro campo de expansão, tornando-se uma estrutura de sobrevivência.

Nos anos 1920, o jiu-jitsu ainda era um corpo estranho no país. Era um esporte exótico, vinculado à ideia de autodisciplina e honra que o Japão projetava no mundo moderno. Carlos e Hélio Gracie transformaram essa técnica em uma identidade nacional, adaptando-a à lógica brasileira.

O Gracie Jiu-Jitsu carregava além de honra, uma lógica sobre eficiência, provar que um corpo pequeno podia derrotar qualquer adversário. O que começou como uma disputa de técnicas se converteu em espetáculo e, mais tarde, em um modelo de negócio. No entanto, por muito tempo, o tatame ainda era um espaço distante para quem crescia nas periferias.

Essa distância começou a mudar nas décadas de 1980 e 1990, quando o jiu-jitsu se espalhou pelas zonas norte e oeste do Rio de Janeiro. O esporte que nasceu dentro de academias particulares começou a ocupar salões comunitários, quadras e centros improvisados em favelas. Professores e ex-lutadores começaram a ensinar crianças e adolescentes sem cobrar nada, financiando os quimonos por meio de doações e campeonatos locais. Nesses espaços, o jiu-jitsu passou a funcionar como uma rede social real, onde se aprende a respeitar, a controlar o corpo e, principalmente, a encontrar um propósito fora da violência.

No Cantagalo, na Rocinha e em comunidades como Cidade de Deus, projetos voluntários começaram a surgir. Em São Paulo, experiências semelhantes se consolidaram em Heliópolis e no Guarujá. Foi justamente dali que saiu um dos maiores símbolos desse movimento, Charles do Bronx. Nascido em uma favela do Guarujá, ele começou a treinar em um projeto social ainda criança, usando quimonos emprestados e enfrentando as limitações típicas de quem vive na base da escassez. O jiu-jitsu o levou ao MMA e, mais tarde, ao topo do UFC. Mas mais do que isso, o esporte o afastou de um destino previsível em um território onde as alternativas quase sempre são reduzidas. Charles representa uma linha direta entre o tatame comunitário e o palco global, mas sua história não é exceção, é sintoma de uma geração que encontrou na luta uma forma de permanecer viva.

O jiu-jitsu nas favelas brasileiras é uma estrutura coletiva. Academias pequenas se tornam núcleos econômicos, onde professores transformam o esporte em sustento. Em vez de depender de patrocínio ou apoio público, muitos mantêm seus projetos com arrecadações locais, rifas e o dinheiro de quem já conseguiu subir de faixa ou competir fora. A economia do jiu-jitsu periférico é horizontal, feita de redes de solidariedade e trocas. Não é raro ver lutadores que, após competirem no exterior, voltam para investir em tatames novos ou bancar as inscrições de alunos. Essa autossustentação faz parte da cultura da luta tanto quanto o respeito e a hierarquia.

Há também uma dimensão simbólica forte. No ambiente das favelas, o tatame cria um tipo de autoridade que não depende da violência. O professor é visto como referência moral. O ritual de cumprimento, o silêncio antes da luta e a obediência às regras formam um sistema de conduta que se reflete na vida fora do treino.

Projetos como o do mestre Douglas Rufino, no Cantagalo, reúnem dezenas de crianças que encontraram na luta o primeiro espaço estável e disciplinado de suas vidas. O mesmo se repete em comunidades do Maranhão, do Pará e da Bahia, onde o esporte se espalhou silenciosamente como instrumento de contenção social.

Mas a desigualdade entre o jiu-jitsu oficial e o jiu-jitsu popular continua profunda. Enquanto as grandes equipes como Gracie Barra e Alliance concentram patrocínios e presença internacional, os projetos de base lutam para conseguir quimonos e passagens. Há uma linha clara entre o esporte de vitrine e o de sobrevivência. O circuito comunitário forma mais atletas do que o sistema profissional, mas raramente tem o mesmo reconhecimento. Ainda assim, é dali que surgem os lutadores que mais carregam o espírito original da arte.

Casos como o de Fernando Tererê, também nascido no Cantagalo, mostram o outro lado dessa trajetória. Um dos lutadores mais talentosos da sua geração, Tererê levou o jiu-jitsu de favela ao topo mundial, mas enfrentou também os efeitos da marginalização, da ausência de suporte psicológico e da instabilidade financeira. Sua história é tão importante quanto a dos campeões, ela revela como o jiu-jitsu pode ser um instrumento de ascensão, mas também como a falta de estrutura empurra muitos atletas de volta ao ponto de partida.

No centenário do jiu-jitsu brasileiro, é inevitável reconhecer que a permanência da arte não veio somente das academias de elite, mas das comunidades que a adotaram como projeto coletivo. É Em um país onde o Estado falha em quase tudo, o tatame se tornou um dos poucos lugares onde o mérito ainda é medido pela repetição e pelo esforço.

O mesmo movimento que formou campeões mundiais forma também cidadãos anônimos, que encontram ali a chance de construir uma rotina. O jiu-jitsu sobreviveu a um século porque aprendeu a se misturar. Ele se adaptou ao Brasil real, aquele das vielas, das lajes, dos becos.

Assistente de redação

Assistente de redação