A América Sou Eu: A segregação americana pelas lentes de Gordon Parks

10 de nov. de 2025

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A exposição de Gordon Parks no IMS Paulista reposiciona um dos nomes mais importantes da fotografia do século 20. Entre retratos, ensaios e registros de um país dividido, o fotógrafo americano revelou o que a história oficial sempre tentou apagar. Nascido em 1912 no Kansas, em um contexto rural e segregado, Parks cresceu sob o impacto direto da exclusão, onde antes de adotar a câmera como seu instrumento de trabalho, foi pianista e lavador de pratos. Seu primeiro contato com a fotografia veio apenas na fase adulta, quando comprou uma câmera usada e começou a registrar o cotidiano. Em pouco tempo, transformou o ato de fotografar em instrumento político, numa época em que ser negro nos Estados Unidos ainda significava ser invisível.

O IMS Paulista apresenta mais de duzentas obras entre fotografias, filmes, periódicos e publicações, construindo um panorama que atravessa quatro décadas de trabalho. O que se vê é mais do que uma seleção de imagens icônicas, é uma leitura sobre o país que Gordon Parks ajudou a revelar. A série “American Gothic”, de 1942, mostra Ella Watson, funcionária de limpeza em Washington, diante de uma bandeira dos Estados Unidos, com vassoura e esfregão nas mãos. A imagem é uma das mais contundentes da história do fotojornalismo e sintetiza a relação de Parks com seu tempo. A América de Parks não é a das promessas de liberdade, mas a das contradições entre democracia e exclusão.

“América sou eu” é inspirado em um texto escrito por Parks, publicado em 1968 na revista Life. Ao fotografar o cotidiano da Família Fontenelle, uma família negra vivendo em extrema pobreza no Harlem, escreveu: "Eu, também, sou a América. A América sou eu. Ela me concedeu a única vida que tenho – então devo compartilhá-la em sua luta. Olhe para mim. Escute-me. Tente entender a minha luta contra o seu racismo. Ainda há uma chance”. A série sobre a família Fontenelle escancarou a disparidade de qualidade de vida entre aos segregados, em registros que expõem até mesmo o ato de crianças comerem o gesso de suas casas, em situação extrema de fome. Para Parks, negro nascido no Kansas, viver nessa época era desafiar de todos os modos a vida, indo além a visitar locais onde o povo negro era caçado, Parks inclusive foi alvo de uma armadilha, que felizmente não foi bem sucedida. Por esse e outros tantos motivos, Parks torna-se apenas um espelho da verdadeira América, retratar as lutas, a discriminação, era representar e registrar essa verdadeira América.

A mostra parte da ideia de que a biografia de Parks é inseparável do seu trabalho. Ele foi o primeiro fotógrafo negro contratado pela revista Life, em 1948, onde produziu reportagens que se tornaram fundamentais para a formação de uma consciência visual sobre as questões raciais. Em séries como “De volta a Fort Scott” e “Segregação no Sul”, retratou o cotidiano da população negra em escolas, ruas e igrejas. Suas imagens se destacavam não apenas pela força documental, mas pelo olhar sensível sobre quem retratava. Cada fotografia parece equilibrar estética e denúncia, beleza e desconforto.

O impacto de Parks foi tão grande que seu nome extrapolou a fotografia. No cinema, dirigiu Shaft (1971), um dos filmes que definiu o gênero blaxploitation, e abriu caminho para a representação de protagonistas negros na indústria americana. A mesma precisão estética que marcou sua fotografia estava presente em seus enquadramentos e trilhas sonoras. Para ele, a câmera era uma arma contra o racismo, mas também uma forma de reescrever a própria identidade. Essa postura, em que ética e forma se confundem, é o que a exposição resgata.

A mostra ocupa dois andares do IMS e organiza o percurso de maneira não linear. A montagem conduz o visitante por núcleos que falam de segregação, cultura, música, moda e fé. Em uma sala, o registro de Malcolm X; em outra, o retrato de Muhammad Ali; adiante, as famílias anônimas que representam o verdadeiro centro da narrativa americana. A força da exposição está no contraste entre o monumental e o íntimo, entre o símbolo e o indivíduo. Parks traduz a história coletiva por meio de histórias pessoais, e esse é talvez seu maior legado.

O visitante passa por décadas de trabalho que atravessam o racismo, a música, a religião e a luta social. Há ensaios sobre famílias negras, retratos de artistas como Duke Ellington e Muhammad Ali, e reportagens produzidas para a Life que retratam tanto o cotidiano da pobreza urbana quanto o luxo das elites. Parks transitava entre mundos sem perder a coerência do olhar. Ele não julgava nem romantizava. Apenas observava e registrava o que o país insistia em esconder.

A presença de suas obras no Brasil não é apenas uma homenagem, o país que recebe a mostra compartilha a mesma herança de desigualdade racial e a mesma tentativa de apagar o protagonismo negro da sua história visual. Ver Gordon Parks no contexto brasileiro é revisitar também nossas próprias imagens, nossas periferias, nossos corpos. A América que ele afirmava ser também é a que insistimos em negar.

Em uma época em que a imagem se tornou descartável, a obra de Gordon Parks permanece como um lembrete de que fotos e registros ainda são um ato político. Sua obra é um arquivo do que foi negado, uma coleção de presenças que recusaram o apagamento. Mais de um século depois de seu nascimento, suas fotos continuam a nos fazer a mesma pergunta que guiou toda a sua trajetória: quem tem o direito de ser visto?

Gordon Parks respondeu com a própria vida. A América, afinal, era ele, e todos aqueles que ela tentou esconder.

Assistente de redação

Assistente de redação