A trilogia e o olhar de Rico Dalasam sobre identidade e arte
A arte de Rico Dalasam vai muito além da música. Como artista, ele explora aspectos da literatura e podcasts e faz uma reflexão social, transformando suas próprias experiências e observações do cotidiano em letras, melodias e narrativas.
Seu processo criativo é destacado pela curiosidade e improviso, que entre a correria dos shows e diálogos com o público, ele constrói obras que conectam sua intenção musical com uma consciência coletiva. A trilogia Dolores Dala Guardião do Alívio, Fim das Tentativas e Escuro Brilhante é resultado desse percurso, refletindo não somente os desejos, mas também as frustrações e descobertas sobre identidade e o corpo negro.
Cada álbum marca um capítulo da sua trajetória, com faixas que mudam perspectivas e consolidam sua presença musical. Fora da música, a escrita e o mestrado se tornam espaços para aprofundar ideias que a canção não comporta completamente.
Conversamos com ele sobre inspiração, processos e a conclusão da trilogia. Confira abaixo:
NOTTHESAMO: A turnê “Pra Sempre” marca o encerramento da sua trilogia. O que significa para você chegar a esse momento?
Rico Dalasam: A turnê Pra Sempre é uma extensão do que a gente esteve fazendo nos últimos cinco anos: criar uma experiência de show. Eu me baseio muito na clínica. Na verdade, eu junto signos ali e vou ajustando como se estivesse experimentando uma clínica em modo coletivo. Quando digo “clínica”, estou olhando para signos da psicologia e da psicanálise, para organizar coisas difíceis de nomear e produzir uma textualidade a partir disso. Devolver isso ao público, o público canta e elabora suas questões.
E, na minha vida, chegou a hora de concluir esse jeito, porque no mercado eu estou pensando numa dinâmica clínica, mas atuo no entretenimento, na música. Então, existem outros lugares para onde quero ir e não dá para levar a perspectiva da clínica. Preciso ir com a perspectiva de um produto de entretenimento, e isso requer concluir essa lógica desses cinco anos.

NTS: Olhando para os três álbuns — Dolores Dala Guardião do Alívio, Fim das Tentativas e Escuro Brilhante — qual você sente que mais reflete quem você é hoje?
RD: Os três álbuns revelam um desejo meu. Revelam meu desejo e a investigação que está em torno deles, envolvendo mil questões: frustrações, angústias, prazer e gozo, construção de desejo, imagem e autoimagem, e questões sobre construir uma imagem — sobretudo como faço tudo isso portando um corpo negro. Então, eu sou esses três álbuns, inevitavelmente, mas numa lógica investigativa sobre quem eu sou, o que carrego e como posso transitar.
NTS: Existe alguma faixa ou álbum que tenha um significado especial, que você sente que mudou sua trajetória?
RD: Acho que, dentro desses trabalhos, há faixas que mudaram minha perspectiva no mercado da música. Braille fatalmente organiza isso e reajusta minha presença, sem dúvida alguma, colocando-me numa condição poética, numa condição de alguém que se legitima um pouco mais: em deter e ter as palavras para fazer o que quiser — rap, hit de festa popular ou poema-canção.
E, no meu disco pessoal, lá no DDGA, tem uma música chamada Última Vez. Eu adoro essa música; acho que ela é o melhor resultado do que eu pretendia fazer nesses trabalhos.

NTS: Como foi o processo de transição de um álbum para outro dentro da trilogia?
RD: Enxergar a necessidade de continuar a lógica foi o que nos conduziu à trilogia. Quando fiz Braille, logo em seguida havia um fio estendido à minha frente, um fio de continuidade. A partir dele veio Mudou Como, depois Estrangeiro, depois Vividi, depois Expresso da América, e ainda era insuficiente. Depois de um tempo, partimos para Fim das Tentativas, depois Guia de um Amor Cego, e isso ainda era insuficiente. Então fui para Tarde Demais e para 30 Semanas, e ainda era insuficiente para esse meu exercício que enxerga uma clínica no encontro com as pessoas — um exercício coletivo.
Agora, chegando em Quebrados, entendo que talvez esse método tenha chegado a um ponto em que eu preciso colocá-lo em descanso. Exercitamos, descobrimos coisas juntos; muitas pessoas têm suas vidas marcadas por esses discos, e eu também. Mas eu precisava olhar para outro método, outro jeito, outro ambiente que não fosse a clínica para conceber um novo trabalho.
NTS: Quais temas ou sentimentos você mais gosta de explorar nas suas músicas?
RD: Pensando em temática, estou sempre olhando para as angústias coletivas que estão no meu entorno: das pessoas que portam corpos negros, das pessoas com dilemas sobre a sexualidade ao adentrar essa vida pós-adolescência. Também olho para as questões de pessoas brancas e heterossexuais, e como elas carregam inúmeros dilemas e questões que às vezes respingam no restante da sociedade, dependendo do poder que têm. Analiso isso, e isso aparece no meu trabalho.
E, claro, a confluência e a hora em que a intersecção surge entre esses grupos, porque em algum momento isso ocorre na sociedade, criando tensões, atritos ou, às vezes, a construção de algo saudável, raramente. Daí surgem as temáticas.
NTS: Além da música, você também tem explorado a literatura e o podcast Último Dia no Orfanato da Tia Guga. Como essas outras formas de expressão se conectam com sua música?
RD: Encontrar um lugar para minha escrita, porque, na música, faço uso de 2%, no máximo 3% dela, é algo que estou aceitando. Eu não queria partir já para uma lógica de construir literatura em torno de poemas, mas queria achar o que fazer com essa escrita, porque há elaborações densas que merecem ser levadas a sério.
Desde que retornei recentemente à universidade, no mestrado, estou transportando para lá essa escrita que não cabe nem na música nem na psicologia. Estou reorganizando essa escrita antiga com as teorias que encontro e que dão conta disso, e também com as notas confessionais — o sentido confessional daquilo que organizo. Então, é natural: eu não quero desperdiçar o que produzo em escrita só porque sou mais conhecido pelos meus raps.

NTS: O que você gosta de fazer no seu tempo livre ou que te inspira fora da música?
RD: No meu tempo livre, no meu tempo realmente útil, quero estar em Fortaleza, no Ceará, perto da água salgada. Quero estar onde o sol me encontra. Quero estar nisso: lendo, pensando, contribuindo com meus amigos em seus processos. Esse é o meu oásis.
NTS: Se você pudesse dar uma dica para alguém, o que diria?
RD: Nossa, uma dica… em qual sentido, né? Mas, se existe uma dica, talvez seja: fale de você. Fale de você e se escute, mesmo que você tenha que falar de outra pessoa, de outro objeto, de outra coisa. Mas fale, se expresse. Converse com sua avó, com seus amigos, com pessoas de outras gerações. Converse, escute. Se você for capaz, faça uma escuta de qualidade. Mas fale, fale, fale. Mova-se do silêncio.
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