A Vida e Obra de Issey Miyake

Infância e primeiros traumas

Issey Miyake nasceu em 22 de abril de 1938, na cidade de Hiroshima, Japão. Seu nome de nascimento era Miyake Kazunaru. A infância dele foi marcada por um dos eventos mais brutais do século XX: ele tinha apenas sete anos quando a bomba atômica foi lançada sobre sua cidade natal, em 1945. Miyake sobreviveu ao ataque nuclear, mas perdeu a mãe três anos depois, vítima das consequências da radiação. O trauma da bomba nunca deixou de fazer parte do pano de fundo silencioso de sua obra, mesmo que ele evitasse abordá-lo diretamente. Ainda assim, esse evento moldou seu desejo de criar algo construtivo, sensível e humano — talvez como resposta ao que destruiu tudo ao seu redor.

A história de Issey Miyake no pós-bomba é silenciosa e, ao mesmo tempo, profundamente simbólica. Não é tão documentada quanto sua carreira posterior, mas é possível traçar um panorama afetivo e geográfico com base no que ele deixou escapar ao longo da vida — sempre com muita reserva. Miyake foi um dos muitos sobreviventes da bomba atômica de Hiroshima em 6 de agosto de 1945, um evento que marcou sua vida pessoal, sua visão de mundo e, indiretamente, sua obra.

O pós-bomba: perdas, silêncio e reconstrução

Após a explosão da bomba atômica, Miyake — com apenas sete anos — sobreviveu, mas perdeu a mãe poucos anos depois, em decorrência de complicações causadas pela radiação. Ele também ficou com sequelas físicas menores (como problemas na perna) e, principalmente, com marcas psicológicas profundas. Como muitas crianças hibakusha (como são chamados os sobreviventes da bomba), ele passou parte da infância em um contexto de luto coletivo, medo e reconstrução.

A cidade de Hiroshima foi quase totalmente devastada. A vida da população local foi reorganizada em abrigos improvisados, escolas destruídas e hospitais de campanha. Miyake, como milhares de outros, viveu num Japão que buscava se reerguer do trauma, reconstruindo não só cidades, mas também identidades e esperanças.

Apesar das perdas, Miyake seguiu morando em Hiroshima por algum tempo. Ele foi criado por parentes próximos, já que perdeu os pais ainda jovem (o pai havia falecido antes da guerra). Seu irmão mais velho se tornou uma figura de referência, e a rede familiar japonesa — pautada pelo senso de coletividade — ajudou a sustentar a base emocional dele nos anos seguintes.

Ele raramente falava publicamente sobre esse período. Só mencionou o tema diretamente em 2009, em um artigo de opinião para o New York Times, onde revelou, pela primeira vez, que era um sobrevivente da bomba. Nessa carta, ele escreveu:

“Quando penso em por que não gosto de falar sobre isso, penso que minha razão é clara: eu preferi pensar sobre coisas que podem ser criadas, não destruídas. Preferi sonhar com o futuro.”

Esse trecho encapsula o espírito com que ele enfrentou o pós-guerra: em vez de se fixar no trauma, escolheu seguir adiante. O que não significa esquecer, mas transformar — o sofrimento virou impulso criativo. É muito provável que essa infância marcada por dor e reconstrução o tenha feito desenvolver um profundo senso de empatia, um respeito imenso pelo corpo e pelo movimento da vida — que depois se tornaram pilares centrais da sua prática artística e do seu olhar como designer.

Do design gráfico à moda: uma virada silenciosa

Nos anos 1950, Miyake ainda era um jovem estudante e o Japão vivia um renascimento cultural. O Ocidente olhava cada vez mais para o país com fascínio, enquanto o próprio Japão tentava entender como se reerguer sem abandonar suas tradições. Foi nesse ambiente que ele decidiu estudar design gráfico na Universidade de Artes de Tama, em Tóquio. A escolha não foi por acaso: ele se interessava pela relação entre forma e função, imagem e comunicação.

Durante seus anos como estudante, começou a se interessar não apenas por objetos e imagens, mas pela ideia de que o corpo também poderia ser uma “superfície de design”. Nesse momento, ele teve o contato decisivo com o mundo da moda: viu reportagens e imagens de desfiles de Christian Dior (em especial a estética do New Look dos anos 1950, com suas formas esculturais). Essas imagens despertaram algo que ele descreveu, mais tarde, como uma “curiosidade profunda sobre a forma como o corpo se relaciona com o tecido”.

Mais do que o glamour das roupas, o que fascinava Miyake era o sistema que unia arte, técnica, materialidade e expressão em um único objeto funcional: a roupa.

A escolha do nome

O nome completo de nascimento dele era Kazunaru Miyake. Ao decidir que seguiria na moda — um campo ainda visto como menor no Japão da época, especialmente para homens — ele adotou o nome artístico Issey, que significa, numa leitura poética, algo como “um rio” ou “uma corrente fluida” (ichi = um, sei = corrente ou vida). É possível interpretar esse nome como uma escolha de fluidez e reinvenção, características que marcariam toda sua trajetória.

Mais do que uma assinatura, “Issey Miyake” era um manifesto silencioso: um novo nome para uma nova identidade, que se descolava do trauma e da rigidez do passado para anunciar um futuro mais leve, mais livre, mais global.

Paris e Nova York: a educação cosmopolita

Nos anos 1960, Miyake deixou o Japão e foi para Paris estudar na École de la Chambre Syndicale de la Couture Parisienne, onde se formaram grandes nomes da alta-costura. Ali, aprendeu as técnicas clássicas da moda ocidental — moulage, corte preciso, acabamento manual — e trabalhou com mestres como Guy Laroche e Hubert de Givenchy.

Mas o clima era tenso. Paris vivia o pré-Maio de 1968, com greves, efervescência política e uma juventude questionando as tradições. Miyake sentia-se deslocado. Viu ali o limite da alta-costura: por mais técnica e bela que fosse, ela ainda era destinada a poucos. Isso o incomodava.

Na sequência, mudou-se para Nova York, onde trabalhou com Geoffrey Beene. Lá, conheceu a linguagem do sportswear, das ruas, do design funcional. Também mergulhou na cena artística e multicultural da cidade: encontrou referências no minimalismo, na pop art, na dança moderna, no grafismo urbano. Nova York abriu em Miyake a consciência de que a moda poderia ser democrática, industrial, acessível — e ainda assim cheia de ideias.

De volta ao Japão: a fundação do Miyake Design Studio

Em 1970, voltou ao Japão e fundou o Miyake Design Studio, em Tóquio. Sua ideia era clara: não queria ser um “estilista” no molde ocidental, mas um pensador visual que usava a moda como linguagem. Ao invés de seguir tendências sazonais, Miyake tratava o vestuário como pesquisa contínua, um território experimental entre arte, ciência e corpo.

Logo no início, escreveu uma frase que virou um tipo de missão da marca:

"Eu não estou interessado na moda como um sistema. Estou interessado em roupas como um campo de possibilidades."

Essa diferença é crucial. Para Miyake, a moda não era um fim, mas um meio: um meio de questionar estruturas, de desafiar técnicas, de imaginar futuros.

A assinatura estética de um nome

O nome Issey Miyake logo se tornou sinônimo de inovação. Em suas primeiras coleções, já combinava técnicas orientais (como o uso do papel, do algodão cru, do tingimento tradicional) com tecidos industriais e formas radicais. Usava o corpo não como manequim, mas como agente: dançarinos e performers muitas vezes substituíam modelos em seus desfiles.

Com o tempo, seu nome deixou de ser só uma grife e virou uma ideia: a ideia de que é possível criar com profundidade, leveza, respeito e futuro.

Referências e influências

A filosofia de Miyake é profundamente influenciada por elementos da cultura japonesa, como o conceito de ma (o espaço entre as coisas), o respeito pelo corpo em movimento e as tradições do design industrial japonês. Ele também bebeu de fontes como o movimento Bauhaus, o construtivismo russo e o pensamento de artistas como Isamu Noguchi e designers como Rei Kawakubo e Yohji Yamamoto — contemporâneos seus que também subverteram a lógica ocidental da moda nos anos 1980.

Além disso, a dança e o movimento foram grandes fontes de inspiração. Trabalhou com coreógrafos e artistas performáticos para criar roupas que não apenas vestissem, mas se movessem com o corpo de forma fluida e inesperada.


A tradição japonesa — estética do impermanente

Miyake cresceu imerso em valores estéticos milenares do Japão, que moldaram sua sensibilidade de forma quase instintiva:

  • Wabi-sabi: a beleza da imperfeição, do desgaste, da assimetria. Isso aparece em suas roupas com texturas naturais, tecidos plissados de forma orgânica, modelagens que rejeitam simetrias óbvias.

  • Ma (間): o espaço entre as coisas, o vazio como potência. Miyake levou esse conceito para o vestuário ao trabalhar roupas que respeitam o espaço do corpo e o movimento, ao invés de aprisioná-lo. Muitas de suas peças parecem “flutuar” sobre o corpo.

  • Origami e dobraduras: ele não apenas se inspirou visualmente, mas tecnicamente — o modo como uma superfície plana se transforma em volume é a base de seu método de criação. Isso aparece, por exemplo, na série Pleats Please, em que o tecido é moldado após a roupa estar feita.

Ele também resgatava técnicas têxteis japonesas ancestrais — como tingimentos shibori, costuras sashiko e tramas em papel washi — mas as reconfigurava com tecnologia de ponta. Era um equilíbrio raro: tradição e futurismo, lado a lado.


A arte ocidental — escultura, dança, arquitetura

Miyake era um apaixonado por arte moderna e contemporânea — especialmente artistas que pensavam o corpo, o espaço e o material como extensões uns dos outros.

  • Isamu Noguchi: o escultor nipo-americano era uma das maiores inspirações de Miyake. Ambos compartilhavam a ideia de que a forma nasce da relação com o espaço e com o tempo. Noguchi, que fez mobiliário, luzes e jardins, influenciou Miyake a criar roupas-esculturas, mas sempre móveis, nunca estáticas.

  • Madeline Gins & Shusaku Arakawa: o casal de arquitetos e artistas foi parceiro conceitual de Miyake. Eles pensavam o corpo como um campo instável, que se move em relação ao espaço — exatamente como Miyake via a roupa.

  • Martha Graham & Merce Cunningham: coreógrafos que usavam o corpo como linguagem plástica. Muitos desfiles de Miyake foram dançados, não desfilados. Ele estudava como a roupa se comportava em movimento, e isso influenciou diretamente seus cortes, volumes e materiais.

  • Frank Gehry & Tadao Ando: a arquitetura também o fascinava. Ele dizia que queria construir roupas como “pequenas arquiteturas móveis”. A fluidez de Gehry e a austeridade de Ando se combinam em seus volumes: estruturas precisas, mas nunca rígidas.

Header 1

Header 2

Header 3

Cell 1-1

Cell 1-2

Cell 1-3

Cell 2-1

Cell 2-2

Cell 2-3


A tecnologia e o design industrial

Diferente de muitos estilistas de sua época, Miyake sempre olhou para a indústria como aliada da criação. Isso o conectava a designers e engenheiros:

Dieter Rams e o design da Braun: minimalismo funcional, ausência de ornamento, forma seguindo função — valores que ecoam na simplicidade elegante de Miyake.


  • Apple & Steve Jobs: o próprio Jobs usava diariamente uma blusa preta de gola alta feita sob medida por Issey Miyake, após ficarem amigos no fim dos anos 1980. Ambos viam design como um caminho para libertar o ser humano, não para complicar a vida.

Tecnologia têxtil: suas criações com tecidos de poliéster plissado, peças produzidas com um único fio (como em A-POC — A Piece of Cloth), e modelagens digitais o colocaram décadas à frente da indústria. Ele via o têxtil como “matéria viva”, capaz de reagir ao corpo e ao tempo.


A roupa como linguagem social

Miyake também se inspirava nas roupas do povo, do cotidiano:

  • Quimonos, yukatas, uniformes: ele respeitava profundamente o vestuário tradicional japonês, que não modela o corpo, mas envolve e revela o movimento. Isso o fez questionar a centralidade do corpo ocidental como padrão.

  • Roupa de trabalho: era obcecado por funcionalidade e conforto. Inspirava-se em roupas usadas por trabalhadores, artistas, dançarinos — todas feitas para facilitar a ação, não para ostentar.

  • Roupas sem gênero, sem idade, sem estação: muito antes dessas ideias virarem tendência, Miyake já projetava coleções que desafiavam a categorização. Suas roupas vestiam homens, mulheres, corpos jovens ou velhos com a mesma dignidade e fluidez.


Filosofia e espiritualidade

Miyake era silenciosamente filosófico. Muito influenciado pelo budismo e pelo pensamento zen, ele via o processo criativo como meditação. Não queria apenas fazer roupas bonitas — queria revelar o invisível:

“Eu tento encontrar a essência do vestir. Não o que é bonito, mas o que é necessário, e o que pode durar.”

Essa busca pela essência o afastou do ego e o aproximou da coletividade: por isso montou um estúdio colaborativo, onde o nome Issey Miyake não era apenas um indivíduo, mas um sistema de criação compartilhada.

Abertura da marca e primeiros passos

Em 1970, Miyake fundou o Miyake Design Studio, em Tóquio. Desde o início, sua abordagem foi interdisciplinar: ele não queria apenas "fazer moda", mas desenvolver uma pesquisa contínua sobre a relação entre o corpo humano, o tecido e a tecnologia. Em 1973, apresentou sua primeira coleção em Paris, integrando-se ao calendário de moda internacional.

Seu trabalho se destacou rapidamente por quebrar padrões convencionais. Ele eliminava costuras, construía peças a partir de uma única peça de tecido, utilizava técnicas artesanais como o shibori (tingimento japonês), ao mesmo tempo em que se apropriava de novos materiais e processos industriais. Isso gerou um paradoxo único: peças que pareciam esculturas, mas eram funcionais e extremamente usáveis.

1. A bomba como silêncio criativo

Issey Miyake jamais desenhou roupas “sobre a guerra”. Ele não era um estilista militante ou panfletário, mas sua obra inteira carrega, de forma silenciosa e sofisticada, as marcas do pós-Hiroshima. Como sobrevivente da bomba, Miyake viveu o extremo da vulnerabilidade física — o corpo como alvo da destruição. Essa experiência parece ter gerado, em sua obra, uma inversão ética: ele criou para proteger, liberar e acolher o corpo.

Roupas como abrigo, como espaço para respirar.

Seu silêncio sobre o tema também foi uma escolha política: ao invés de “estetizar” o sofrimento, ele preferiu transmutá-lo em construção. Na já citada carta de 2009 ao New York Times, ele afirmou que, quando jovem, evitava contar sua história para não ser rotulado apenas como um hibakusha. A moda, para ele, era liberdade de imaginação.

2. Leveza, movimento e reconstrução

Nos anos 1980 e 90, enquanto a moda ocidental buscava ostentação e peso visual, Miyake propôs tecidos quase imateriais, modelagens que se afastavam do corpo sem negá-lo, e estruturas que permitiam movimento total.

Sua linha Pleats Please, por exemplo, pode ser lida como metáfora poética: plissados finíssimos, feitos a partir de tecidos técnicos, leves como ar — mas que ganham forma ao se mover com o corpo. Não é uma armadura, é uma extensão da energia vital.

Essa busca pela leveza remete à reconstrução do Japão no pós-guerra, onde o design (gráfico, arquitetônico, de produto) teve papel fundamental. A ideia era criar coisas novas a partir da escassez. Nada de excessos, apenas o essencial — mas com beleza, inovação e sentido. Miyake traduziu isso para o vestuário.

3. Tecnologia como poesia

Ao longo de sua trajetória, Miyake buscou o que ele chamava de "tecnopoética": o uso de inovação e ciência a serviço do sensível. Em vez de ver a tecnologia como algo frio, ele a via como ferramenta para multiplicar a liberdade humana.

Um exemplo é a série A-POC (A Piece of Cloth), que representa um pensamento profundamente japonês: a peça inteira é feita de um único fio contínuo, como se o corpo pudesse vestir uma ideia sem interrupção. Essa lógica também ecoa a filosofia do ma — o espaço entre as coisas, o vazio fértil.

Nesse sentido, a tecnologia, para ele, não era distante da natureza. Era um desdobramento dela. Seus tecidos sintéticos se comportavam como folhas ao vento. Suas peças pareciam flores dobradas, ou dobraduras arquitetônicas — sempre dialogando com a impermanência, tema central da estética japonesa (wabi-sabi).

4. O corpo como semente de futuro

Miyake acreditava que a roupa deveria servir ao corpo e não o contrário. Um corpo livre, em movimento, capaz de dançar, de envelhecer, de expressar sua singularidade. Isso ganha ainda mais profundidade se lembrarmos que ele viu, aos sete anos, a aniquilação de milhares de corpos de forma instantânea.

Seu trabalho, então, pode ser lido como um manifesto silencioso pela vida. Cada peça é um pequeno gesto de reconstrução — tecido por tecido, dobra por dobra.

5. Hiroshima como origem e horizonte

Ainda que não fosse tema explícito, Hiroshima é a origem simbólica de toda a obra de Miyake. A cidade devastada que se reconstrói em silêncio encontra eco na forma como suas roupas surgem: quase sem costura, como se já estivessem ali desde sempre, brotando do corpo e do tempo.

O Japão pós-bomba se transformou em laboratório de futuro. E Miyake foi um de seus mais poéticos engenheiros.


A jornada com a marca: invenção constante

Nos anos 1980 e 90, Miyake revolucionou a moda com duas grandes invenções:

1. PLEATS PLEASE (1993):

Uma linha baseada em plissados permanentes em tecidos tecnológicos, extremamente leves, que podiam ser lavados, enrolados, guardados sem amassar e usados de forma elegante e prática. Essa linha se tornou símbolo de versatilidade e foi adotada por artistas, dançarinos e intelectuais do mundo todo.

A Pleats Please é, sem dúvida, uma das obras-primas do pensamento de Issey Miyake. Mais do que uma linha de roupas, ela é a materialização de sua filosofia de unir corpo, tecnologia e liberdade. Profundamente ligada à ideia de movimento e acessibilidade, a Pleats Please revolucionou o design de moda ao criar roupas que dançam com o corpo e sobrevivem ao tempo.

"Como criar roupas que se movam com o corpo, e não contra ele?”

A semente da Pleats Please começou a germinar no final dos anos 1980, quando Miyake começou a experimentar novas formas de plissado que não deformassem com o uso. Ele queria roupas que acompanhassem o corpo em movimento — especialmente o corpo de performers e dançarinos, como os do Ballet Frankfurt, do coreógrafo William Forsythe, com quem trabalhou.

As roupas tradicionais plissadas perdiam a forma depois de lavadas ou usadas — exigiam cuidado extremo. Miyake, ao contrário, queria o oposto: roupas que fossem duráveis, leves, laváveis, fáceis de guardar e usar. Democráticas, práticas e belas.

Em 1993, essa ideia ganhou forma como linha comercial: nascia a Pleats Please Issey Miyake.

O plissado tradicional funciona assim: primeiro o tecido é plissado (com calor e pressão), depois ele é cortado e costurado. Isso limita a modelagem e torna as roupas delicadas.

Miyake inverteu o processo:

  • Primeiro, a roupa é cortada e costurada em tamanho três vezes maior que o final.

  • Depois, a peça já montada é passada por um processo térmico e de pressão que plissa o tecido inteiro — usando uma combinação de calor, dobradura e moldes metálicos.

  • O resultado: uma roupa plissada que já nasce com sua forma final e que nunca perde o plissado, mesmo após lavagens.

O tecido principal usado era o poliéster de alta performance — leve, resistente, de secagem rápida e com memória de forma. A escolha do sintético não era por acaso: Miyake acreditava que o futuro da roupa não estava no luxo dos materiais raros, mas na inteligência da construção.

Visualmente, a Pleats Please é um paradoxo encantador:

  • Extremamente simples quando vista no cabide — muitas vezes reta, tubular, quase monástica.

  • Altamente escultural quando usada — moldando e acompanhando o corpo em movimento como uma segunda pele que vibra.

A textura das pregas cria uma vida visual própria: as roupas ganham sombra, ritmo, elasticidade e até som. O corpo vira parte ativa do design.

As cores são outro destaque: intensas, vibrantes, muitas vezes fluorescentes ou com estampas gráficas inspiradas em arte contemporânea e cultura pop. Era uma forma de dizer que a funcionalidade não precisa ser neutra ou minimalista — pode ser lúdica, afirmativa, cheia de presença.

A Pleats Please foi pensada como uma linha do dia a dia. Ela condensava o desejo de Miyake de levar design de ponta ao cotidiano das pessoas. Era a antítese da alta-costura: não precisava ser passada, podia ser dobrada em uma bolsa, era ideal para viagens, para corpos em movimento, para diferentes idades, tamanhos e estilos.

Com isso, ele rompeu com a ideia de que moda de vanguarda é inacessível. Pleats Please era — e ainda é — moda de museu que pode ir ao supermercado.

A linha cresceu e se consolidou como uma das mais icônicas do grupo Issey Miyake. Tanto que, mesmo após sua morte em 2022, ela continua sendo uma das mais vendidas e celebradas. Não à toa, muitas de suas peças fazem parte de acervos de museus como o MoMA, o V&A e o Kyoto Costume Institute.

Além disso, a Pleats Please inspirou desdobramentos como:

  • "me Issey Miyake" – linha jovem e acessível, com base nos mesmos princípios.

  • Perfumes Pleats Please – uma extensão sensorial da marca.

  • E coleções cápsula colaborativas, como com artistas visuais japoneses contemporâneos.

“Eu não penso no corpo como uma coisa fixa. O corpo muda. O tempo muda. As roupas devem acompanhar essa mudança.”

2. A-POC – A Piece of Cloth (1997):

Ambas as linhas partem de um mesmo desejo radical:

"Redefinir a maneira como o corpo e o tecido se encontram. Fazer com que a roupa nasça do movimento, e não o contrário."

Se Pleats Please é a exploração do plissado como expansão de movimento, A-POC é a tentativa de criar roupas que nasçam inteiras, em uma única peça de tecido, moldadas por algoritmos, sem corte, sem costura, sem desperdício. São dois lados de um mesmo pensamento:

  • Pleats Please = escultura do corpo em movimento.

  • A-POC = arquitetura da roupa no tempo e no espaço.

Lançado em 1997, em colaboração com o designer e engenheiro Dai Fujiwara, o projeto A-POC (A Piece of Cloth) foi uma ruptura total com a lógica industrial da moda.

A peça é gerada a partir de um software que tece, em malha contínua, uma roupa tridimensional, já com todos os detalhes embutidos: gola, mangas, encaixes. O usuário pode recortar o formato desejado diretamente do tubo de tecido, como se a roupa estivesse "adormecida" dentro da malha, esperando ser despertada.

É uma roupa que:

  • nasce do fio ao corpo, sem intervenção manual.

  • elimina sobras e desperdícios (extremamente sustentável).

  • pode ser customizada pelo usuário, o que quebra a separação entre criador e consumidor.

Miyake não queria apenas criar roupas novas. Queria reinventar o sistema de produção da moda.

Ambas as linhas nascem da mesma ética do corpo em fluxo:

  • Na Pleats Please, o corpo molda a roupa com o movimento — cada passo, cada gesto altera o comportamento da peça.

  • Na A-POC, o corpo participa da criação da própria roupa — o usuário escolhe como recortá-la, como vesti-la, como completá-la.

Essa passagem do movimento físico ao movimento digital mostra como Miyake sempre operou entre o artesanal e o futurista.

Ambas as linhas:

  • desafiam o tempo da moda tradicional (são atemporais, funcionam fora do sistema de coleções sazonais).

  • priorizam liberdade de uso: vestem todas as idades, gêneros e estilos de corpo.

  • mantêm um senso de leveza, de fluidez, de democracia formal.

Miyake dizia que seu trabalho não era sobre "moda", mas sobre vida em movimento. Tanto em Pleats quanto em A-POC, o foco está no cotidiano elevado à arte. São roupas que te acompanham no dia a dia, mas que também podem estar numa galeria ou palco.

“Eu penso em roupas como ferramentas para o corpo viver mais plenamente.”

Issey Miyake

Herança viva: o pensamento como legado

Hoje, essas duas linhas continuam sendo operadas por times de design que foram formados sob sua filosofia. Pleats Please Issey Miyake e A-POC ABLE Issey Miyake são ramificações do mesmo tronco criativo.

Legado e filosofia

Issey Miyake faleceu em agosto de 2022, mas seu legado permanece como um dos mais consistentes e visionários da moda do século XX e XXI. Ele acreditava em roupas que "celebram a vida", e sua prática buscava unir o tradicional e o futurista, o artesanal e o tecnológico, o local e o universal.

Mais do que um estilista, Miyake foi um pensador visual. Seu trabalho não apenas desafiou os limites da roupa como objeto, mas reimaginou sua função como extensão da liberdade do corpo humano. Para ele, o vestir era uma forma de pensar — com inteligência, poesia e invenção.