Alexander McQueen na Givenchy: O impacto que redefiniu a alta-costura
Em 1996, quando Alexander McQueen assumiu o posto de diretor criativo da Givenchy, a indústria da moda parou para assistir ao que poderia ser um desastre anunciado ou uma revolução histórica. Aos 27 anos, sendo um "rebelde da moda", como muitos o apelidaram, e uma estética anárquica moldada por suas raízes na classe trabalhadora londrina, McQueen foi jogado no coração da tradição parisiense para comandar uma das maisons mais respeitadas do mundo. O resultado foi claro e disruptivo — um dos capítulos mais intensos e controversos da história da alta-costura.

Transição na moda mundial
Entre 1990 até o inicio dos anos 2000, foi um tempo marcado por mudanças e inovações. De tal modo, foi um cenário significativo para a moda, quase como se ela estivesse passando por uma guerra silenciosa entre tradição e ruptura.
Logo após um vasto período de excessos e exarcebos nos anos 80, os anos 90 chegam um nova proposta — descontruída, minimalista e ousada. De diversas formas e visões o conceito “ousadia" foi aplicado e, vemos isso na trajetória e impacto de diversos designers como: John Galliano ao assumir a direção criativa da Dior em 1996 e elevar o drama da maison com cortes históricos e excêntricos. Nicolas Ghesquière na Balanciaga, resgatando códigos e arquivos da marca implementando o high-tech, esporte e futurismo. Ou ainda, Marc Jacobs na Louis Vuitton introduzindo o prêt-à-porter na marca e trazendo icônicas colaborações como: Murakami. Além disso, a designer Rei Kawakubo desconstruía formas com seu Body Meets Dress, Dress Meets Body, enquanto Martin Margiela explorava a moda conceitual com manequins Stockman e roupas que questionavam a ideia de função e forma.

Durante esse cenário, fica nítido o porquê de cada acontecimento. Vemos que a moda começou a entrar num processo maior quanto a sua globalização, se tornando mais visível e abrindo espaço para que os jovens e designers vessem que poderiam misturar diversas referências como Japão, Europa, streetwear, cultura pop — sem mais fronteiras rígidas.
Gigantes como LVMH e Gucci Group também, estavam formando conglomerados de luxo, e precisavam transformar marcas em máquinas de lucro, mas sem perder a “aura artística”. Por isso buscavam criadores como McQueen: alguém capaz de gerar buzz e, ao mesmo tempo, respeitar (ao menos em parte) os arquivos da marca. Esse foi o período em que os desfiles deixaram de ser apenas passarelas para se tornarem experiências teatrais. McQueen com suas máquinas cuspindo tinta, Galliano com suas heroínas trágicas, Kawakubo com suas esculturas corporais. O desfile virou parte do manifesto.
Nesse cenário, Bernard Arnault, CEO do LVMH, via em McQueen a faísca perfeita para trazer juventude e audácia à Givenchy — mas, ao mesmo tempo, carregava a expectativa de manter o prestígio e o lucro. McQueen aceitou o desafio, mas deixou claro desde o início: não iria sacrificar sua identidade.
A estreia: The Quest for the Golden Fleece (SS97)
Seu primeiro desfile na Givenchy, apresentado em 1997, foi uma ode ao choque de culturas: um palco tomado por referências ao mito dos Argonautas, com Naomi Campbell como deusa guerreira, vestida de dourado e com um elmo de chifres. Corsets alados imitavam as dobras das esculturas helenísticas, ear cuffs transformavam modelos em figuras quase alienígenas, e as madonas renascentistas surgiam adornadas com capas e chifres de carneiro — alguns emprestados por Isabella Blow, a amiga e grande incentivadora de McQueen.

A crítica parisiense, acostumada ao glamour discreto e ao romantismo da maison, classificou o desfile como um “caos”. Mas para a equipe do ateliê, como relembrou Catherine Delondre, era “alta-costura de verdade”. McQueen, em vez de suas camisas grunge, desfilou no final usando um terno risca de giz, como quem dizia: “Estou aqui, respeito a tradição, mas do meu jeito.”
Mcqueen ao idealizar seu primeiro desfile, mergulhou no mito dos Argonautas — heróis gregos por Jasão em busca do Velocino de Ouro — como ponto central da narrativa que buscava construir. Essa história retratava de maneira simbólica a aventura, a busca, transformação e coragem, aspectos que Alexander tinha o intuito de transmitir com sua entrada numa maison tradicional. Apesar de aleatório, essa escolha foi muito bem pensada. O Velocino de Ouro remetia a algo inalcançável ou até mesmo uma perfeição inatingível. Ao introduzir a temática nas passarelas ele demonstrava que não veio só para continuar a história, mas criar sua própria saga.

Uma das personalidades que se destaca nessa período de Mcqueen na Givenchy é a supermodelo: Naomi Campbell, que para além de modelo se tornou uma figura do poder feminino. Naomi, fez sua aparição na passarela com vestimentas que remetiam a uma figura mitológica, com referências a deusas gregas e guerreiras medievais. Suas roupas marcaram um romper da ideia da figura feminina como alguém frágil e etérea — ao que até naquela época, era algo comum ao olhos da maioria.
Em suma, Mcqueen brincava com diversas possibilidades. Nas roupas, ele desenvolvia corsets que imitavam as dobras das esculturas helenísticas que remetiam diretamente à arte clássica grega. Com isso, ele misturava mundos utópicos, entre o profano e sagrado ele retirava referências da arte sacra renascentista e do paganismo e, implementava acessórios como símbolos visuais como: chifres de carneiro, associados a sacrifícios. Os chifres de carneiro que vieram do rebanho de Isabella Blow reforçam a ligação pessoal e afetiva. Blow foi quem descobriu McQueen, comprou sua coleção de graduação inteira, bancou sua entrada no sistema. Usar algo literal dela no desfile era quase um amuleto, um agradecimento.

Para muitos críticos parisienses que, em suma, eram acostumados com um glamour contido, aquilo foi um ataque frontal. Chamaram de "caos", "mau gosto", "horror teatral". Mas para os ateliers internos, liderados principalmente por Catherine Delondre, foi exatamente o oposto: toda coleção foi aplaudida na sua forma mais pura, exaltando as técnicas complexas, as horas de bordados, e evidenciando os cortes distintos.
Já nesse primeiro momento, Mcqueen reafirmava o que estava fazendo e, além disso, que sabia jogar o jogo da indústria. Por sua dualidade e respeito a tradição, ele se mostrou flexível e rebelde quanto aos olhares de fora — mas, não ironicamente afetado pelas críticas, e sim, pronto para trazer inovação disruptiva a tradicionalidade.
Embate Criativo
Nos anos seguintes, McQueen usou a Givenchy como plataforma para tensionar as fronteiras entre o clássico e o subversivo. Ele levou à passarela figuras como montanhistas cobertos de peles, princesas asiáticas convertidas em amazonas futuristas, e noivas que pareciam saídas de um filme de terror barroco. Suas criações dialogavam com temas como poder, sexualidade, morte, renascimento e até crítica social.
Com a coleção FW97 Eclect Dissect, McQueen imaginou mulheres ressuscitadas após cirurgias sádicas, envoltas em rendas espanholas, colares birmaneses e penas. No FW98, fechou o desfile com um look que sintetizava a justaposição do rococó e do grunge: um vestido de noiva rendado, usado com calças dignas de Maria Antonieta, criando um colapso temporal visual.
No prêt-à-porter, McQueen aproximou a couture do real — queria que ela dialogasse não só com as mães ricas, mas com as filhas, com as mulheres comuns e as extraordinárias. McQueen desafiava o maior dogma da alta-costura: o da mulher idealizada como um objeto decorativo. Para ele, a mulher era um campo de batalha, um manifesto vivo de poder e vulnerabilidade. Ele entendia a moda como ferramenta para questionar, provocar e transformar, não apenas para "embelezar".
Cyborg Couture
Em FW99, com a coleção apelidada de “Cyborg Couture”, McQueen antecipou o espírito Y2K: tachas eletrificadas da Swarovski, circuitos, microchips e LEDs integrados aos vestidos, em parceria com o Studio Van der Graaf. Era o prenúncio da fusão entre moda e tecnologia, em um tempo em que a internet começava a transformar o mundo.


No SS99, McQueen transformou o desfile em performance: Shalom Harlow, em um vestido branco tomara-que-caia de broderie anglaise, foi girada por robôs industriais que lançavam tinta preta e amarela em seu corpo. Não era mais moda: era arte ao vivo, era emoção, era o desconforto do espectador diante do inesperado. Como escreveu a Vogue: “Não foi um desfile, foi arte performática”.


O legado na Givenchy
Ao longo de seus cinco anos na Givenchy, McQueen enfrentou o peso da tradição, as pressões comerciais e os limites impostos por uma maison com um DNA muito diferente do seu. No entanto, ele deixou uma marca indelével: ensinou à alta-costura que era possível misturar o sublime e o grotesco, o antigo e o futurista, o belo e o brutal. Como ele mesmo disse, “Paris não me ensinou docilidade”.
Em 2001, a parceria com a Givenchy chegou ao fim. McQueen, já com 51% de sua marca adquirida pelo Gucci Group, pôde retomar o controle total de sua criatividade — longe das amarras e das exigências de uma maison alheia ao seu espírito.

Quase três décadas depois, o impacto de McQueen na Givenchy ainda reverbera. O que ele fez abriu caminhos para que novas gerações de estilistas pudessem tensionar tradições. Sarah Burton, sua sucessora na Alexander McQueen, e até diretores criativos contemporâneos da Givenchy como Matthew Williams e Clare Waight Keller, beberam dessa liberdade criativa conquistada a duras penas por ele. Suas peças para a Givenchy continuam a inspirar. Zendaya, em 2024, usou um terno cyborg de McQueen para promover Dune: Part Two, provando que o diálogo entre passado e futuro ainda está vivo.
McQueen foi um contador de histórias que criou narrativa sobre o mundo com agulhas, tecidos e máquinas. De temáticas singulares de dor, poder e beleza, a sua passagem pela Givenchy é um lembrete de que a moda, quando há ousadia, pode ser muito mais do que roupa — pode ser posicionamento, estética e legado.
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