Das multidões às galerias: como Salvador moldou Pedro Marighella
O artista multidisciplinar é natural de Salvador e desde os 15 anos se envolve com arte. A música, o design e as artes visuais ocupam grande lugar na sua vida e sobretudo, no seu trabalho. As multidões são um ponto de interesse e caminham por entre todos esses meios os quais Pedro se propõe a trabalhar. A crítica também seu papel: desde sempre, Marighella via a arte como um caminho para promover algum tipo de crítica política e social.
Conversamos com o artista sobre seu início nas artes, sua carreira de DJ e seu amor por diversas áreas da arte. Confira abaixo:
Você é natural de Salvador e se formou na UFBA. De onde surgiu esse anseio de trabalhar com arte? É algo que vem desde sempre?
Sim. Sou formado em Artes Plásticas pela Universidade Federal da Bahia 🙂…Mas o interesse pela arte vem de muito antes. Tive o privilégio de viver numa família que convivia com artistas, curiosamente, sem frequentar espaços do sistema das artes (galerias, museus, tal…).
Através de ateliês e obras de amigos de meus pais (destaco a convivência com Ângelo Roberto, artista que admiro e participou da Segunda Bienal da Bahia). Outra coisa: Meu pai era deputado estadual quando eu era criança. Minha mãe, funcionária pública do estado. Ambos trabalhavam no Centro Administrativo da Bahia (CAB, uma espécie de Brasília baiana formulada por urbanistas como Lelé). Eu tinha muito interesse nas obras públicas presentes na Assembléia Legislativa do Estado, como os paineis de Carybé na fachada do prédio, o grande painel de Carlos Bastos no plenário… Os paineis de Juarez Paraíso no CAB... São muitos interesses. Não só pela forma, mas também por viver os efeitos políticos disso tudo, um certo componente cívico da obra de arte me formou…Tem a influência das artes de militância, o túmulo de Niemeyer feito pra meu avô, as decorações de carnaval também de Juarez e os blocos… são tantas experiências incríveis que me formaram. Não sei se dá pra dizer tudo aqui (risos). Mas acredito que minha facilidade desde cedo pro desenho, retroalimentada por esses estímulos todos, formaram esse anseio.
Como você aborda o processo criativo ao desenvolver suas obras? Há alguma rotina ou ritual específico que você segue?
Há muito tempo meu trabalho dialoga com as imagens que as corporações de turismo e entretenimento em amálgama com o Estado promovem, junto com a retórica da cultura e da identidade: muitas vezes inventando tradições apartadas do cotidiano da cidade, em outros momentos deixando vazar o caráter insubordinado dos corpos de uma cidade em festa. Assim, boa parte do meu processo criativo passa por garimpar imagens de acervos diversos e reorganizar a narrativa que se espera delas… Aí, vem o que Zé de Rocha (artista e amigo) chama de atuar no vínculo palavra-imagem, associando as imagens que surgem disso aos títulos que escolho, tipo: a multidão do carnaval, chamo de Mata; dançarinos urbanos, chamo de Templo; e por aí vai…
Eu tenho espaço de ateliê há muitos anos. É onde deixo um computador onde organizo um acervo, escolho e edito imagens (atualmente uso um software livre chamado Krita e uma mesa digitalizadora da marca Wacom bem antiga). Esse equipamento fica anexado a um projetor que me ajuda na transposição dessas composições digitais para a pintura em tela e papel. Minha rotina é bem 5x2 (segunda à sexta 🤓), costumo resolver e-mails, convites, escrita de projetos, pela manhã cedo, depois vêm os rascunhos digitais, as telas, a parte mais convencional… Mas, de todo modo, a parte que curto mais são as articulações. Por exemplo, atualmente estou muito animado com a parceria com Joy Nigga, multiartista, um amigo mais conhecido como dançarino de pagodão com quem articulo ideias há anos, mas com poucos resultados ainda (risos)… tem uma hora que não dá pra inventar uma rotina pra essas articulações. O processo, por mais que a gente esboce, fica submetido a possibilidades de financiamento, humor, agenda, restrições institucionais, limites humanos diversos ou as próprias vantagens do que é imponderável, enfim… Essa é minha rotina (risos)
Você transita por vários meios para se expressar, como ilustração, pintura, música, design, etc - como se dá a escolha de qual caminho você vai seguir? Você tem preferência por algum?
Eu tenho essas carreiras paralelas (risos). Entre os 15 e 30 anos minha subsistência vinha de trabalhos de ilustração e design. Tenho trabalhos que me orgulho muito em capas de discos como Lazzo Matumbi, Mateus Aleluia, ÀTTØØXXÁ…. Como carreira, hoje vejo tudo isso mais integrado ao meu lado “artes visuais”. Assim, me restaram, ainda bem, somente esses dois lados: artes visuais e música…
Pelo lado da música, tenho meu projeto de composições próprias, de vez em quando produzo sob o pseudônimo Som Peba… Sou colecionador de vinil, DJ (não chega a ser uma carreira, né?)…. Fui um dos primeiros artistas a adotar como assinatura a relação da música popular baiana com gêneros eletrônicos, mas, decididamente, vivo da relação com o circuito das artes visuais.
Sobre os temas que me convocam, sobre o potencial crítico da diversão que me interessa, sempre chegam citações da indústria cultural, da indústria fonográfica… Atualmente estou muito interessado pelos designs das capas de discos de vinil, pensando neles como um circuito de artes visuais razoavelmente possível no fim do século XX, enquanto discutimos a ingratidão que temos com acervos públicos no Brasil e a volatilidade dos acervos digitais… Além disso, não podemos negar o papel singular que a Bahia ocupa a partir dos anos de 1980, com a ascensão da axé music, fomentando, através da indústria fonográfica, um contraponto ao predomínio do eixo Rio-São Paulo. Como soteropolitano me sinto empoderado por essa história que me precede e muitas vezes a gente lida como de mau gosto… Talvez, neste contexto, a música pra mim seja uma vírgula de insubordinação e potência.
Talvez meu lugar de encontro entre esses caminhos das artes visuais e música esteja no que a vida me apresenta como potência e pertinência… Vamos ver…
Como você vê o papel da crítica em suas obras?
Não vejo a participação de uma “crítica”. Você está falando de “crítica”, “crítica de arte”? (risos) Existe? (risos). Nem sei se têm pessoas interessadas em mim no que podemos chamar de trabalho crítico, pra poder responder… Não vejo um campo institucional suficientemente esforçado em promover alguma interlocução consistente, ampla… Existem muitos desafios a serem empreendidos no contexto brasileiro. Do que conheço do panorama de arte brasileira, vejo o trabalho crítico como algo quase que exclusivo da produção curatorial. No entanto, vejo o trabalho empenhado de algumas pessoas resistentes que se preocupam em dialogar com as pertinências da vida a partir da arte. Acompanho com muito carinho o empenho e o trabalho de João Victor Guimarães (esse com um volume de produção de crítica em ensaios) e Uriel Bezerra: ambos, amigos, curadores e interlocutores, com quem divido impressões, descobertas e desabafos. Obrigado, amigos!
Desde muito cedo você já estava realizando grandes coisas para sua carreira - para os próximos anos, quais são suas aspirações? Há um projeto ou visão que você gostaria de explorar?
Na real, não sei (risos). A pintura ainda é meu lugar de subsistência, mas eu sou cada vez mais interessado em projetos de memória, documentação, acervo…. Ah! Sei lá! Quero tudo, gente!
Nos anos 2000, você começou a atuar como DJ. De onde surgiu esse amor pela música? E qual era seu objetivo com ela?
Então, sobre a pergunta que você fala sobre o ano 2000, quando eu comecei a atuar como DJ, achei uma pergunta muito interessante, porque eu acho que de fato eu fui uma criança mais envolvida com o desenho, com as artes gráficas. Eu tinha uma aptidão minha mais explicitamente apresentada para as artes gráficas. Mas tive passagem, minha mãe me matriculou no curso livre para crianças da UFBA, da Escola de Música da UFBA, mas foi coisa muito rápida, coisa de um ano só, um pouco de base de composição, leitura de partitura, tocar flauta doce. Mas eu acho que o que é essencial é saber que, bem, eu sou nascido em 79, e, como era comum na época, minha educação musical foi muito feito através da MPB, por esses nomes que são bastante difundidos - muito Gilberto Gil, minha casa tinha uns discos de Luiz Gonzaga.
Fui muito educado pela música de rádio também, pelo que tocava no rádio, tanto música brasileira quanto música internacional, chegava a mim. Eu me interessei muito por aquele universo da música de rádio, tocado no carro, tocado no tempo livre, na casa das pessoas. A gente tem que lembrar também que é uma época, pelo menos aqui na Bahia, que a gente ainda tinha muita presença da música na rua, nas festas de Largo, do samba de roda, em passeio pelo interior, carnaval, fanfarra, já existia música de trio elétrico. Existia um outro tipo de construção de circuitos carnavalescos, uma outra ergonomia. Mas a música estava lá presente na minha vida vida o tempo todo. Por meu pai ser uma pessoa politicamente ativa, de esquerda, a gente tem que considerar também que o lugar de uma relação com as artes era um lugar das artes, de certo modo, promover algum tipo de crítica política, social, era um lugar da esquerda, principalmente.
Então, eu tenho lembranças muito nítidas e que me impactaram muito de situações como, por exemplo, visitar a sede do Olodum no Pelourinho, estar nos ensaios dos blocos, porque era um lugar onde meu pai conhecia as pessoas que promoviam essa rede de produção coletiva que são os blocos principalmente os blocos afro.
Então isso imprimiu em mim a importância da música não só como forma mas também como um evento político, né? Com sua capacidade de gerar consciência política. Posso dizer que fui muito atingido pelo sucesso radiofônico e fonográfico do Samba Reggae, da axé music, mas de todo modo eu sempre me interessei também por música estranha e isso ficou mais explícito ao longo da minha adolescência.
Já um pouco mais velho, chega aqui em Salvador a MTV e isso tem um impacto na minha adolescência no certo percepção também multidisciplinar da música nessa relação com a imagem. Lá pro final dos anos noventa tem uma disseminação de uma música eletrônica do norte-ocidente. Mas de todo modo, isso me faz ter um certo interesse por um tipo de música mais underground. Em Salvador vão chegando informações através desses trânsitos - as pessoas viajam, voltam com disco, coletâneas. Na época rodou aqui em Salvador um CD com vários softwares como o Rebuff e outros programas de edição. E as pessoas foram instalando esses programas e aprendendo muito e acho que esse CD influenciou uma cena de música eletrônica em Salvador.
Mas eu não via meus amigos, as pessoas que frequentavam as festas, interessados em fenômenos semelhantes que aconteciam em Salvador. Então, eu achei muito estranho que a gente tinha fenômenos como o Olodum e Ilê, principalmente, e que as pessoas não gostavam disso, ao mesmo tempo que elas gostavam de coisas que estavam nas prateleiras da indústria fonográfica.
E isso começa a me trazer questões, levando em consideração meus antecedentes - minha experiência anterior, de minha formação -, de uma suspeita de que, de fato, existem elementos de uma distinção social, que se apresentam através da relação das pessoas com certos fenômes da indústria fonográfica. Talvez um elemento também de repúdio racial, porque naquele momento esses blocos afro, principalmente, eles eram tidos como fenômenos das comunidades negras de Salvador. Então eu vou ficar muito desconfiado com essa presença, esse comportamento que existia na cultura alternativa de Salvador. E eu estou falando de uma época também que a cultura do vinil tá em decadência. E, ao mesmo tempo, tinha essa cena de música eletrônica. Eu estava me questionando sobre o porquê de as pessoas não gostarem de determinado tipo de música soteropolitana, baiana, brasileira, e simultaneamente também estava acontecendo esse declínio da cultura do vinil, muitas pessoas descartando suas coleções, atualizando por CD. E aí eu me via assim como um grandíssimo receptor de discos antigos, que não tinha mais função. Meio que essa tarefa meio de acumulador - e acho que foi uma das coisas mais maravilhosas que eu já fiz na minha vida, porque eu passei a dar atenção, através desses meus questionamentos, para uma coleção que eu fui construindo de música baiana, de coisas que eu descobri interessantes, de certo modo disruptivas, com aquela cultura da axé music, que é mais mainstream. Eu me permiti a fazer uma tentativa um pouco mais lado B dessa cultura e até mesmo de celebrar grandes produções do que era forte, mainstream também, sem problema, mas o ponto que eu quero chegar é que: eu me vi numa situação um pouco de um agente cultural que precisa levar essa palavra de um sentido crítico, para reorganizar esses acervos, esse pensamento crítico com relação às distinções sociais promovidas através desse acesso automático, dessa facilidade automática às recomendações da indústria fonográfica internacional.
E como boa parte dos meus amigos alternativos, eles apareciam com seus toca discos com agulhas importadas e tal, tocando sucessos ou coisas mais obscuras da música eletrônica do norte-ocidente. E, de repente eu me vi infiltrado como essa figura meio problemática até, que me infiltrava nos DJ sets, nas festas dos amigos e começava a tocar minha coleção de discos de vinil, de axé Music, de Samba Reggae, de música preta de Salvador, ou não tão preta assim, mas dessa música local que era visto normalmente como de mau gosto.
E muitas vezes fui expulso das festas, as pessoas balançavam as cabeças em sentido negativo, que estavam odiando, botavam dedinho para baixo para dizer que não estavam curtindo. Então acho que isso foi o início, e de fato, acho que eu sou meio que vanguarda nesse sentido. Não tenho memória de ninguém que tenha feito essa operação antes de mim. Estou falando de um período entre 1999 e 2000, uma coisa assim. Não vou saber dizer.
Nesse mesmo período, um amigo chega com uma revista. Ele vem de um curso na Inglaterra para aprender inglês. E ele chega com uma revista em espanhol onde dizia que tinha um DJ que se chamava “DJ de Mierda” - tipo DJ de merda, né?
Enfim, eu nunca fui um DJ tão bom assim e nem pretendia de fato. Eu acho que eu gostava mais de me infiltrar um pouco com essa figura disruptiva e o que eu posso te dizer é que eu adotei esse pseudônimo de São Peba como uma homenagem a esse “DJ de Mierda” e achando que eu poderia produzir essa autoironia como uma antecipação do meu recado.
Essa ideia do DJ São Peba vai evoluindo um pouco para eu me reapropriar, à medida que o meu gosto musical vai se desenrolando em ideias próprias. Então eu vou compondo músicas no meu tempo livre. E eu passo a ser conhecido em Salvador e depois fora. Amigos vão ouvindo, gostando de composições que eu fazia de música eletrônica. E eu não me via como uma pessoa da música. Eu me via como uma pessoa fazendo a coisa meio toscamente mesmo até, de certo modo, por provocação, né?
E nisso eu acho que, de certo modo, meus sites vão educando uma série de pessoas aqui em Salvador. A música vai se difundindo, e acho que o gosto, de certo modo, vai mudando. Então, acho que o perfil das pessoas, do que elas entendem que é correto como música, vai mudando muito. Eu acho que foi muito colaborativo também pra uma cena local e talvez pra fora de Salvador também. E não vou mentir, quando vejo alguém tocando Axé Music num DJ set, numa festa alternativa, sempre acho que está me citando , dando desculpas e parece que estou tirando muita onda.
E eu vejo isso como algo que está intrinsecamente relacionado ao meu modo de ver a arte, como se a forma fosse mais um dispositivo para acionar algum tipo de comando social, alguma instrução, alguma reflexão de como é que a gente se organiza como comunidade, enfim.
As multidões são um ponto de interesse e muito bem representadas em seus trabalhos. De onde vem inspiração para retratá-las?
Sobre as multidões como um ponto de interesse nos meus trabalhos, eu acho que nessa pergunta anterior, sobre os experimentos com DJ, eu faço uma introdução, que já ajuda a responder um pouco.
Eu não era indiferente - é um pouco a consolidação de algumas transformações culturais e institucionais na cidade. A gente tem que lembrar também que Salvador teve um período de muita influência de um grupo político que a gente chama de Carlismo. Que tem essa liderança, que é Antônio Carlos Magalhães, que é uma figura que acende pós-ditadura militar, consolida uma oligarquia midiática, principalmente, diferente dessas antigas oligarquias rurais que a gente vê no Nordeste, que muitos chamam de Coronelismo. A gente está falando de um tipo de consolidação de um grupo poderoso que se estabelece através das mídias.
O Antônio Carlos Magalhães foi ministro das comunicações, tinha uma relação com o governo Sarney nesse sentido. A família dele operava a filial da Globo na Bahia. E um dos pontos de convergência do poder estabelecido, para justificar o seu poder, era o Carnaval. Existia uma espécie, um desejo de combinar com essas dinâmicas carnavalizadas, de uma retórica, de uma cidade em festa, para conseguir estabelecer o seu poder. Pois bem, e os anos se passam, né?
A gente vê também por um outro lado, não só pelas artes, pelos artistas na música, nos visuais, enfim, em diversas outras linguagens, uma retórica ligada ao carnaval, à multidão. Uma retórica muito ligada às esquerdas também de pensar a massa, a multidão politizada, os efeitos democráticos de se estabelecer um elo com esse campo desse grande corpo humano, que dá sentido à vida em comum. Então a gente vê a solidificação não só pela arte desse tipo de retórica, mas também pelo campo intelectual também - a gente tem nomes como Antônio Rizzério, Paulo Miguez, Golly Guerreiro, etc. Todas essas pessoas que estavam nas TVs e nas rádios discutindo esses pontos se preocuparam em ser intelectuais públicas e emitir opiniões.
Enfim, é um pouco para dizer sobre esse universo que me que me forma, essa disputa de um carnaval popular entre o poder instituído e outras forças alternativas. O Brasil estava ali se redemocratizando, né, exercendo o poder do voto, de outro tipo de mobilização política. E nesse mesmo contexto, me incomodava que nas artes visuais, tinha uma certa desassociação, produzida dentro das instituições, nas galerias.
E me incomodava por ser um desenhista, uma pessoa que queria trabalhar com artes gráficas, ser artista, que eu não via nos meios que eu frequentava, um interesse pelo cotidiano da cidade, no geral. Mas nesse caso, esse tipo de cotidiano que eu achava pulsante, vivo, estava na TV, estava no rádio, estava no jornal, estava na boca do povo, consumia o interesse das pessoas todos os anos, na economia da cidade, estava por todos os lugares, e eu via uma certa resistência, principalmente naqueles artistas que passavam pelo campo institucional. E esse desinteresse por esse panorama muito específico da cidade, apesar de ser compreendido por uma espécie de oposição, por uma espécie de repulsa a esse axé-system, a essa dinâmica dos negócios ligados ao carnaval, mas que não era o único cenário possível.
A falta de disputa nesse segmento me incomodava, apesar de compreender um lado de oposição, mas também esse desinteresse dos meus colegas, do campo institucional, das artes, um pouquinho também me cheirava a distinção social, a racismo, uma resistência em estar ligado a outras comunidades, outras possibilidades de discussão, outras brigas políticas que estavam em aberto. Então, eu passei a ter muito desejo de fazer parte e contradições que já estavam mais normalizadas no universo do carnaval, desse carnaval afropop de Salvador e que ao mesmo tempo estavam postas principalmente nesse mundo da música etc. Como eu estava falando, eu via em mim essa discussão como uma potência que eu deveria exercer sobre o lugar que eu ocupava. Isso me leva não somente a fazer desenhos de multidões, de carnaval, em festas, mas me levam também a outros tipos de relação com essa discussão.
Me levam, por exemplo, a minha participação com o GIA coletivo de interferências urbanas de Salvador que circulou bastante. Mas eu via também no desenho, que é uma potência mais permanentemente presente na minha produção como artista visual, uma possibilidade de discutir a presença dos corpos - como é que eles rompem dinâmicas de poder na cidade.
A gente tem que lembrar que Salvador é a cidade de Dodô e Osmar, inventores do trio elétrico, e que tem essa história muito curiosa: o trio elétrico quando ele é inventado lá nos anos 40, 45, não era estabelecida a ideia de um carnaval com música. Os caras inventam ali um carro com som automotivo, que hoje é uma coisa muito comum mas que na época era raro ou inexistente. Em Salvador não existia essa ideia de um carro com som amplificado, acoplado. Eles vão lá e botam instrumentos musicais tocando amplificados também, com aquela caixa acústica. O ponto que eu quero chegar de fato, é que Dudu e Osmar, quando eles inventam um trio elétrico, que é um carro com essas caixas de som com os caras em cima tocando, o carro quebra numa ladeira e eles próprios não entendem o que está acontecendo - a multidão que estava se divertindo continua a empurrar o carro e empurra contra o desfile oficial das elites baianas na época. Então com esse exemplo, eu quero dizer que o carnaval soteropolitano como a gente conhece hoje tem uma origem que passa pela insubordinação, por esse caráter conflagrador, meio revolucionário.
Tudo isso me imobiliza, então essas obras que eu vou produzir a partir de todas essas influências, elas começam a pensar sobre a ocupação e desocupação gráfica, a relação do espaço e do corpo muitas vezes com seus cenários removidos, com esse enfoque nos corpos. Então é muito comum você ver na minha produção: tem duas séries que eu acho que são as que eu atuo mais já há muito tempo, que é Mata - que são imagens normalmente de multidões em Carnaval, em festas, onde tem um sentido mais de ocupação do espaço. Normalmente são corpos ou grupos mais solitários com esse grande vão. Entre esses dois lados, essa inquietação pela vida em comum e essa solidão do dançarino da pessoa que festeja o sol, que se internaliza.
Bom, sobre experiências fora do Brasil, eu participei de algumas experiências com o Coletivo Gia. No Coletivo Gia eu fiz parte entre 2003 e 2010 e nesse período, a gente participou de uma residência no Espaço Cultural em Madri, chamado Intermediar, que é uma feira de artes que acontece na Espanha. Na época, existia uma mobilização muito grande dentro do contexto político. Gilberto Gil era ministro da Cultura. Existia um movimento muito positivo, coletivo, em celebrar esse panorama internacionalmente, esse panorama brasileiro da era Lula, e essa feira resolveu fazer o ‘ano do Brasil’ com muitas ações, artistas brasileiros.
O coletivo GIA fez, nessa instituição em Madrid, uma ocupação de reedição para o contexto espanhol de seus principais projetos, tendo como convidados mais sete coletivos brasileiros e sete coletivos da Espanha. Essa experiência foi muito positiva para mim, não só pela natureza de encontrar, tendo o meu coletivo como destaque, conhecer tanta gente e conviver com tantas pessoas novas e também com muitos amigos brasileiros que estavam junto lá com a gente. O fato de ser uma mobilização dessa natureza que contou com uma participação tão ativa do Estado brasileiro foi algo que me chamou muita atenção na época para entender como certas transformações sociais e culturais muitas vezes se fazem através de política pública, de interesse institucional, de Estado.
E sozinho, depois de conquistar o prêmio na Bienal do Recôncavo, aqui na Bahia, eu participei de uma residência na Escola de Belas Artes de Brera, em Milão. Foi uma experiência muito interessante também. E eu acho que o outro fato curioso é perceber que essa escola, ela é uma versão um pouquinho mais rica da escola de Belas Artes aqui, da Ufiba, que é uma escola também antiga, para o contexto brasileiro, talvez de origem, de inspiração mais neoclássica.
Então, essa experiência com o Gia, com o Intermediar, eu acho que foi algo que me mobilizou a pensar um uso de um espaço cultural um pouco mais aberto em termos de linguagem, experimentação, tipo de museu. Acho que no Brasil a gente tem muitas experiências parecidas com isso hoje, mas na época eu não conhecia. Mas coisas do tipo, que pensam desde artistas residentes e que expõem e que fazem residências para diversos coletivos fazendo seus projetos. Enfim, acho que foi uma experiência que me fascinou muito e sou muito grato pelo contexto político que promoveu isso.
Durante sua trajetória artística, houve algum momento que tenha gerado uma mudança significativa na sua forma de ver o mundo ou sua prática?
Olha, como eu disse antes, eu tenho essa integração também com a música. E por incrível que pareça, eu acho que o momento significativo que, eu sou muito feliz de ter vivido, foi quando eu fazia parte de um coletivo, acho que entre 2016 e 2017; de um coletivo chamado Bota Pagodão. Inicialmente, o projeto era para ser uma festa, que era organizada por Romin Rafa e Dias do ÀTTØØXXÁ, que dá origem a esse coletivo, esse grupo, essa banda que é bem conhecida hoje. E Bob, Bob de Joy, que é uma figura que me chamava muito a atenção na época, porque a gente se conhece através de um projeto que eu fiz para a Bienal da Bahia.
Na época Bob tinha uma banda chamada Mr.Bob, que chamava muita atenção por destacar a questão do audiovisual. Era uma banda que fazia suas músicas pop para tocar no rádio mesmo e era uma banda de pagode, que fazia seu som bem pop, mas tinha esse aspecto que era considerado mais singular, mais alternativo, diferentão, que era produzir música, material gráfico, bem distinto e principalmente os videoclipes. O primeiro clipe de pagode todo produzido em plano sequência, essas coisas estavam meio que restritas à linguagem do cinema. De repente, os caras trazem para esse contexto do pagodão, de modo singular, aproveitando um pouco a possibilidade de chamar atenção para as suas produções a partir dessas obras mais singulares.
E eles também foram meio que vanguarda no uso de elementos eletrônicos, como samples, experiências com mídia, coisas que estavam restritas a um mundo mais alternativo da cultura hacker. E que eles conseguiam assimilar de modo muito interessante a uma experiência mais pop, né? Pois bem, então, junto a eu, que era esse cara que produzia música eletrônica, produzia alguma coisa que a gente poderia chamar de um híbrido, né? Entre arrocha, a pagode, mas uma coisa totalmente eletrônica, assim, na época. Mas que eu ficava nessa de variar entre essa dimensão das artes visuais e a música.
A gente faz então essa festa chamada Bota Pagodão, por volta de 2016. A intenção era fazer uma festa de pagode no Rio Vermelho, que era o centro da farra soteropolitana na época, que seria um pouco equivalente à Lapa, talvez, no Rio de Janeiro, para ver se um público sudestino de repente se identifica. A festa é razoavelmente bem-sucedida nas primeiras edições e a coisa vai se desenvolvendo mais. A gente vai trazendo pra perto Gabriel Barreto, videomaker de Sergipe, que fazia também videomapping e cuidava de boa parte da edição dos materiais para as redes sociais.
Em algum tempo essa festa, coletivo, vai se desmembrando. Acho que na época até a própria linguagem desse coletivo, que hoje acho que está bem estabelecido, era uma coisa muito diferente, alternativa. O projeto acaba não sendo viável naquele momento, mas seus integrantes depois vão percorrendo outros projetos. Eu mesmo, com essa dissolução do coletivo, vou ser professor da escola de Belas Artes temporariamente.
Durante o processo de suas obras sobre o carnaval, há alguma dinâmica ou elementos em específico que você goste mais de destacar?
Boa parte desses trabalhos que se referem ao carnaval, eles são intitulados como obras da série Mata. Que são esses trabalhos, de modo geral, utilizando imagens de acervo do carnaval, coisas que eu tirei foto, ou coisas conseguidas na internet, ou de acervo de amigos, de instituições, do Estado, de corporações, do turismo, do lazer, entretenimento no geral. Faço e reorganizo as figuras que estão colocadas nessas imagens meio que ficcionalizando e propondo uma espécie de acúmulo gráfico.
Pois bem, essa série, ela surge um pouco quando eu descubro na internet as primeiras imagens produzidas a partir de câmeras em celular, por volta de 2009, 2010, e vejo esses registros principalmente no YouTube. E eu fico muito fascinado com esses registros, porque eu acho que eles têm uma capacidade de mudar muito tanto as qualidades formais, no sentido das texturas, na perspectiva. Mas, também os temas que aparecem, e eu percebo que existe uma espécie de reavaliação do que seria o tipo de imagem produzida a partir dos registros oficiais, produzido pelas corporações de turismo, de entretenimento e em amálgama com o Estado, principalmente. E um pouco desse fenômeno me leva a tentar reunir estilos desses frames, desses registros, principalmente em vídeo. E eu passo a desenhar composições a partir do que eu vou encontrando pela frente, fazendo uma espécie de acumulo gráfico.
O ponto que eu quero chegar, é que eu acho que um dos elementos que eu gostaria de destacar é, a partir de 2009 ou de 2010, eu pego uma câmera Sony Cybershot que eu tinha e eu fantasio ela de lata de cerveja. Eu pego essa câmera, que é pequena e ela cabe dentro de uma lata de cerveja - eu faço uma tractana e monto de um jeito que eu consigo tirar a foto com essa câmera escondida na lata de cerveja.
E eu acho que, a despeito de qualquer questão que a gente levante sobre direito de imagem e tal, ao mesmo tempo tem uma questão de como é que eu vou processar essas imagens a partir de uma própria experiência de diversão, de curtir o carnaval e com essa fantasia de lata de cerveja se torna também um elemento de brincadeira e de interação com as pessoas. Então, muitas dessas fotos são feitas sem autorização, com uma qualidade de autorização meio difusa, eu vou subvertendo um pouco essas questões de ordem ética mesmo, de modo a priorizar esse lado da brincadeira. E acho que isso é um fato interessante para a gente pensar um pouco como é que o processo artístico lhe acontece, porque até então era só uma brincadeira, não tinha uma aplicação... Não imaginaria que seria um projeto que eu passaria tanto tempo executando.
Eu acho que também ele evidencia o lado meio ciborgue desse trabalho, de pensar não só a ideia de retratar pessoas, mas de pensar a relação que nossa sociedade tem com a produção de imagens, e principalmente com a produção de imagens nesse campo corporativo, estatal, a que eles se referem, principalmente dentro da perspectiva do consumo, do turismo, da produção de negócios. E isso tudo me faz pensar também um pouco nesse sentido de porque essas imagens são produzidas, para quem, como ele reforça tradições inventadas pelos poderes instituídos. E também a dinâmica até onde se estende a ideia de ver a pessoa que faz esse tipo de brincadeira que acho que também não se resume a mim. A gente quando brinca no carnaval, se fantasia, quer aparecer, quer produzir suas próprias histórias, quer inventar histórias.
E aí eu acho que tem uma ideia também de sair do contexto do pesquisador e, de repente, nesse contexto eu me vejo um pouco como fã e, à medida que eu ficcionalizo, reprocesso essas imagens através do desenho, eu faço uma piada também que eu me vejo como um fã ou um fanfiqueiro, uma pessoa que produz fanfics, ficções de fã. Um pouco pensando na minha relação de sedução e do modo como a gente se interessa muitas vezes por essas farras, por essas experiências carnavalizadas.
Essas experiências de carnaval estão bem estabelecidas com o mundo do consumo, com a indústria cultural. Levando em consideração tudo o que eu já falei antes sobre minha relação com os discos de vinil, com a indústria cultural soteropolitana baiana, como é importante a gente perceber que muitos desses ídolos do carnaval e outras figuras anônimas elas também compõem uma espécie de insubordinação verticalizada com a indústria cultural partindo de fora para a Bahia e essa questão de certo modo se inverte em que como a produção fonográfica, artística, ligada à festa, ao carnaval na Bahia, ela tem poder a partir de si, em grande parte.
Então eu gosto de me ver também como um fã, a partir do modo como eu me relaciono com essas imagens, eu gosto de me ver como um fã, um fã fiqueiro - é uma pessoa que produz ficções de fã, inclusive para brincar também com essa relação, de consumidor-produtor, pesquisador-fã, a possibilidade de a gente ver o fã como uma figura rebaixada em relação às pessoas que criam conteúdos, né? Então, existem aquelas pessoas que são poderosas porque influenciam, porque têm seguidores, produzem coisas originais com muita visibilidade, e aquelas que são fãs, que seguem, observam com carinho e acabam chegando até o ponto de se relacionar com esses universos e se emancipam de sua relação com a indústria cultural.
Enfim, o ponto é que eu acho que tudo parte dessa ideia de ver a relação com as imagens que são produzidas com a parte do carnaval, em suas contradições, a gente possibilitar uma discussão sobre os poderes que estão estabelecidos, como eles se organizam com a população, com os consumidores e produtores.
É nítido que a cor azul tem grande espaço dentre a maioria de suas obras. Há algum motivo específico para usá-la?
Essa história da cor azul, eu não sei se as pessoas ficam meio decepcionadas com isso, mas não tem uma história específica. Eu estava falando um pouco da criação do Projeto Mata, antes, na pergunta anterior, e quando eu tive acesso a essas primeiras imagens do Carnaval, que me interessaram, desses registros feitos a partir de câmeras de celular. Eu fiquei tão fascinado a ponto de querer desenhar, fascinado, animado, né, eu virei um fã tão grande, virei um fã fiqueiro tão grande dessas imagens, que eu vi que o modo de expressar aquele amor, aquele desejo era talvez através do desenho, né? E aí eu cheguei em casa, mas teve um vídeo muito específico de uma confusão no carnaval, da massa passando a acompanhar o novo trio.
E eu vi isso no YouTube, demorei um tempão carregando esse vídeo, e ia dando play e pausando, vendo imagens interessantes, trechos, composições dentro da própria composição do vídeo que me interessava, que produzia algum tipo de narrativa que parecia interessante. E eu fui sobrepondo essas imagens, via uma coisa interessante, desenhava no papel, pausava, dava play, via alguma coisa, pausava, desenhava e fui construindo uma grande composição.
A ideia de ‘Mata’ tem a ver também com isso, essa ambivalência da palavra, da mata que pode ser vegetação, pode ser mata, do verbo matar. Para trazer um pouco essa discussão sobre se ‘mato’ é um termo sobre uma organização social das plantas, ou se ‘mata’ é um modo de distinguir se aquelas plantas são valiosas ou não. Enfim, é como se diz sobre o mato de que de certo modo é toda aquela vegetação que não tem que não tem importância, que não tem utilidade numa plantação, num contexto paisagístico. O ponto que eu quero chegar é que eu fiz esse tipo de conexão entre essa palavra e imagem, né? Fui nessa sobreposição de camadas gráficas, né?
De linhas, de manchas e tal e eu me lembro das primeiras experiências eu ter tentado com uns hidrocores. Eu vi isso num computador e fui pegando uma caneta preta, um hidrocor preto, um hidrocor vermelho, e, de repente eu passei pelo azul e me pareceu que a composição estava mais equilibrada, mais correta. As linhas azuis davam distinção para o que estava sendo descrito na imagem. Eu tinha uma vontade de tornar a descrição bem objetiva, que a pessoa visse e entendesse logo que se tratava de uma farra, de uma brincadeira, de uma briga, de uma confusão, e que as linhas, a sobreposição das composições, ficasse bem descrita.
E parecia que o azul ia produzindo para mim essa descrição firme, bem contrastada com relação ao papel branco que eu estava usando, sem necessariamente produzir um significado específico, deixando talvez as imagens dizerem por si próprias. Bem, o azul vem daí e eu sei que muita gente vai falar que azul é o céu da Bahia, é o mar, é a bandeira de Salvador, é a azulejaria portuguesa, e eu não descarto nenhuma dessas opções - acho bonito como as pessoas ou talvez o azul também tenha uma coisa meio escolar, meio banal, prosaica, que lembra também a difusão da escrita com a caneta esferográfica.
E acaba virando uma marca gráfica, pictórica. Mas digo assim, acaba que esses trabalhos com um assento gráfico bem evidente, em azul, acabam virando esse lugar onde eu sinto que, de certo modo, eu transponho as características documentais, essa relação com a fotografia, que é obrigatória, que tem no meu trabalho. De certo modo, o azul e todo esse acento gráfico, ele remete a essa reinvenção da realidade. Ela reitera o caráter ficcional desse reprocessamento, né?