Quando Margiela vestiu Hermès
Em abril de 1997, a renomada maison Hermès chocou o mundo da moda ao nomear Martin Margiela – o enigmático maestro do desconstrutivismo – como seu diretor criativo de ready-to-wear feminino. A decisão, assinada por Jean‑Louis Dumas, não apenas surpreendeu o setor, mas também sinalizou uma guinada sofisticada: em vez de trazer o espetáculo habitual das passarelas, Margiela propôs um luxo silencioso e meticulosamente estruturado, baseado em cortes impecáveis e peças modulares,
Durante seu mandato de seis anos, até 2003, Margiela assinou doze coleções que redefiniram a elegância da maison, introduzindo elementos inovadores sem abrir mão da essência clássica da marca. O período Margiela‑Hermès, muitas vezes ignorado na época, ressurge hoje como um exemplo brilhante de como a inovação discreta pode transformar uma marca centenária sem comprometer seus valores.
Mergulhamos na trajetória do designer durante seu tempo na grife. Confira a matéria completa abaixo:

O primeiro contato
Em abril de 1997, de forma atônita, o mundo da moda assistiu à nomeação do designer belga Martin Margiela como novo diretor criativo da Hermès. À princípio, a escolha parecia impensada e até mesmo improvável. Martin, já naquela época, era reconhecido como mestre das desconstruções, um anti-herói que se escondia atrás de suas criações e se recusava a aparecer nos aplausos finais. Ele não dava entrevistas, não posava para fotos e se comunicava com a imprensa apenas por fax.
Enquanto isso, a Hermès representava o luxo clássico francês, desde a elegância discreta, atemporalidade, códigos tradicionais como o laranja icônico, a bolsa Kelly e os lenços carré de seda. Ao ver de muitos, o questionamento recorrente era: como poderiam equilibrar dois extremos?

A influência decisiva de Sandrine Dumas
A resposta foi praticamente instantânea, pois veio da própria família Hermès. Sandrine Dumas, filha de Jean-Louis Dumas, já havia trabalhado como modelo para Margiela nos anos 90 — em troca de roupas. Quando o pai pediu uma indicação para substituir Claude Brouet, ela respondeu sem hesitação: “Martin Margiela”. Sua influência foi decisiva, e com isso Martin não precisou desenvolver nem planos de negócios, moodboards ou apresentações longas e precisas. Bastou somente um almoço para perceber que Margiela e Dumas compartilhavam valores profundos: conforto, qualidade, longevidade e um luxo pensado para quem veste, não para quem observa.

Roupas vivas e não exibidas
Aqueles que retinham uma expectativa para Martin quanto à grande e radicais intervenções se desapontaram. Margiela não cortou bolsas Kelly ao meio nem desfiou lenços carré. Ele apresentou roupas de simplicidade extrema, quase monásticas, mas carregadas de sofisticação.
Numa paleta de bege, marrom, cinza e tons de amarelo queimado, o designer trouxe tons de nude e neutros dentre suas coleções, deixando pra trás o maximalismo carregado das cores vibrantes. Nesse mesmo momento, surgiram peças modulares como o famoso Vareuse (blusa com decote V profundo), trench coats, twin sets transformados em triple sets, e até o trikini. Essas criações não gritavam na passarela. Eram pensadas para quem as veste, para o toque e o movimento. Para Margiela, o verdadeiro luxo era silencioso.

De contra a moda acelerada
Na época, a imprensa não entendeu. Acusavam Margiela de “repetir demais” ou de “não trazer novidades”. Mas a repetição era, na verdade, uma crítica ao ritmo frenético da indústria. Margiela foi claramente um precursor do slow fashion, criando roupas versáteis e simplistas mas cheias de significados e representação para a década. Ao contrário do que a indústria pedia, ele não desenhava para um ideal de mulher jovem e feminina, mas sim para mulheres reais, de diferentes idades e corpos. Nos desfiles, preferia “pessoas da rua” em vez de supermodelos, refletindo a clientela da Hermès.

O luxo silencioso e detalhista
Margiela também reinventou o uso do logo. Ao invés de estampas chamativas, usou botões de seis furos costurados em forma de H — praticamente invisíveis. A filosofia “no logo” aparecia também nas cores discretas e na ênfase no toque e no corte perfeito.
Hoje, vemos essa abordagem minimalista em peças como o lenço Losange ou o relógio Cape Cod com pulseira dupla, legados que continuam a marcar presença na Hermès.
Redescoberta
Foi só em 2017, com a exposição ‘Margiela: The Hermès Years’ no MoMu, em Antuérpia, que muitos começaram a perceber a profundidade dessas coleções. A instalação contrastava o branco absoluto, assinatura da Maison Martin Margiela, com o laranja Hermès, criando um diálogo visual entre tradição e subversão silenciosa.

Legado
A passagem de Margiela pela Hermès não foi uma ruptura, mas uma fusão. Em vez de reinventar, ele adaptou, evoluiu e ressignificou os códigos da maison com delicadeza. Hoje, ao mergulharmos nesse período fica claro que sua abordagem não foi apenas um capítulo, mas um marco que ajudou a Hermès a reafirmar sua essência, mantendo-se relevante e desejável.
Margiela provou que a verdadeira mudança pode ser silenciosa. Que através de um corte perfeito ou um botão quase invisível, podemos dizer mais do que qualquer espetáculo. No fim, sua Hermès era menos sobre olhar e mais sobre sentir — basicamente um luxo vivido na pele.
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