Do baile ao patrimônio: a história dos passinhos
Baseados em gingados, criatividade e improvisos, os passinhos são movimentos capazes de transformar qualquer batida em um espetáculo. Apesar dos movimentos, ele não é simplesmente uma dança, mas sim, um manifesto cultural que nasceu nas favelas cariocas no início dos anos 2000 e atravessou fronteiras — geográficas e sociais — até ser reconhecido oficialmente como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do Rio de Janeiro em 2024.
Os movimentos foram criados por jovens nos bailes funk, surgindo como um espaço de expressão e competição saudável dentre as rodas. Dentro das pistas do Complexo do Jacarezinho, diversos dançarinos se reuniam para mostrar seu melhor repertório de passos. Um criava, o outro “charingava” — termo usado para copiar e melhorar um movimento. Era basicamente um jogo de corpo, mas também de imaginação e estilo.
Com o tempo, o Passinho deixou de ser só improviso: começou a ganhar sequências, “combos” e passos originais, graças a nomes como Cebolinha, um dos chamados pioneiros do estilo. No começo, qualquer coisa era passinho, até que os dançarinos começassem a criar padrões e transformar de fato em uma dança.

Influências
O Passinho possui diversas referências. No entanto, sua bases se encontram no funk carioca — especialmente nas versões mais aceleradas, como os 150 BPM —, mas seu corpo dialoga com o frevo, a capoeira, o samba, a dança afro-brasileira, o breakdance, o hip hop e até elementos do dancehall e do kuduro.
Das rodas de rua para a internet
A transição do baile para a web começou entre 2008 e 2009, quando vídeos de duelos de passinho passaram a ser postados nas comunidades do Orkut, atingindo milhões de visualizações. Nessa época, a disputa deixou de ser apenas presencial: likes e views viraram nova moeda de status.
Segundo o escritor e produtor cultural Júlio Ludemir, “o passinho foi a primeira manifestação estética de uma juventude periférica frequentadora de lan house, que operava nas redes sociais”. Foi também o momento de explosão de outros nomes, como Quinho, Sandersson, Gambá — este último, um dos mais queridos da cena, infelizmente assassinado no Réveillon de 2012.
A popularidade online inspirou a criação da Batalha do Passinho em 2011, idealizada por Ludemir e o músico Rafael Mike. O evento oficializou os duelos, reunindo centenas de participantes e sendo retratado no documentário A Batalha do Passinho (2013), de Emílio Domingos.

Reconhecimento global
Em 2012, dançarinos do Passinho se apresentaram no encerramento das Paralimpíadas de Londres. Em 2014, tomaram o palco do Lincoln Center, em Nova York. Em 2015, lotaram o Teatro Municipal do Rio de Janeiro com um público popular — cena histórica para um espaço tradicionalmente elitizado. E em 2016, foram destaque na abertura das Olimpíadas do Rio, levando a ginga da favela ao centro de um evento global.
Esse mix não foi por acaso. O início dos anos 2000 marcou a expansão das clássicas lan houses, do Orkut e do YouTube, permitindo que jovens da periferia carioca tivessem contato com vídeos de dançarinos do mundo todo — e também divulgassem seu próprio estilo. A estética street internacional, com bonés de aba reta, camisetas largas, bermudas jeans ou de tactel e tênis de cano alto, foi reinterpretada pelo calor e pela criatividade das favelas.

Moda e funkeiros
A moda não se obteve durante o auge dos passinhos, como agregava ao movimento como parte identitária de toda uma comunidade. Esse olhar — vindo da periferia —, mostra como grupos periféricos desde aquela época demarcam sua estética como personalidade e criatividade.
Dentre os kits daquele tempo, vimos marcas se descarem, como Oakley, Cyclone, New Era, Mizuno, Nike, Rider e muitas outras. As roupas as camisetas largas, bermudas de tactel, sandálias ou chinelos e bonés. Além disso, acessórios como as correntes maximalistas com cifrão ou entrelaçadas, além das clássicas Juliet ganharam cada vez mais espaço na cena — se tornando itens indispensáveis para além dos passos, e sim parte também da estética identitária do indivíduo.
A moda no funk sempre foi mais do que uma estética — é uma linguagem na periferia. O que surgiu nesse contexto transmitia uma mensagem clara: o jovem da quebrada também tinha voz, presença e estilo. Dançar com bermudão, corrente grossa e Nike Shox não era apenas estética, mas afirmação de identidade. Era uma demonstração de que podia ocupar espaço e ser visto, ainda que a sociedade insistisse em criminalizar sua imagem. A ostentação não era futilidade; mas sim um símbolo de vitória, de poder ter certa "autoridade e confiança” para circular com as mesmas marcas que a elite exibia.
Ao mesmo tempo, outros estilos nasceram com energia diferente: improviso, ginga e malícia, refletindo o cotidiano da favela. Não tinham o peso da ostentação, mas sim a força da coletividade. A dança surgia no asfalto, nas lajes e nos bailes, mostrando que a favela não era só palco de violência, mas também de criatividade e potência cultural. Quando ganhava visibilidade, escancarava para a sociedade que o funk era arte, inovação e resistência.
O impacto foi claro: esses movimentos colocaram a periferia no centro da cultura urbana. Enquanto uns mostravam a ascensão pelo consumo e outros exaltavam a favela como berço de autenticidade, todos carregavam o mesmo recado — a juventude periférica cria, reinventa e dita tendência. O que era visto como marginal se transformou em referência, mudando a forma como o Brasil olha para a própria cultura popular.
Mulheres na cena
Se no início o Passinho era um território majoritariamente masculino, hoje a narrativa se desdobra diferente. Artistas como Lellê, ex-Dream Team do Passinho, ajudaram a abrir espaço para mais dançarinas, que enfrentaram o machismo dentro das rodas. “No começo, as mulheres não tinham o mesmo respeito. Hoje, elas estão duelando de igual para igual, batendo de frente”, afirma Carol Félix, MC e militante pelo reconhecimento cultural da dança.
Lellê, que conheceu o Passinho por meio do irmão de criação Tininim, lembra: “Eu já dançava na igreja e me inspirava na Beyoncé, mas o passinho era algo único. Mudou minha vida, me levou a palcos, teatros e festivais”.

Desdobramentos
Passinho do Romano O Passinho do Romano surgiu na zona leste de São Paulo, especificamente no bairro Jardim Romano, por volta de 2014. Diferente do passinho carioca, que veio do funk, ele nasceu mais próximo das linguagens do hip hop e da black music. Os primeiros vídeos que viralizaram mostravam jovens dançando em frente de casas ou nas ruas, improvisando passos que misturavam movimentos quebrados, giros e gestos coreografados, sempre com uma pegada de “atitude de rua”.
A música que embalava esse estilo não era o funk carioca, mas sim batidas mais graves, com influências do rap nacional, R&B e funk melody. A conexão com o hip hop é evidente: as coreografias traziam referências do break, do popping e do krump, mas reinterpretadas de forma mais leve e divertida.
Na questão visual, o Passinho do Romano refletia a estética de rua paulistana da época: bonés aba reta (muitas vezes da New Era), camisetas largas com estampas de times, correntes douradas e tênis de cano alto (Nike Air Force, Adidas Superstar, Puma Suede). A ideia era transmitir autenticidade e um certo “peso” visual, mesmo sendo um estilo de dança descontraído.
Esse passinho cresceu muito via Facebook e YouTube, com vídeos gravados de forma caseira e linguagem espontânea, reforçando a cultura de internet e memes que já moldava a juventude de periferia na época.
Passinho dos Maloka
O Passinho dos Maloka nasceu em Recife como um desdobramento natural do brega-funk, que estava em plena ascensão na cidade. Diferente dos passinhos do Rio e de São Paulo, tem uma pegada mais sensual e rítmica, com forte presença de movimentos de quadril e passagens de corpo, já que o brega-funk tem batidas mais arrastadas e graves bem marcados.
A base musical vinha dos DJs e MCs locais que estavam popularizando o gênero — como Shevchenko e Elloco — e a dança acompanhava as quebras de batida e os refrões cantados de forma mais cadenciada. Os passos combinavam brincadeiras corporais, expressões faciais exageradas e gestos teatrais, o que criava um estilo bem característico.
Em termos de roupas, o visual era mais colorido e ousado: bermudas jeans rasgadas, regatas estampadas, chinelos de dedo ou tênis casuais (como Vans e All Star), correntes finas e bonés com aba curvada. Muitas vezes o look era improvisado, com peças customizadas ou adaptadas para chamar atenção nos vídeos.
O Passinho dos Maloka ganhou força nas festas de bairro e nas produções de clipes locais, sendo muito mais ligado à vida noturna de Recife do que a grandes competições ou projetos culturais como no Rio. Ele manteve um forte vínculo com a comunidade e a cena do brega-funk, funcionando como uma extensão física do som.

Passinho Malado
O Passinho Malado, de Belo Horizonte, tem um DNA mais romântico e “suave” comparado aos outros. Ele foi muito influenciado pelos bailes charme — uma cena que sempre foi forte em BH, especialmente no bairro Serra e nas comunidades da região metropolitana. Essa influência trouxe para o passinho mineiro movimentos mais elegantes, de cadência lenta, e foco na interpretação da música com o corpo, e não só na energia.
As músicas que embalam o Passinho Malado geralmente têm beats inspirados no charme, no R&B e no soul, mas com adaptações para a realidade do funk mineiro. Isso cria um clima mais melódico e menos “explosivo”, o que diferencia de outros estilos de passinho. No visual, a galera que dançava Passinho Malado prezava pelo estilo “charmeiro”: camisas polo ou de botão, calças jeans ajustadas, sapatos ou tênis brancos impecáveis, bonés discretos e correntes de prata. O look não era só para dançar, mas para transmitir um certo refinamento, típico dos bailes charme.
Apesar de menos midiático que o Passinho do Romano ou o carioca, o Passinho Malado se tornou parte da identidade das festas de BH, principalmente nas quebradas onde o charme e o funk se encontram. Ele representa mais uma “experiência de baile” do que um desafio de dança.
Mesmo com as diferenças, todos esses estilos compartilham a mesma raiz: o protagonismo da juventude periférica e a relação direta entre música e movimento. Em cada região, o som predominante — seja o funk carioca, o hip hop, o brega-funk ou o charme — moldou não apenas o ritmo dos passos, mas também o visual, a energia e a forma como a dança se inseria no cotidiano. Esse diálogo entre som e corpo, fez do Passinho, em suas várias vertentes, um fenômeno cultural que traduz as singularidades de cada território sem perder sua essência coletiva.

Do livro ao patrimônio
O impacto cultural do Passinho também chegou à literatura. O livro De Passinho em Passinho, de Otávio Júnior, o “livreiro do Alemão”, ganhou o Prêmio Jabuti em 2020 na categoria infantil, celebrando a arte da juventude periférica.
O reconhecimento institucional veio primeiro em 2018, com a lei que o declarou Patrimônio Cultural Imaterial da cidade do Rio. Em 2024, o título foi ampliado para todo o Estado, reforçando seu papel como expressão legítima da cultura brasileira e ferramenta de valorização das favelas.
Legado
Atualmente, o passinho segue vivo nas ruas, nas redes e nos palcos. O passinho se realimenta na periferia e segue se reinventando. Com isso, vemos que o estilo de dança nascido nas comunidades e difundido pelas plataformas digitais, conquistou e, ainda conquista espaços diversos, das ruas à instituições culturais, e continua sendo reconhecido de forma nacional e internacional.
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