Endividado, mas com tênis de 2 mil reais no pé

7 de abr. de 2020

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Como o consumo desenfreado pode impactar negativamente a sua vida e te ferrar (muito) a longo prazo.

Imagina a cena: o drop daquela marca saiu e você foi um dos poucos que conseguiu comprar uma par de peças - tava meio sem dinheiro, mas passou tudo no cartão. Afinal, em 12x não dá nada. Eis que, em 2 semanas, aquela outra marca lança um sneaker incrível em colab com um designer que você ama. Em menos de 10 minutos você vai de “puts, tô zerado, usei todo o meu limite esses dias” à “vou usar o cheque especial, mês que vem o salário cai e aí já quita, nem vou sentir”.

Chega o próximo mês e o banco debita (boa) parte da sua grana com direito à juros. Óbvio. Óbvio também que a fatura do cartão que você parcelou a outra compra já chegou – e, nesse cenário, você tem duas opções:

  1. Paga, fica zerado a ponto de não conseguir sair pra tomar uma cerveja e estrear o kit novo ou;

  2. Mete o loco, paga o mínimo e entra num ciclo vicioso que vai fazer o seu nome parar no Serasa.

Pareceu familiar pra você?

Ilustração: Laro Lagosta

Boa parte, pra ser específica 12 milhões, dos jovens brasileiros está endividada, o que significa que você não é o único que tá comprando sem parar (e sem conseguir pagar). Muita gente convive com essa mesma dor de cabeça que é ter dívidas acumuladas sem conseguir enxergar uma maneira de quitar e se livrar disso.

A culpa não é sua. Quer dizer, não 100%.

“Não é questão de luxo

Não é questão de cor

É questão que fartura

Alegra o sofredor

(…)

Inconscientemente vem na minha mente inteira

Na loja de tênis o olhar do parceiro feliz

De poder comprar o azul, o vermelho

O balcão, o espelho

O estoque, a modelo...”

O Racionais deu a letra há 18 anos – pra quem nunca teve acesso à muita coisa (aquele salve! pra quem cresceu ganhando um tênis por ano e usava roupa herdada dos irmãos ou primos mais velhos), ter poder de compra é essencial nessa cultura que prega a necessidade de ter isso e aquilo pra se sentir incluído.

Pra nós, aliás, a quem tudo sempre foi negado, finalmente ter acesso àquilo que parecia tão distante é passar uma mensagem ao mundo, como se disséssemos “Eaí? Agora tô portando também! Não foi você quem disse que isso não era pra mim?”. Pra quem cresceu pobre e hoje consegue, de alguma forma, comprar esses itens de desejo, o consumo está atrelado à uma narrativa de autoafirmação, de necessidade de fazer parte de algo antes inacessível.

Esses fatores trazem de volta aquele monte de inseguranças que nós tínhamos, como a carência de não ser notado e aceito. Aí crescemos, finalmente conseguimos ter aquilo (mesmo comprometendo mais do que deveria da própria renda) e nos sentimos parte do clube.

Tudo isso sem citar que, a própria indústria hypebeast, obviamente lucra com a imposição de padrões de interesse e frequentes incentivos ao consumo.

Foto: Hypebeast

Como dissemos lá em cima, a principal ferramenta que impulsiona essa relação (tóxica?) entre marcas do streetwear e consumidores (você) é o "drop" (modelo de venda onde os produtos são comercializados em um fluxo de lançamentos contínuos).

A adoção desse modelo pela Supreme pegou e fez com que outras marcas também adotassem a estratégia que funciona bem porque gera ansiedade, onde a espera é curta e sempre se renova. Tudo pensado pra te fazer ficar louco por uma peça que, segundos antes, você nem sabia que existia – pois é, bem-vindo a lógica do luxo pela escassez, que você pode encarar como “marketing focado na exclusividade” ou “eu tenho e você não”.

Foto: Jack O´Brien

O problema desse consumo frenético é que, nem sempre, a conta fecha e aí acabamos com o famoso nome sujo - mesmo com o guarda roupa lotado de kit caro. A curto prazo, o impacto negativo é um monte de dívidas acumuladas, previsão nenhuma de conseguir pagá-las e viver sem dinheiro até pra tomar uma no bar do lado da Void. A longo prazo, tudo isso interfere na realização de planos maiores: fazer uma faculdade, abrir a própria empresa, fazer uma viagem internacional, comprar um Celta 0km. Atua negativamente na nossa independência e até no destino que as nossas vidas podem seguir.

“É pra nós ter autonomia

Não compre corrente, abra um negócio

Parece que eu tô tirando

Mas na real tô te chamando pra ser sócio

Pensa bem

Tirar seus irmão da lama

Sua coroa larga o trampo

Ou tu vai ser mais um preto

Que passou a vida em branco?

Quem levanta a questão é o Djonga: imagina chegar lá na frente, olhar pra trás e perceber que nunca fez nada “demais” porque toda grana que entrava ia pra uma peça nova de roupa. Ah não ser que você tenha dinheiro pra fazer tudo sem passar perrengue, o papo dado em Hat Trick é algo que você devia pensar a respeito.

Mas e aí? Agora que a gente pode, de certa forma, não vamos ter? Tá proibido gastar com roupa e tênis?

Não necessariamente.

Pode consumir, claro, inclusive ter acesso à tantas coisas e poder, finalmente, realizar o sonho de comprar na Farfetch é daora sim. Não dá pra negar a sensação boa que é vestir uma camiseta da Acne Studios ou colocar um Vapormax no pé. O direito de ser parte desse movimento também é nosso, mas o conceito todo se esvai e perde o sentido quando gastamos além do que podemos.

O que fazer então?

Os grupos que pertencemos e as coisas com as quais a gente se cerca exercem um alto grau de influência sobre as nossas decisões. Por isso, o ideal é que filtremos o que consumimos de conteúdo - de onde vem os seus estímulos? Os seus gatilhos de compra? Com o que você é impactado diariamente?

Além disso, é importante também se informar, entender o conceito por trás das marcas de moda, identificar a proposta das peças e usar aquilo que expresse a nossa personalidade, mas sem deixar que isso interfira com tanta força na relação que temos com nós mesmos e na definição pessoal de quem nós somos. Se cuidar e entender que você não precisa estar com o score baixo pra ter autoestima alta. Parar de linkar bem-estar e confiança em si mesmo com a quantidade de designers que tem nas suas gavetas.

As marcas refletem os nossos valores, a nossa cultura, representam o que a gente gosta e acredita. Mas lembre-se sempre: você continua sendo você mesmo sem elas.