Existe uma madrinha no samba, Beth Carvalho
Beth Carvalho nasceu em 5 de maio de 1946 no Rio de Janeiro e morreu em 30 de abril de 2019. A voz rouca e a postura pública a transformaram em muito mais do que uma intérprete, tornaram-na princípio de curadoria, plataforma e visibilidade para gerações inteiras do samba. A alcunha de “madrinha do samba” não é apenas um apelido folclórico, é o resumo de uma carreira que conjugou sucesso comercial com aposta sistemática em autores e rodas marginais ao circuito mainstream.

A trajetória de Beth começa em festivais e passa cedo da bossa nova para o samba. Em 1968 ela obteve destaque no Festival Internacional da Canção com “Andança”, ponto de virada que a levou a se dedicar ao samba com intensidade. A partir dos anos 70 ela já era uma intérprete reconhecida, mas foi na virada da década, quando procurou na periferia carioca repertório e novas vozes, que sua imagem pública mudou. Em vez de apenas escolher repertório consagrado, Beth foi atrás de sambistas em rodas, blocos e terreiros, e trouxe essas vozes para o estúdio e para a rádio.

O saldo mais concreto dessa atitude aparece num episódio que serve como síntese do seu papel como madrinha, em 1978 Beth colocou músicos e compositores do bloco Cacique de Ramos, o ambiente onde nasceu o que viria a ser o pagode moderno, no seu disco De Pé no Chão. Aqueles mesmos músicos logo se tornariam o Grupo Fundo de Quintal, e o disco de Beth funcionou como vitrine e ponte para a indústria fonográfica. Foi ali que composições como “Vou festejar” e “Goiabada Cascão” rodaram em escala maior e que a sonoridade do quintal ganhou mapa no mercado. Sem a chancela dela e do produtor Rildo Hora, a transição dos pagodes de quintal para o mercado nacional teria sido muito mais lenta.
Essa atitude de “abrir a casa” repetiu-se ao longo da carreira. Beth não só gravava sambas de compositores já estabelecidos como Cartola e Nelson Cavaquinho, ela buscava jovens e dava espaço para que suas músicas circulassem. Zeca Pagodinho é talvez o exemplo mais conhecido, onde a primeira aparição discográfica de Zeca foi numa gravação vinculada ao universo de Beth, o samba “Camarão que dorme a onda leva”, de Zeca com Arlindo Cruz e Beto Sem Braço, aparece em registros promovidos por Beth, o que ajudou a inserir Zeca no mercado e a projetá-lo além das rodas. O mesmo padrão vale para Arlindo Cruz, Jorge Aragão, Almir Guineto e outros, muitos deles surgiram diretamente das rodas do Cacique e tiveram em Beth a intérprete que levou seu repertório para o vinil e para as rádios.

Por que “madrinha”? O termo tem duas camadas. A primeira é simbólica, madrinha remete a uma figura que introduz e protege, que assina a responsabilidade moral por um afilhado. No uso midiático, o rótulo apareceu porque Beth cumpriu exatamente esse papel, apresentou autores marginalizados, gravou e os apresentou a um público mais amplo. A segunda camada é prática, ela operou como curadora, produtora informal e referência inquestionável, ela tornou-se uma voz influente em meio a cantores que estavam crescendo mais e mais a cada álbum.

A relação com cantores e grupos do universo do pagode foi marcada por devolução de prestígio e por uma lógica de afilhamento afetivo e profissional. Arlindo Cruz, por exemplo, foi compositor muito presente nas gravações de Beth, em entrevistas e no documentário Andança colegas repetem que Beth gravou dezenas de composições suas e cultivou uma amizade profissional que atravessou décadas. Zeca Pagodinho, por sua vez, foi formalmente lançado ao mercado em espaços onde Beth já operava como curadora, o que torna a expressão “madrinha” menos metáfora e mais descrição de um efeito direto sobre carreiras.

É preciso também falar do repertório interpretado por Beth que virou referência para outros cantores. Ela foi intérprete privilegiada de Cartola e Nelson Cavaquinho, recuperando canções e colocando em destaque compositores que, por vezes, estavam fora do circuito de mídia. Ao longo da carreira Beth gravou mais de 30 discos, venceu prêmios e recebeu homenagens formais, inclusive reconhecimento da Latin Grammy por toda a sua contribuição. Essas distinções formalizam aquilo que já havia sido operado no cotidiano das rodas, Beth era ponte entre gerações.

Algumas composições e momentos para fixar: “Andança” (marco inicial), De Pé no Chão (1978, vitrine do Cacique e raiz do Fundo de Quintal), Beth Carvalho no Pagode (1979, com o estrondoso “Coisinha do Pai”), além de inúmeras regravações de Cartola e Nelson Cavaquinho. As músicas que Beth escolhia viravam cartas de apresentação, e esses registros foram muitas vezes o primeiro contato massivo do público com esses compositores.
A “madrinha” deixou um protocolo prático, vá às rodas, grave quem merece, leve o repertório de lá para cá, e mostrou que quem dá voz também assume parte da responsabilidade política e cultural dessa voz. Essa combinação explica por que, anos depois de sua morte, artistas e pesquisadores continuam a citar Beth quando a pauta é a renovação do samba de raiz.
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