Five Percent Nation: a doutrina que moldou o Wu-Tang Clan

30 de jun. de 2025

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A Five Percent Nation foi fundada em 1964, no Harlem em Nova York, por Clarence 13X, também conhecido como Clarence Edward Smith ou Allah the Father. Ele era um ex-membro da Nation of Islam (NOI), onde aprendeu a teologia de que o homem negro é Deus e o homem branco é o diabo — ideias centrais do pensamento de Elijah Muhammad, líder da NOI. Porém, Clarence divergiu em pontos centrais: rejeitou o culto à figura de Wallace Fard Muhammad (fundador da NOI) como o Messias e passou a pregar que cada homem negro é o próprio Deus — e não apenas um escolhido.

A ruptura não foi apenas teológica, ela refletia uma crítica à rigidez da hierarquia da Nação do Islã e ela como instituição. Clarence criou, com a Five Percent Nation, um caminho mais libertário, voltado às ruas, aos jovens negros sem perspectivas em meio ao racismo sistêmico, à brutalidade policial e à exclusão social.

A base da NGE é o Supreme Mathematics e o Supreme Alphabet — sistemas criados por Clarence 13X para traduzir princípios espirituais e sociais em números e letras. Eles funcionam como um código interno, mas também como método educativo. Por exemplo: o número 1 é Knowledge (Conhecimento); o número 2 é Wisdom (Sabedoria) e o número 7 é God (Deus).

Eles também têm um vocabulário próprio: homens são “Gods”, mulheres são “Earths”, crianças são “Seeds”. A cosmologia da NGE é terrestre e realista, rejeita o céu ou o inferno. A salvação está no autoconhecimento e na prática da retidão.

O nome “Five Percent” vem de uma divisão simbólica da humanidade:

  • 85%: a massa ignorante, inconsciente, enganada pelos falsos ensinamentos religiosos e políticos.

  • 10%: os opressores, elites que detêm o conhecimento e o utilizam para dominar os demais.

  • 5%: os “Deuses e Terras” — aqueles que conhecem a verdade, vivem de forma justa e têm a missão de “civilizar os incivilizados”.

Essa linguagem é deliberadamente simbólica, quase criptografada, e faz parte de uma estratégia pedagógica baseada em autoafirmação racial, espiritual e intelectual.

Apesar de ter uma origem espiritual, a Five Percent Nation não se define como religião. Eles não creem em oração a um Deus exterior, não têm igrejas, não exigem fé, nem seguem os preceitos tradicionais do Islã. É uma cultura que se manifesta na forma de viver, falar, pensar, vestir e se organizar.

Por isso, muitos estudiosos a consideram um movimento cultural radical negro, mais próximo do hip hop, do pan-africanismo e da pedagogia libertária do que de uma fé institucional.

A Five Percent Nation teve um impacto profundo e duradouro no hip hop, especialmente na cena dos anos 1980 e 90 em Nova York. Vários MCs se autodeclaravam “Gods” e faziam das rimas uma forma de ensinar os ensinamentos da NGE:

  • Rakim (Eric B. & Rakim): talvez o maior exemplo de um “God MC”. Seu flow frio e letras filosóficas estavam impregnados de Supreme Mathematics.

  • Brand Nubian

  • Poor Righteous Teachers

  • Wu-Tang Clan (especialmente RZA, GZA e Killah Priest): com muitas referências ao Supreme Alphabet.

  • Nas e Jay-Z também trazem influências, ainda que de forma mais indireta.

As letras abordavam poder negro, conhecimento de si, crítica ao sistema e orgulho racial com uma linguagem cifrada que servia como proteção contra o sistema e como elevação para quem entendia.

A NGE surgiu num momento de insurgência racial, pós-Malcolm X, durante a luta pelos direitos civis e a ascensão dos Panteras Negras. Apesar de não ser explicitamente partidária, sua postura é profundamente política. Ao afirmar que “o homem negro é Deus”, ela rompe com séculos de colonialismo espiritual e legitima uma soberania do corpo e da mente negra em oposição direta ao cristianismo branco eurocêntrico.

Além disso, o trabalho comunitário dos “Gods” nos guetos de Nova York, ensinando jovens nas esquinas, nos parques e nas prisões, foi um ato de resistência pedagógica em meio à negligência estatal e à violência policial.

FIVE PERCENT NATION E WU-TANG CLAN

A influência da Five Percent Nation no hip hop é profunda, mas em nenhum grupo ela é tão visceral e estruturante quanto no Wu-Tang Clan. O coletivo de Staten Island — também conhecido como Shaolin, em sua própria mitologia — usou os ensinamentos da Nation of Gods and Earths não apenas como referência, mas como base filosófica, espiritual e estética de sua obra. O grupo não "cita" a Five Percent Nation, eles são um braço sonoro dela.

Fundado no início dos anos 90 por RZA, o Wu-Tang se diferenciava pela fusão de cinema de kung fu, espiritualidade afrocentrada, linguagem de rua e as doutrinas da Five Percent Nation. Para o grupo, o microfone era uma ferramenta de educação e o Supreme Mathematics, um manual de sobrevivência.

RZA, GZA e Killah Priest são alguns dos membros mais conectados diretamente aos ensinamentos dos “Gods and Earths”. Suas letras estão repletas de códigos, com referências explícitas ao Supreme Alphabet, metáforas de construção do conhecimento e afirmações de divindade do homem negro.

“Knowledge, wisdom, understanding / Sun, moon, and star” — esse trio aparece constantemente. É a tríade central da NGE: conhecimento gera sabedoria, que leva à compreensão. O Sol representa o homem (Deus), a Lua a mulher (Terra), e a Estrela a criança (semente).

Em “Liquid Swords”, GZA rima:

“I’m mentally strong, the mathematics I mastered”

— aqui ele se refere ao Supreme Mathematics como ferramenta de força e soberania mental.

No verso de RZA em “Da Mystery of Chessboxin’”:

“I’m God Cipher Divine, cipher born build destroy”

— essa linha é literalmente formada por termos do Supreme Mathematics e do Supreme Alphabet. “God Cipher Divine” é G+C+D: siglas que formam os fundamentos da divindade do homem. "Build/destroy" é o número 8 do Supreme Mathematics: o poder de construir ou desconstruir a realidade.

O Wu criou um vocabulário próprio, inspirado diretamente na Five Percent Nation. Palavras como “cipher”, “build”, “equality”, “degree”, “civilized” e até “mathematics” aparecem com sentidos específicos, criptografados para quem conhece a doutrina. Isso servia a dois propósitos: uma proteção contra o sistema (autoridades, mídia, polícia) e uma exaltação da cultura negra.

Além das letras, o Wu incorporou o ethos da NGE na estética: roupas com símbolos da Five Percent Nation (como o 7 com a estrela e a meia-lua), entrevistas onde se autodenominam “Gods”, e discursos de valorização da consciência negra e da reeducação espiritual.

RZA, como arquiteto do grupo, frequentemente fala sobre como os ensinamentos da NGE o salvaram da rua e deram a ele uma estrutura para liderar, tanto na música quanto na vida. Ele chegou a dizer que a música do Wu-Tang é uma forma de “civilizar os 85%” — linguagem direta da Five Percent.

Na década de 1990, o sucesso do Wu-Tang levou muitos jovens ao interesse pela Five Percent Nation. Suas músicas funcionaram como convites à iniciação, especialmente em lugares como Nova York, Filadélfia, Nova Jersey e até no exterior. RZA chegou a fundar sua própria vertente filosófica, chamada “The Wu-Tang Manual”, misturando budismo, islamismo negro e Five Percent.

THE WU-TANG MANUAL

Publicado em 2005 e escrito por RZA (Robert Diggs), líder espiritual e criativo do Wu-Tang Clan, o livro é uma obra de iniciação cultural. Ele apresenta os princípios filosóficos, códigos, influências e histórias que moldaram o Wu-Tang, funcionando tanto como autobiografia coletiva quanto como guia espiritual. É a tradução impressa da mitologia Wu, que mistura sabedoria de rua, kung fu, islamismo negro, e a Five Percent Nation.

O livro é dividido em 36 capítulos, em alusão aos “36 Chambers” — uma referência central do Wu-Tang, inspirada no filme The 36th Chamber of Shaolin e ao seu disco de estreia (Enter the Wu-Tang (36 Chambers), de 1993).

Cada capítulo é uma “câmara” que revela aspectos distintos da cultura Wu, abordando a história dos integrantes do grupo, letras explicadas, conceitos do Supreme Mathematics e do Supreme Alphabet, filmes de kung fu e seu impacto filosófico, espiritualidade e táticas de sobrevivência e mentalidade de crescimento.

Um dos grandes eixos do Manual é a influência direta da Nation of Gods and Earths sobre a construção do Wu-Tang. RZA dedica capítulos inteiros para explicar os fundamentos do Supreme Mathematics, os códigos da linguagem 5%, e como esses ensinamentos o ajudaram a se livrar da criminalidade, encontrar disciplina e se ver como Deus em ação, um conceito-chave da NGE.

“To know yourself as God is to see the universe through your own eyes. That’s the power the Five Percent gave me.”

Ele explica termos como “Cipher”, “Build/Destroy”, “Born” e “God”, relacionando com músicas e com decisões de vida — como parar de vender drogas e focar em elevar o bairro inteiro por meio da arte e do conhecimento.

RZA demonstra como o Wu-Tang usou ícones do cinema de kung fu, HQs, xadrez, jogos de palavras e estética urbana como pontes para filosofias mais profundas. Em vez de doutrinar diretamente, o grupo criou camadas de significado, onde quem quisesse poderia mergulhar mais fundo e o livro é o mapa dessa profundidade.

Ele fala de filmes como Five Deadly Venoms, cita filósofos chineses e também mestres da NGE, criando um sistema híbrido de referências que mistura Confúcio, Sun Tzu, Elijah Muhammad, os Vingadores e Bruce Lee.

O livro apresenta uma ideia central: o artista negro urbano como criador e salvador, alguém que não só se liberta, mas que transforma sua comunidade. Para RZA, fazer beats é alquimia, escrever letras é decifrar o mundo, e cada show é uma forma de passar adiante o conhecimento dos “Gods”.

“When I make a beat, I’m building. I’m constructing a world. That’s what Gods do.”

Mais do que contar a história do Wu-Tang, o livro serve como manual de conduta para jovens negros, ensinando autoconhecimento, disciplina, autodefesa (mental e física), e estratégias de autonomia.

É uma resposta à exclusão escolar, à violência estatal e à ausência de modelos. O livro oferece sabedoria codificada, para ser aprendida “de boca a ouvido”, como na tradição oral dos Five Percenters.

The Wu-Tang Manual virou objeto de culto, principalmente entre fãs de hip hop consciente, estudantes de cultura negra e leitores interessados em espiritualidades alternativas. Ele abriu caminho para o segundo livro de RZA, The Tao of Wu (2009), que aprofunda a filosofia do grupo com ainda mais ênfase espiritual.

Enquanto outros rappers citavam a NGE pontualmente, o Wu a corporificou. O Wu é a trilha sonora do Harlem e de Staten Island dos anos 90 e nessa geografia espiritual, os ensinamentos da Five Percent Nation são a base do mapa.

Editora e social mídia

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