Louis Vuitton, Virgil e Pharrell: o que resta além do arco-íris?
Quando apresentou sua primeira coleção para a Louis Vuitton (LV) em 2019, os 56 looks de Virgil Abloh desfilaram sobre o gradiente de cores da terra encantada de Oz, universo fantástico do musical O Mágico de Oz (1939), adaptação de Victor Fleming inspirada no conto infanto-juvenil de L. Frank Baum.
Desfile Primavera/Verão Men's 2019 ready-to-wear no Palais Royal, Paris, França. Foto: Getty Images
O espetáculo de sua Primavera/Verão reservou à passarela tecnicolor o único caminho de volta para casa. Os modelos que a percorriam teriam de enfrentá-la assim como fez Dorothy em sua travessia de volta ao Kansas. A saída, em ambos, estava logo após o fim arco-íris.
Passado o jejum criativo que sucedeu o falecimento de Abloh em 2021, a indicação de Pharrell Williams como Diretor Criativo da maison francesa colocou questões à mesa que parecem permanecer abertas. As grandes expectativas criadas com a nomeação refletiam o receio — e também o apego — da comunidade da moda pela histórica passagem de Virgil na LV.
As críticas justamente levantadas à época partiam de um sentimento protetivo, em defesa da preservação do legado deixado por Abloh durante as temporadas em que ocupou o mais alto cargo criativo da casa. Depois de três coleções apresentadas por Pharell Williams, parece ser o momento oportuno para questionar: o que restou além do arco-íris?
Pode soar contraditório, mas o que torna um bom desfile de moda um bom desfile de moda não é apenas a qualidade das peças e acessórios apresentadas. Apesar da roupa ser, sim, o mais importante — no fim do dia, moda é vestuário — o bom desfile é também aquele que nos permite pensar, refletir e falar sobre moda. Isso, inegavelmente, Pharell trouxe até aqui, principalmente em seu Outono/Inverno 24.
Embora nada extraordinária ou inovadora, sua última coleção, inspirada no Velho Oeste hollywoodiano e nas nações nativas Dakota e Lakota, inaugura discussões importantes que merecem atenção.
A primeira delas é uma noção contextual. Diferentemente de outras marcas contidas no portfólio do grupo LVMH, a LV não nasceu como marca de vestuário, como é o caso da Dior e da Givenchy. Ter isso em mente é relevante, considerando que a percepção de valor construída em torno da LV, hoje, perpassa o vestuário, mas está historicamente associada a bolsas e malas de alto padrão confeccionadas para a burguesia francesa em meados do século XIX. Aliás, nem mesmo a LV, nem a LVMH, fizeram ou fazem questão de tentar nos convencer do contrário. Para todos os fins, o vestuário, ali, vem em segundo lugar. Bernard Arnault aprendeu cedo que a roupa pode apenas orbitar em torno dos acessórios e it bags— a real fonte das margens astronômicas do grupo.
Quanto à Direção Criativa, já deve ser claro que Pharrell não possui pretensão alguma de esconder o jogo. Com o extravagante número de 76 looks, sua primeira coleção Primavera/Verão 24 apresentou os principais códigos a serem articulados durante o período em que estiver no comando criativo da maison. Isso é natural. Qualquer criativo com mais de 30 anos de carreira e inúmeras colaborações em seu repertório já não tem mais muito o que esconder (e tudo bem). O mais provavél é que a direção de Pharrell seja uma passagem estável, consistente, com seus altos e baixos e com algumas coleções mais criativas do que outras — nada que já não faça parte da realidade da indústria.
Por outro lado, sem querer querendo, Bernard Arnault encontrou em Pharrell um novo John Galliano. Não é segredo que um dos desejos mais ocultos da LVMH é que a alta costura da Dior pudesse retornar às mãos do então Diretor Criativo da Maison Margiela. Acontece que uma marca que depende tanto do fator comercial não pode arriscar perdas numéricas que poderiam significar, por baixo, centenas de milhões de euros. As declarações escandalosas que levaram à decadência de Galliano puseram fim, também, aos tempos áureos da Dior. Um fashion moment que Arnault jamais havia conseguido recuperar. Até Pharrell.
Pharrell Williams no atelier da LV, em Paris. Repost: @skateboard
Pharrell espelha na LV as melhores qualidades de Galliano na Dior. Ambos pensam desfiles como eventos apoteóticos. No caso de Pharrell, contando com shows de encerramento e performances que vão desde Mumford & Sons à Jay-Z. Ambos também transitam com facilidade entre o papel do Diretor Criativo e do showman, o que reforça o tom comercial e a relevância da marca.
Pharrell é um especialista comercial. Um implementador de tendências. Basta pensar em músicas como Happy. Marcas como a Human Made. Curadorias como a da Joopiter. A aderência cultural de Williams é uma vocação que poucos têm condição de apresentar. Em outras palavras: Pharrell vende. Entender isso é fundamental para compreender o que a Louis Vuitton está propondo num contexto macro de moda. E, nesse aspecto, talvez Virgil e Pharrell não sejam tão diferentes assim.
É amargo admitir, mas o fato é que as críticas feitas hoje à LV se justificam, em grande parte, porque Pharrell não é Virgil. Desgostar por desgostar parece traduzir um falso refinamento, que encontra no saudosismo a sua razão. Mais fácil seria encarar a marca pelo que realmente é — e sempre foi — desde Marc Jacobs: comercial. Quem esperava conceitos muito complexos, das duas uma: ou não conhece o trabalho de Pharrell Williams, ou está enganado quanto ao que a LV pode oferecer (ou melhor, quer oferecer). Para nosso alívio, o comercial também pode ser bom.
Pharrell Williams durante o desfile Outono/Inverno 2024-2025 da Louis Vuitton. 16 de Janeiro de 2024 em Paris, França. (Foto: Francois Durand)
Nos primeiros parágrafos deste texto, um dos meus argumentos é que o bom desfile é aquele que nos permite pensar criticamente moda. O desfile Outono/Inverno 24 da LV é um bom desfile. Não porque é inovador. Mas porque demonstra como moda é, na verdade, o fio condutor de narrativas possíveis. Sob a Direção Criativa de Pharrell, o arquétipo do caubói hollywoodiano, tão masculino e hegemônico, encontra identidades que há tantas décadas foram silenciadas. O novo poder dessa narrativa está contido em caubóis que são pretos, originários, afeminados e cuja coragem não está no revólver, mas nas silhuetas.
A última coleção de Virgil Abloh tomou lugar na Louis Dreamhouse. Uma coletânea que reuniu num astral onírico os seus principais maneirismos ao longo de oito temporadas. Em uma marca que nasceu de malas e bolsas, a mentalidade viajante não está tão distante daquela sonhadora. Com Pharrell, talvez seja isso que exista para além do arco-íris: o sonho das narrativas possíveis.
Da esquerda para a direita, Virgil Abloh e Pharrell Williams. Foto: Amy Sussman/WWD