Maradona, o mito de Nápoles e Buenos Aires
A história de Diego Armando Maradona nunca coube apenas no futebol. O que o transformou em mito não foram apenas as quatro linhas do esporte, mas a maneira como sua vida se tornou uma tradução representativa de povos inteiros.
Em Buenos Aires, ele foi a personificação do argentino comum que desafiou o mundo, e atravessando o atlântico, em Nápoles, na Itália, assumiu a forma de um salvador que deu dignidade a uma cidade estigmatizada.
Maradona nasceu em 1960, em Villa Fiorito, um bairro pobre da periferia de Buenos Aires. O cenário era o de uma Argentina que já ensaiava sua crise econômica e social, com desigualdade crescente e instabilidade política.
Naquele ambiente, o futebol aparecia como um escape, mas também como ferramenta de pertencimento, algo comum em regiões periféricas no mundo inteiro. Com 15 anos, estreou pelo Argentinos Juniors, ainda franzino mas já carregando um jogo incomum. Sua ascensão ao Boca Juniors, em 1981, foi recebida como retorno triunfal do filho do povo, e a Bombonera o acolheu como extensão natural do bairro que o formara.

O peso simbólico de Maradona na seleção argentina seria ainda maior. Em 1978, foi cortado da Copa do Mundo que a Argentina sediaria sob a ditadura militar de Videla, episódio que marcou não só sua trajetória, mas também a narrativa de um país dividido entre a festa no campo e a violência. Oito anos depois, no México, ele teria sua redenção definitiva.
A Copa de 1986 foi seu palco absoluto, o gol de mão contra a Inglaterra, batizado de “Mão de Deus”, e, poucos minutos depois, o “gol do século”, em que driblou meio time adversário, condensaram no gramado a tensão política de uma nação que ainda sangrava com a derrota na Guerra das Malvinas. Para milhões de argentinos, aquele jogo não foi apenas futebol, foi vingança simbólica contra o imperialismo. Maradona se tornou a encarnação de um povo ferido que recuperava sua dignidade.
Quatro anos antes, a Argentina havia perdido a Guerra das Malvinas, justamente para a Inglaterra. Para milhões de argentinos, era como se o país derrotasse o inimigo, dessa vez com a malandragem e a genialidade de um garoto de Villa Fiorito. Maradona virou mito nacional, um semideus que encarnava a revanche simbólica contra a ordem global.

Se na Argentina ele já era ídolo nacional, em Nápoles sua transformação foi ainda mais radical.
Em 1984, o Napoli pagou 7 milhões de dólares para contratá-lo do Barcelona, valor recorde à época. A cidade, marcada por estigmas de pobreza, criminalidade e marginalização pelo norte rico da Itália, via no clube um reflexo de sua posição social. Até então, o Napoli jamais havia conquistado o título italiano, o que mudaria com Maradona, que levou o Scudetto de 1987, a Copa da Uefa de 1989 e o novo título de 1990, conquistas que ultrapassaram o futebol e entraram no campo da história da cidade do povo napolitano.
A presença de Maradona em Nápoles era percebida como quase uma intervenção divina. Murais com sua imagem se espalharam pelos bairros, e o nome “D10s” se consolidou como fusão entre sua camisa e a sacralidade atribuída a ele. O paralelo com a religiosidade era inevitável: Nápoles uma das cidades mais católicas do mundo, cidade de santos, processões, milagres, e havia encontrado um novo Deus nos pés do argentino. E esse Deus ofereceu dignidade a um povo inteiro que se sentia inferiorizado pelo norte de Milão e Turim.
O norte industrializado de Milão e Turim tratava Nápoles como espaço atrasado, ligado à máfia e à precariedade.

Mas a mesma intensidade que o elevava também o corroía.
A relação com a Camorra, máfia local, fornecia proteção mas cobrava um preço alto. O consumo de cocaína, cada vez mais frequente, o levou à suspensão em 1991 e marcou sua decadência física.
Maradona brigava com jornalistas, com dirigentes, com seu próprio corpo. A trajetória assumia contornos de tragédia clássica, de quem ascende de forma fulminante, mas que não consegue sustentar a própria glória. No entanto, foram justamente essas quedas que reforçaram o mito, porque humanizaram o divino.

O culto a Maradona não se limitou às arquibancadas. Em 1998, na Argentina, foi fundada a Igreja Maradoniana, com mandamentos próprios e rituais em que o nascimento de Diego virou data sagrada. Em Nápoles, ruas, bares e capelas guardavam sua imagem como se fosse parte de um panteão religioso popular.
Poucos atletas foram elevados a essa condição, e talvez nenhum tenha alcançado esse grau de mistura entre fé e idolatria.
Seus últimos anos foram marcados por doenças, cirurgias e aparições públicas em que ainda conseguia arrastar multidões, mesmo já debilitado. Em 2020, sua morte provocou uma comoção mundial. Em Buenos Aires, seu velório na Casa Rosada reuniu centenas de milhares de pessoas, numa cena comparável apenas a funerais de líderes políticos.
Poucos meses depois, o estádio San Paolo foi oficialmente renomeado para Estádio Diego Armando Maradona, oficializando no espaço público o que já existia na memória popular.

O mito de Maradona persiste porque condensa contradições que raramente coexistem em uma só figura. Ele foi o argentino que vingou seu povo contra a Inglaterra, o napolitano que desafiou a elite do norte, o ídolo que vencia e caía com a mesma intensidade. Sua história não cabe apenas em números ou troféus, mas na forma como se entrelaça com identidades coletivas.
Maradona não foi perfeito, e é justamente por isso que se tornou eterno. Entre erros e milagres, fez do futebol uma linguagem de fé e política, unindo dois povos que encontraram nele um Deus terreno, capaz de errar como humano, mas de oferecer redenção como só os mitos conseguem.
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