O legado do dandismo negro no Met Gala 2025

5 de mai. de 2025

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”Black is not just beautiful. It’s bold. It’s brilliance. It’s resistance.”. Apesar de não sabermos ao certo quem afirmou isso, está claro que já conseguia ver o que muitos ainda não foram capazes de enxergar. Essa afirmação geralmente é acompanhada de figuras como Steve Biko e Kwame Brathwaite. Esses líderes enfatizaram a importância do orgulho racial, da resistência e da celebração da beleza negra.

E nesse quesito, em 2025, o Met Gala veio de forma assertiva e direta, costurando uma homenagem à estética, identidade e potência da moda negra com o tema “Superfine: Tailoring Black Style”. Não é só sobre alfaiataria. É sobre afiar o olhar pro passado, vestir a ancestralidade e projetar o futuro. É sobre tomar posse da narrativa. E faze-lo certo.

Slaves to Fashion: Black Dandyism and the Styling of Black Diasporic Identity, de Monica L. Miller, publicado em 2009, é uma obra fundamental nos estudos sobre moda, raça e cultura negra. A autora, professora de literatura e estudos culturais, investiga como pessoas negras — especialmente homens — usaram o vestuário como estratégia de afirmação identitária, resistência política e reinvenção cultural ao longo da história.

Tese central

Miller defende que o chamado black dandyism — ou dândi negro — não é apenas uma questão de estética, mas um movimento político e cultural. A imagem do homem negro bem vestido, muitas vezes associada à sofisticação, rebeldia e ironia, tem sido historicamente usada para romper estereótipos racistas, desafiar estruturas de poder e reescrever narrativas coloniais.

Estrutura e abordagem

O livro faz uma costura entre moda, história e identidade negra de forma poderosa. A autora traça uma linha do tempo que vai da escravidão até os dias de hoje, mostrando como o estilo sempre foi uma forma de expressão e resistência. Ela destaca desde os homens escravizados que usavam roupas elegantes para representar seus senhores — e mais tarde subverteram essa imagem — até os dândis do Harlem Renaissance, que transformaram a moda em um grito de liberdade. Já na era contemporânea, nomes como André 3000, Kanye West e artistas visuais usam a estética como ferramenta pra questionar raça, masculinidade e poder.

Estética como resistência: O livro mostra como a moda foi — e ainda é — uma forma potente de afirmação pessoal e coletiva entre pessoas negras. Seja nas ruas do Harlem ou nas passarelas de hoje, o estilo negro comunica orgulho, desafio e pertencimento.

Ruptura com narrativas coloniais: Miller revela como o estilo refinado desafia imagens históricas de subalternidade e submissão. A alfaiataria refinada, quando usada por corpos negros, deixa de ser apenas estética — torna-se recado. É um “estou aqui” com postura e intenção, reescrevendo visualmente a história.

Política da aparência: Ela introduz a ideia de que roupas não são neutras, mas carregam camadas de significados sociais e raciais. A autora também nos faz olhar além da superfície e entender que o visual também é campo de luta.

Uma nova era de celebração

Desde que o Costume Institute anunciou o tema, já ficou claro: 2025 seria o ano de mudança de jogo. A curadoria apostou na força e na elegância do estilo negro como um movimento estético e político. “Superfine” faz referência ao acabamento preciso, ao corte impecável, à excelência artesanal — mas também à expressão cultural enraizada na história do povo preto, da África ao Harlem, dos salões da Soweto aos tapetes vermelhos de Hollywood.

Essa não é só mais uma noite de gala. Será um desfile de memória, presença e poder.


Origem do Dandismo

O dandismo é mais do que estilo — é uma atitude. Um movimento que surgiu no século XIX, mas que foi apropriado, ressignificado e elevado principalmente por homens negros como forma de resistência estética, política e cultural.

O termo dandy nasceu na Inglaterra do século XIX, associado a homens que se vestiam de forma extremamente elegante, com trajes feitos sob medida, postura refinada e atenção obsessiva aos detalhes. Eles não eram da nobreza, mas usavam a aparência pra se destacar e disputar espaço social. Em vez de status por nascimento, buscavam respeito pela aparência. Um dos nomes mais icônicos foi Beau Brummell, figura lendária do estilo masculino.

Mas o dandismo não era só sobre roupa. Era sobre se construir como arte viva. O dândi se transformava em uma figura que usava o corpo como performance — uma forma de desafiar normas e inverter olhares.

Dandismo Negro: estilo como resistência

Quando homens negros começaram a se apropriar do dandismo, especialmente nas Américas e na África, a coisa ganhou outra camada de poder. Porque não era só estilo — era rebeldia contra a desumanização.

Les Sapeurs (República do Congo): Um movimento que começou no século XX onde homens se vestem com ternos coloridos, chapéus, sapatos luxuosos e uma postura impecável. No meio do caos social e econômico, eles usam o estilo como forma de dignidade, identidade e resistência ao colonialismo.

A filosofia da SAPÊRIA “Société des Ambianceurs et des Personnes Élégantes” é clara: “Mesmo sem nada, o estilo é tudo.” Isso é protesto em forma de alfaiataria.

Harlem Renaissance, zoot suits nos anos 1940, e ícones como Malcolm X, Miles Davis e até hoje, com André 3000 ou Tyler, the Creator, todos eles se apropriaram da estética do dândi pra dizer: “Eu sou preto, elegante, inteligente e incontrolável.”

Dandismo hoje como Herança Viva

Hoje, o dandismo preto segue mais vivo do que nunca. Está nas campanhas de moda de alto luxo, nos clipes de rap, nos tapetes vermelhos e nas ruas. É o grito silencioso de quem entende que o corpo é território político. E que se vestir bem, com intenção, é também um ato de enfrentamento. Nomes como Billy Porter, Steve Lacy, A$AP Rocky, Jidenna e Labrinth são grandes referências.

São herdeiros modernos dessa linhagem. Eles mostram que alfaiataria preta não é só sobre elegância — é sobre subverter o olhar com postura, presença e poder.

Pra entender o dandismo negro de verdade, é impossível ignorar o livro “Escravos da Moda: o dandismo negro e o estilo da identidade negra”, da autora Aspórica. A obra é uma pedrada teórica e estética que desvela como o corpo negro sempre foi vigiado, moldado e usado como vitrine — e como, mesmo assim, foi capaz de transformar a dor em elegância, e a opressão em estilo.

Aspórica aponta que o dândi negro não surge como cópia do modelo europeu. Ele emerge como sabotagem, como ironia fina contra o sistema. Um homem negro, impecavelmente vestido, caminhando pelas ruas com postura e confiança — num mundo que insiste em desumanizá-lo — não é vaidade. É estratégia. É ruptura.

A autora destrincha a relação entre escravidão, colonialismo e moda. Mostra como, durante séculos, a roupa foi ferramenta de controle — mas também de rebeldia. E que a obsessão do Ocidente com a estética negra, ao mesmo tempo que tenta explorá-la, nunca conseguiu contê-la.

“O estilo negro é performance, é sobrevivência, é reinvenção constante.”

Essa é a tônica do livro. E é por isso que ele dialoga tanto com o tema “Superfine: Tailoring Black Style” — porque não tem como falar de alfaiataria preta sem reconhecer que o preto nunca foi só sobre aparência. Foi sobre afirmação, sobre presença, sobre hackear o olhar branco.

A alfaiataria como armadura e afirmação

No epicentro desse tema está a alfaiataria, mas não no molde europeu engessado. A proposta era mostrar como a moda negra subverteu, ressignificou e elevou o terno a outro patamar. Nomes como Dapper Dan, lenda viva do Harlem que remixou grifes de luxo com a estética street nos anos 80, foram evocados como fundações dessa revolução.

Cada costura carregava mais que tecido: carregava vivências, protestos, orgulho e ancestralidade. Alfaiataria preta é sobre usar o terno como escudo. É sobre desafiar o dress code branco. É sobre vestir realeza no corpo e revolução na alma.

Cultura, representatividade e legado

O tema “Superfine” não veio só pra impressionar. Veio pra educar. Pra lembrar que cada botão, cada corte, cada pano carrega um código. Que o estilo negro moldou (e continua moldando) a estética mundial. E que chegou a hora de parar de copiar e começar a creditar.

A moda preta não é derivada. É original. E o Met 2025 tratou de colocar isso no centro do mundo. A exposição, que segue no The Met até o fim do ano, mostra peças históricas, depoimentos de criadores negros, instalações sonoras e visuais, e uma linha do tempo que conecta griôs africanos aos costureiros do Bronx.

Ao inspirar o tema “Superfine: Tailoring Black Style”, a curadoria reconhece que a moda negra não deve ser vista apenas como tendência ou fetiche, mas como uma história rica, articulada, intelectual e profundamente crítica. A obra de Monica L. Miller sustenta esse olhar com profundidade e rigor acadêmico, ampliando a compreensão do papel do estilo na diáspora africana.


Do ponto de vista crítico, o tema do Met Gala 2025 — “Superfine: Tailoring Black Style” — é profundamente relevante porque reconhece, finalmente em uma das maiores vitrines da moda global, que estilo negro é forma de discurso, não tendência passageira.

Vivemos um momento em que as estruturas de poder estão sendo cada vez mais questionadas, inclusive na moda — um sistema historicamente excludente, que apropriou estéticas negras sem devolver protagonismo, autoria ou crédito. Ao colocar a moda negra no centro da narrativa, o Met não apenas celebra a criatividade, mas reconhece uma história de resistência silenciosa, elegante e estrategicamente costurada em cada terno, corte, cor ou tecido.

Moda é — e sempre foi — política. Ela comunica, performa, escolhe lados. Um homem negro bem vestido durante a escravidão ou na luta pelos direitos civis já era um ato de rebeldia. Hoje, é também afirmação, inteligência estética e domínio de linguagem visual. Não se trata só de roupa, mas de ocupar espaço com identidade e intenção.

Num tempo de vigilância racial, xenofobia e crises de representação, valorizar o black dandyism é afirmar que a elegância negra não é disfarce — é ferramenta. Não é exceção — é legado. E esse reconhecimento público, num palco como o Met, é também uma convocação: para que a moda finalmente devolva à cultura negra o que sempre lhe pertenceu.