O legado do dandismo negro no Met Gala 2025
”Black is not just beautiful. It’s bold. It’s brilliance. It’s resistance.”. Apesar de não sabermos ao certo quem afirmou isso, está claro que já conseguia ver o que muitos ainda não foram capazes de enxergar. Essa afirmação geralmente é acompanhada de figuras como Steve Biko e Kwame Brathwaite. Esses líderes enfatizaram a importância do orgulho racial, da resistência e da celebração da beleza negra.
E nesse quesito, em 2025, o Met Gala veio de forma assertiva e direta, costurando uma homenagem à estética, identidade e potência da moda negra com o tema “Superfine: Tailoring Black Style”. Não é só sobre alfaiataria. É sobre afiar o olhar pro passado, vestir a ancestralidade e projetar o futuro. É sobre tomar posse da narrativa. E faze-lo certo.
Slaves to Fashion: Black Dandyism and the Styling of Black Diasporic Identity, de Monica L. Miller, publicado em 2009, é uma obra fundamental nos estudos sobre moda, raça e cultura negra. A autora, professora de literatura e estudos culturais, investiga como pessoas negras — especialmente homens — usaram o vestuário como estratégia de afirmação identitária, resistência política e reinvenção cultural ao longo da história.
Tese central
Miller defende que o chamado black dandyism — ou dândi negro — não é apenas uma questão de estética, mas um movimento político e cultural. A imagem do homem negro bem vestido, muitas vezes associada à sofisticação, rebeldia e ironia, tem sido historicamente usada para romper estereótipos racistas, desafiar estruturas de poder e reescrever narrativas coloniais.

Estrutura e abordagem
O livro faz uma costura entre moda, história e identidade negra de forma poderosa. A autora traça uma linha do tempo que vai da escravidão até os dias de hoje, mostrando como o estilo sempre foi uma forma de expressão e resistência. Ela destaca desde os homens escravizados que usavam roupas elegantes para representar seus senhores — e mais tarde subverteram essa imagem — até os dândis do Harlem Renaissance, que transformaram a moda em um grito de liberdade. Já na era contemporânea, nomes como André 3000, Kanye West e artistas visuais usam a estética como ferramenta pra questionar raça, masculinidade e poder.
Estética como resistência: O livro mostra como a moda foi — e ainda é — uma forma potente de afirmação pessoal e coletiva entre pessoas negras. Seja nas ruas do Harlem ou nas passarelas de hoje, o estilo negro comunica orgulho, desafio e pertencimento.
Ruptura com narrativas coloniais: Miller revela como o estilo refinado desafia imagens históricas de subalternidade e submissão. A alfaiataria refinada, quando usada por corpos negros, deixa de ser apenas estética — torna-se recado. É um “estou aqui” com postura e intenção, reescrevendo visualmente a história.
Política da aparência: Ela introduz a ideia de que roupas não são neutras, mas carregam camadas de significados sociais e raciais. A autora também nos faz olhar além da superfície e entender que o visual também é campo de luta.

Uma nova era de celebração
Desde que o Costume Institute anunciou o tema, já ficou claro: 2025 seria o ano de mudança de jogo. A curadoria apostou na força e na elegância do estilo negro como um movimento estético e político. “Superfine” faz referência ao acabamento preciso, ao corte impecável, à excelência artesanal — mas também à expressão cultural enraizada na história do povo preto, da África ao Harlem, dos salões da Soweto aos tapetes vermelhos de Hollywood.
Essa não é só mais uma noite de gala. Será um desfile de memória, presença e poder.
Origem do Dandismo
O dandismo é mais do que estilo — é uma atitude. Um movimento que surgiu no século XIX, mas que foi apropriado, ressignificado e elevado principalmente por homens negros como forma de resistência estética, política e cultural.
O termo dandy nasceu na Inglaterra do século XIX, associado a homens que se vestiam de forma extremamente elegante, com trajes feitos sob medida, postura refinada e atenção obsessiva aos detalhes. Eles não eram da nobreza, mas usavam a aparência pra se destacar e disputar espaço social. Em vez de status por nascimento, buscavam respeito pela aparência. Um dos nomes mais icônicos foi Beau Brummell, figura lendária do estilo masculino.
Mas o dandismo não era só sobre roupa. Era sobre se construir como arte viva. O dândi se transformava em uma figura que usava o corpo como performance — uma forma de desafiar normas e inverter olhares.

Dandismo Negro: estilo como resistência
Quando homens negros começaram a se apropriar do dandismo, especialmente nas Américas e na África, a coisa ganhou outra camada de poder. Porque não era só estilo — era rebeldia contra a desumanização.
Les Sapeurs (República do Congo): Um movimento que começou no século XX onde homens se vestem com ternos coloridos, chapéus, sapatos luxuosos e uma postura impecável. No meio do caos social e econômico, eles usam o estilo como forma de dignidade, identidade e resistência ao colonialismo.

A filosofia da SAPÊRIA “Société des Ambianceurs et des Personnes Élégantes” é clara: “Mesmo sem nada, o estilo é tudo.” Isso é protesto em forma de alfaiataria.
Harlem Renaissance, zoot suits nos anos 1940, e ícones como Malcolm X, Miles Davis e até hoje, com André 3000 ou Tyler, the Creator, todos eles se apropriaram da estética do dândi pra dizer: “Eu sou preto, elegante, inteligente e incontrolável.”
Dandismo hoje como Herança Viva
Hoje, o dandismo preto segue mais vivo do que nunca. Está nas campanhas de moda de alto luxo, nos clipes de rap, nos tapetes vermelhos e nas ruas. É o grito silencioso de quem entende que o corpo é território político. E que se vestir bem, com intenção, é também um ato de enfrentamento. Nomes como Billy Porter, Steve Lacy, A$AP Rocky, Jidenna e Labrinth são grandes referências.
São herdeiros modernos dessa linhagem. Eles mostram que alfaiataria preta não é só sobre elegância — é sobre subverter o olhar com postura, presença e poder.
Pra entender o dandismo negro de verdade, é impossível ignorar o livro “Escravos da Moda: o dandismo negro e o estilo da identidade negra”, da autora Aspórica. A obra é uma pedrada teórica e estética que desvela como o corpo negro sempre foi vigiado, moldado e usado como vitrine — e como, mesmo assim, foi capaz de transformar a dor em elegância, e a opressão em estilo.
Aspórica aponta que o dândi negro não surge como cópia do modelo europeu. Ele emerge como sabotagem, como ironia fina contra o sistema. Um homem negro, impecavelmente vestido, caminhando pelas ruas com postura e confiança — num mundo que insiste em desumanizá-lo — não é vaidade. É estratégia. É ruptura.
A autora destrincha a relação entre escravidão, colonialismo e moda. Mostra como, durante séculos, a roupa foi ferramenta de controle — mas também de rebeldia. E que a obsessão do Ocidente com a estética negra, ao mesmo tempo que tenta explorá-la, nunca conseguiu contê-la.
“O estilo negro é performance, é sobrevivência, é reinvenção constante.”
Essa é a tônica do livro. E é por isso que ele dialoga tanto com o tema “Superfine: Tailoring Black Style” — porque não tem como falar de alfaiataria preta sem reconhecer que o preto nunca foi só sobre aparência. Foi sobre afirmação, sobre presença, sobre hackear o olhar branco.

A alfaiataria como armadura e afirmação
No epicentro desse tema está a alfaiataria, mas não no molde europeu engessado. A proposta era mostrar como a moda negra subverteu, ressignificou e elevou o terno a outro patamar. Nomes como Dapper Dan, lenda viva do Harlem que remixou grifes de luxo com a estética street nos anos 80, foram evocados como fundações dessa revolução.
Cada costura carregava mais que tecido: carregava vivências, protestos, orgulho e ancestralidade. Alfaiataria preta é sobre usar o terno como escudo. É sobre desafiar o dress code branco. É sobre vestir realeza no corpo e revolução na alma.

Cultura, representatividade e legado
O tema “Superfine” não veio só pra impressionar. Veio pra educar. Pra lembrar que cada botão, cada corte, cada pano carrega um código. Que o estilo negro moldou (e continua moldando) a estética mundial. E que chegou a hora de parar de copiar e começar a creditar.
A moda preta não é derivada. É original. E o Met 2025 tratou de colocar isso no centro do mundo. A exposição, que segue no The Met até o fim do ano, mostra peças históricas, depoimentos de criadores negros, instalações sonoras e visuais, e uma linha do tempo que conecta griôs africanos aos costureiros do Bronx.
Ao inspirar o tema “Superfine: Tailoring Black Style”, a curadoria reconhece que a moda negra não deve ser vista apenas como tendência ou fetiche, mas como uma história rica, articulada, intelectual e profundamente crítica. A obra de Monica L. Miller sustenta esse olhar com profundidade e rigor acadêmico, ampliando a compreensão do papel do estilo na diáspora africana.
Do ponto de vista crítico, o tema do Met Gala 2025 — “Superfine: Tailoring Black Style” — é profundamente relevante porque reconhece, finalmente em uma das maiores vitrines da moda global, que estilo negro é forma de discurso, não tendência passageira.
Vivemos um momento em que as estruturas de poder estão sendo cada vez mais questionadas, inclusive na moda — um sistema historicamente excludente, que apropriou estéticas negras sem devolver protagonismo, autoria ou crédito. Ao colocar a moda negra no centro da narrativa, o Met não apenas celebra a criatividade, mas reconhece uma história de resistência silenciosa, elegante e estrategicamente costurada em cada terno, corte, cor ou tecido.
Moda é — e sempre foi — política. Ela comunica, performa, escolhe lados. Um homem negro bem vestido durante a escravidão ou na luta pelos direitos civis já era um ato de rebeldia. Hoje, é também afirmação, inteligência estética e domínio de linguagem visual. Não se trata só de roupa, mas de ocupar espaço com identidade e intenção.
Num tempo de vigilância racial, xenofobia e crises de representação, valorizar o black dandyism é afirmar que a elegância negra não é disfarce — é ferramenta. Não é exceção — é legado. E esse reconhecimento público, num palco como o Met, é também uma convocação: para que a moda finalmente devolva à cultura negra o que sempre lhe pertenceu.
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