O legado dos Antwerp Six na moda contemporânea
Os Antwerp Six foram um grupo de seis estilistas formados na Royal Academy of Fine Arts de Antuérpia, na Bélgica, no início dos anos 1980: Ann Demeulemeester, Dries Van Noten, Walter Van Beirendonck, Dirk Bikkembergs, Dirk Van Saene e Marina Yee. Embora estilosamente distintos, tornaram-se conhecidos coletivamente quando alugaram uma van e levaram suas coleções para o British Designer Show, em Londres, em 1986 — numa espécie de “invasão belga” que sacudiu o centro da moda europeia.
A imprensa inglesa, fascinada por seus nomes impronunciáveis e estéticas desafiadoras, apelidou-os de Antwerp Six, cunhando uma identidade que, embora nunca formalizada entre eles, acabou moldando sua entrada definitiva no circuito fashion internacional.

O grupo surge num momento em que a Bélgica buscava se reposicionar economicamente após o declínio de sua indústria têxtil. O governo local, liderado por Willem Clales, lançou nos anos 80 o chamado “Plano Têxtil” — incentivando o design de moda como alternativa criativa e econômica viável. Isso incluiu a criação de concursos como o Golden Spindlee, campanhas como Fashion: It’s Belgian, que deram visibilidade a novos talentos nacionais.
Mais importante ainda: a Royal Academy of Fine Arts de Antuérpia, sob a direção de Linda Loppa, oferecia um ensino focado exclusivamente na expressão criativa, desconsiderando as exigências comerciais — o que gerou uma geração de designers altamente autorais, com voz estética muito particular.

Coincidências tiveram seu papel. O talento e as personalidades dos integrantes (e do círculo ao redor) influenciaram cada detalhe das coleções. Havia também sorte: na Bélgica, o setor da moda recebia forte investimento. E, mais amplamente, os designers se desenvolviam numa década sinônima de ousadia, criatividade e risco. Foi a tempestade perfeita — e nos fez questionar: seria possível cultivar esse tipo de talento hoje?
Embora cada um tenha desenvolvido uma assinatura própria, é possível identificar alguns eixos comuns:
Desconstrução e antiforma: muitos deles operaram contra a lógica do glamour dominante da época (como o power dressing de Thierry Mugler ou Montana), preferindo peças com caimento estranho, silhuetas desalinhadas e acabamentos crus.
Neutralidade de gênero e androginia: o grupo antecipou discussões sobre fluidez de gênero décadas antes de elas se tornarem pauta central.
O expressionismo flamengo: a estética belga — sombria, intelectualizada, melancólica e muitas vezes brutalista — permeia suas criações, refletindo tanto o passado artístico do país (Rubens, Bruegel) quanto seu presente político e social.
Rejeição ao sistema de moda tradicional: em oposição à moda industrializada francesa e italiana, preferiram caminhos autorais, produzindo em escalas menores, com foco na integridade criativa.
O Caminho de cada um

1. Ann Demeulemeester
Talvez a mais poética do grupo, suas criações são marcadas por silhuetas alongadas, paleta monocromática, alfaiataria afiada e uma sensualidade sutil. Fundou sua marca em 1985, saiu do comando criativo em 2013. Continua sendo referência de moda gótica intelectual e minimalismo romântico.
2. Dries Van Noten
O mais comercialmente bem-sucedido do grupo, Dries é mestre da estampa, da cor e do equilíbrio entre tradição e exotismo. Seu trabalho une opulência visual com rigor técnico. Em 2024, anunciou sua aposentadoria gradual, encerrando um ciclo de mais de três décadas.
3. Walter Van Beirendonck
O mais performático e ousado do grupo. Mistura futurismo, cultura pop, ativismo queer e política em coleções coloridas, gráficas e provocativas. É também um importante professor na Academia de Antuérpia, responsável por formar novos talentos (incluindo Raf Simons e Demna Gvasalia).
4. Dirk Bikkembergs
Pioneiro na fusão entre moda e esportes, tornou-se conhecido por suas coleções de moda masculina hiper-masculinizadas e pelo patrocínio ao futebol. Foi um dos primeiros estilistas a desfilar em campos de futebol e colaborar com clubes esportivos.
5. Dirk Van Saene
Mais discreto e introspectivo, trabalhou com pintura, cerâmica e moda em escalas pequenas. Atua também como professor na Academia. Seu trabalho mistura storytelling artesanal com uma visão muito pessoal da indumentária.
6. Marina Yee
A mais enigmática. Deixou a moda cedo, nos anos 90, ao criticar os rumos comerciais da indústria. Recentemente, voltou a apresentar coleções pequenas, sempre com foco em sustentabilidade e reuso de materiais — antecipando a discussão sobre moda circular.
Embora não tenha ido à Londres com o grupo, Martin Margiela se formou com eles e é frequentemente chamado de “o +1”. Trabalhou com Jean Paul Gaultier, depois fundou sua própria maison em Paris e redefiniu a moda com sua desconstrução radical, anonimato e crítica ao sistema. Sua influência é comparável apenas à de Rei Kawakubo ou Yohji Yamamoto.
Os Antwerp Six não criaram uma “escola” de estilo, mas sim um modelo de independência artística. Eles provaram que a moda pode ser mais do que tendência — pode ser linguagem, resistência e pensamento crítico. Fizeram da Bélgica um polo relevante no mapa global da moda e abriram caminho para uma nova geração de criadores conceituais como Raf Simons, Haider Ackermann, Kris Van Assche e Demna.
Eles são lembrados não apenas pelo que criaram, mas por como criaram: com coragem, coesão e convicção estética num tempo que ainda permitia o luxo da invenção.
Como os “Antwerp Six” Conquistaram a Infâmia na Moda
A rápida ascensão dos Seis+1 se deve a uma série de eventos culturais fortuitos, como explica Hannah Rogers — mas seu legado duradouro ainda ressoa até hoje.
20 de julho de 2016Texto por Hannah Rogers
Londres, 1986. Um grupo de graduados desconhecidos da Academia Real de Belas Artes de Antuérpia chega à British Designer Show, espremido numa van pequena, para apresentar suas coleções. Em apenas três dias, são vendidos na Barneys, Bergdorf e Liberty of London — e catapultados para os holofotes da mídia. Ann Demeulemeester, Marina Yee, Dries Van Noten, Dirk Bikkembergs, Dirk Van Saene e Walter Van Beirendonck se tornam os “Antwerp Six”.
Três décadas depois, a trajetória meteórica desses jovens belgas rumo ao reconhecimento global ainda fascina a indústria. O nome “Antwerp Six” — cunhado pela imprensa, em parte pela dificuldade de pronunciar seus nomes — permanece marcante não necessariamente por todos os seis individualmente (alguns seguiram em evidência, outros sumiram), mas porque simbolizam o raro fenômeno de um grupo inteiro impactar a moda internacional de forma simultânea. Embora críticos tenham buscado uma “segunda onda”, promovendo outros grupos de formados pela Academia de Antuérpia, a história não se repetiu.
Qual foi, então, a fórmula mágica? Coincidências tiveram seu papel. O talento e as personalidades dos integrantes (e do círculo ao redor) influenciaram cada detalhe das coleções. Havia também sorte: na Bélgica, o setor da moda recebia forte investimento. E, mais amplamente, os designers se desenvolviam numa década sinônima de ousadia, criatividade e risco. Foi a tempestade perfeita — e nos fez questionar: seria possível cultivar esse tipo de talento hoje?
O espírito dos anos 80
Muito diferente da esfera filtrada e dominada por hashtags em que vivem os designers de hoje, a moda dos anos 1980 era carregada de rebeldia, anarquia e transformação. A cultura jovem já incendiara os anos 60 e 70, e Londres havia usurpado Paris como centro cultural europeu. Politicamente, eram tempos tensos: Margaret Thatcher governava com punho de ferro, os EUA prosperavam sob Reagan, e o comunismo ruía no leste europeu. Criativamente, o cenário era efervescente.

Em Londres, subculturas dominavam. A cidade exaltava o criativo independente, incentivando jovens a traçar seus próprios caminhos — reunindo-os em clubes e cenas musicais pulsantes. Nesse submundo surgiram revistas revolucionárias como Dazed & Confused, Blitz e The Face, que moldaram a nova cena fashion da cidade. O governo britânico passou a investir nos jovens estilistas, promovendo festas e recepções — a própria Thatcher organizou eventos em Downing Street. A London Fashion Week começava a ganhar tração, revelando formados da Royal College of Art, Central Saint Martins e London College of Fashion. A moda designer se consolidava como um negócio rentável.

Os criadores desse caldeirão criativo reagiam ao seu tempo. Junto à prosperidade, havia o lado sombrio: atentados, greves, desemprego, HIV/AIDS. “Talvez isso tenha estimulado a criatividade”, disse Hendrik Opdebeek, chefe de moda masculina da icônica boutique belga Stijl. “As pessoas precisavam criar algo para lutar contra aquilo — criar seus próprios mundos.” A moda, como sempre, foi meio de expressão e fuga.
Antuérpia nos anos 1980
1981 marcou uma virada para a moda belga. Após o declínio da indústria do linho, o ministro da economia Willem Clales lançou o “plano têxtil”. Com apoio de Helen Ravijist, presidente do Instituto Belga de Têxteis & Moda, surgiram a campanha Fashion: It’s Belgian e o concurso Golden Spindle, para revelar jovens talentos e conectá-los a marcas de prêt-à-porter. Nesse mesmo ano, a maioria dos Antwerp Six se formou — junto ao colega Martin Margiela. Margiela não foi a Londres com o grupo, preferindo trabalhar com Jean Paul Gaultier em Paris, mas continua peça-chave da turma.
Os Seis+1 venceram várias vezes o Golden Spindle, conquistando o público belga. “Havia um espírito do tempo”, relembra Sonja Noel, fundadora da STIJL e uma das primeiras apoiadoras do grupo. “Tínhamos apenas japoneses, franceses e italianos. Sentia que algo novo era necessário — algo mais próximo do gosto belga.” Suas roupas casavam trabalho e vida noturna. “As pessoas procuravam algo novo, e o grupo ofereceu isso.” Suas criações, longe do glamour de Mugler e Montana, pareciam reais — e subvertiam de forma sutil os padrões de gênero e corpo do sistema parisiense. Como disse Noel: “O que era peculiar se tornou clássico”.

Se Londres teve o clube Blitz, Antuérpia teve o Café D’anvers. “Faziam festas enormes”, relembra Nicola Vercraeye, ex-colega de Margiela. “Antuérpia respirava criatividade. Saía com roupas absurdas — Helmut Lang, Gaultier, rendas… dá pra imaginar?” Festas em galpões completavam a cena underground. “Éramos da mesma geração, mesmos interesses. Era inevitável que nos encontrássemos”, diz Opdebeek.
Na Academia, a competição saudável entre os alunos elevava o nível. “É como no esporte”, explica Opdebeek. “Se vocês têm o mesmo objetivo, se estimulam mutuamente. E como os estilos deles eram tão diferentes, não havia ameaça direta. Por isso o grupo ficou tão forte.” O ensino, focado só na criatividade e não em apelo comercial, também foi decisivo. “Você sai de lá sabendo como criar — e só isso”, diz Vercraeye. “Esse método formou os designers que conhecemos.” O resultado? Uma geração que transformou a moda belga em sinônimo de conceito, subversão e vanguarda.
O impacto
Embora o cenário da moda tenha mudado profundamente, a trajetória dos Antwerp Six+1 ainda ensina. Nos anos 90, cada um seguiu seu caminho e construiu sua assinatura. Evitaram grandes campanhas publicitárias e seguiram no próprio ritmo. Um modelo sustentável, que valorizava o “menos é mais”. Trinta anos depois, esse espírito ecoa — como na saída de Raf Simons da Dior, em parte por conta da velocidade absurda da indústria. Simons, aliás, também se formou na Academia de Antuérpia — coincidência?

Há quem diga que o digital eliminou a chance de criar algo realmente novo, em uma cultura de reciclagem visual. “A forma como vivíamos nunca mais vai voltar”, disse Vercraeye. “Não digo que a moda morreu, mas ela já foi mais viva. As pessoas vão continuar precisando se vestir, mas a indústria mudou. Gosto de ver isso de forma positiva. Alcançamos o auge da internet. Mesmo pegando ideias antigas, dá pra torná-las atuais.” É um novo desafio para os formandos de hoje, num mercado que parece já ter visto de tudo.
Esse mercado mudou em outras formas também. Noel observa que a juventude atual está mais conservadora. “Eles evitam o exagero — mas é disso que você precisa pra inovar. Hoje, todos querem se parecer uns com os outros, pertencer a um grupo. Mas acredito que virá o tempo da individualidade, da autoconfiança. Sinto falta disso.”

Talvez a maior lição dos criativos belgas seja essa: a importância de confiar na própria visão artística. Num mundo saturado de imagens e informação, vozes críticas e independentes são o bem mais valioso que temos.
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