O misticismo de Martin Margiela
Martin Margiela é uma figura mítica no universo da moda. Sua trajetória, marcada tanto por uma profunda sensibilidade estética quanto por um silêncio deliberado, moldou uma das linguagens mais revolucionárias do final do século XX e início do século XXI.
Nascido em 9 de abril de 1957, em Leuven na Bélgica, Martin acabou crescendo em Genk, uma cidade pequena e industrial. Desde menor, demonstrou interesse pelo mundo visual e criativo — especialmente pela moda. Margiela é filho de um cabeleireiro e de uma funcionária pública.Ainda criança, ficou fascinado pelo que via na televisão e nas revistas, especialmente pelo trabalho de designers como André Courrèges — notório por suas criações futuristas e obsessão por branco, algo que impactaria profundamente a estética margeliana.
Aos 23 anos, se formou em moda pela prestigiada Academia Real de Belas Artes de Antuérpia — conhecida por sua abordagem rigorosa e artística da moda — que, durante os anos 80, se tornou um celeiro de talentos experimentais, como os membros do chamado “Antwerp Six” (Dries Van Noten, Ann Demeulemeester, Walter Van Beirendonck, entre outros). Embora Martin não seja oficialmente parte do grupo, ele estudou com muitos deles e compartilhou a mesma atmosfera criativa.

Durante esse período, ele já mostrava um interesse muito grande por alfaiataria clássica, técnicas artesanais e formas não convencionais de construção de roupa. Era um aluno dedicado e meticuloso, com uma inclinação muito forte pela experimentação e desconstrução. Enquanto outros colegas buscavamcriar peças mais "usáveis" ou comerciais, Margiela se aprofundava em pesquisas sobre forma, função e processo — conceitos que mais tarde se tornariam fundamentais no DNA da sua marca.
Uma curiosidade marcante é que ele já demonstrava certo incômodo com o culto ao ego do designer. Mesmo nos projetos acadêmicos, evitava assinar em destaque, buscando sempre deslocar o olhar do autor para a criação em si.
A Antuérpia da época era um centro criativo em ebulição, mas ainda distante dos holofotes de Paris, Milão ou Londres. Isso deu a Margiela e seus colegas uma liberdade para pensar moda de maneira menos comercial, mais artística e até mesmo política. Eles tinham uma mentalidade underground, que se refletia em materiais reaproveitados, em referências não convencionais e numa certa rebeldia contra os sistemas de moda dominante.
Sua formação não foi apenas técnica — foi conceitual, crítica, quase filosófica. E tudo isso transbordaria mais tarde na Maison Martin Margiela.
Após se formar e passar alguns anos trabalhando como freelancer na Bélgica, Margiela decidiu se mudar para Paris, buscando se inserir no coração pulsante da moda internacional. Em 1984, ele enviou seu portfólio para diversos ateliês — entre eles, o de Jean Paul Gaultier, que já era considerado um enfant terrible da moda francesa.
O portfólio de Margiela chamava atenção: não apenas pelas ideias visuais, mas pelo domínio técnico e pela sensibilidade conceitual. Gaultier, sempre atento a talentos disruptivos, viu algo especial naquele jovem belga tímido — alguém que via moda como um sistema a ser desafiado. O contrato foi firmado rapidamente, e Margiela passou a integrar a equipe de criação da maison, onde atuou por cerca de três anos, de 1984 a 1987, como assistente direto de Gaultier.

A experiência foi, ao mesmo tempo, um terreno de aprendizagem profunda e um campo de tensão criativa. Gaultier era extrovertido, teatral, maximalista, um provocador performático — seu trabalho era uma mistura de ironia, sensualidade, referências pop e ousadia. Margiela, por outro lado, era introspectivo, silencioso, minimalista, quase filosófico em sua abordagem.
Mas esse contraste funcionava. Margiela aprendeu com Gaultier a lidar com a dramaturgia da moda, o peso do show, o poder do inesperado. Ele teve contato direto com o funcionamento de um ateliê de alto nível, conheceu os bastidores de coleções de prêt-à-porter e alta-costura, e viu de perto como a imagem de um designer podia ser uma assinatura viva da marca — justamente algo que ele viria a rejeitar mais tarde, ao se esconder do próprio rosto.
Gaultier, em entrevista anos depois, disse que Margiela era “preciso, sensível e profundamente técnico”. Os dois compartilhavam um fascínio por modos alternativos de vestir o corpo, pela subversão de códigos de gênero, e por materiais fora do comum — mas enquanto Gaultier fazia isso com excentricidade e brilho, Margiela observava em silêncio, maturando suas próprias ideias.
Durante esse período, Margiela aprimorou sua técnica de moulage, algo que ele já havia experimentado na Antuérpia, mas que ganhou precisão com os moldes complexos do ateliê. Acabou participando do desenvolvimento de coleções conceituais que flertavam com o humor e o fetichismo, duas estéticas que ele mesmo nunca adotaria diretamente, mas que compreendeu profundamente. Aprendeu sobre produção, relações com imprensa, styling e bastidores de desfiles — o “teatro” da moda, que ele viria a subverter radicalmente depois. E claro, entendeu como uma marca pode criar um universo narrativo e não apenas roupas;
Por volta de 1987, Margiela decidiu sair. O motivo nunca foi explicitado, mas é compreensível: ele já havia absorvido o que precisava, e começava a formar uma visão própria, que romperia completamente com o sistema em que estava inserido. Ele queria fazer roupas que não dependessem do ego do criador, que fossem anônimas, reaproveitadas, silenciosas — um contraste absoluto com a estética pop e celebratória da maison Gaultier.
Um ano depois, em 1988, fundaria a Maison Martin Margiela com Jenny Meirens, dando início ao seu próprio capítulo, onde tudo o que aprendeu — e tudo o que rejeitava — se transformaria em conceito.
Abertura da Maison Martin Margiela
Em 1988, ao lado da empresária Jenny Meirens, Martin Margiela fundou sua própria marca. Ela entendia a aversão de Margiela ao estrelato e o ajudou a criar um modelo de negócio que permitisse isso. Desde o começo, a proposta era clara — subverter os códigos tradicionais da moda, colocar a roupa acima do criador, e rejeitar o culto à personalidade que dominava a indústria.
A primeira coleção da Maison foi lançada para a primavera-verão de 1989. Ela causou choque: modelos andavam desajeitadamente sobre passarelas improvisadas em galpões e bairros periféricos, com roupas feitas a partir de peças recicladas, costuras expostas, meias transformadas em blusas e etiquetas costuradas do lado de fora da peça.

Um dos traços mais icônicos da marca era a etiqueta branca com quatro pontos de costura visíveis nas costas das roupas, sem nome, sem logotipo. Era um manifesto silencioso: a autoria existia, mas não era o foco. A roupa falava por si.
A abertura da marca foi quase um manifesto. Em um momento em que a moda estava dominada por superestrelas como Jean-Paul Gaultier, Thierry Mugler e os primeiros anos do glamour noventista de Versace, Margiela optou por caminhar na direção oposta: anonimato, silêncio, roupas imperfeitas e uma estética que parecia desafiar todo o sistema da moda.
Desde o começo, a ideia era construir uma moda que fosse coletiva, anônima, focada no processo e no conteúdo das peças, e não na celebridade do criador. Essa filosofia se manifestava em decisões simples, mas potentes: não havia entrevistas; nenhum rosto do time criativo era mostrado; os comunicados de imprensa eram enviados por fax, todos em formato padronizado e impessoal; a equipe respondia como “nós”, nunca “eu”.
O primeiro desfile – Primavera/Verão 1989
Em outubro de 1988, a Maison apresentou sua primeira coleção para a temporada de Primavera/Verão 1989, em um teatro abandonado nos arredores de Paris, longe do circuito oficial da alta-costura. O convite era manuscrito. As cadeiras eram improvisadas. O casting incluía modelos não profissionais, mulheres de diferentes idades e etnias, e algumas crianças da vizinhança.
Durante o desfile as modelos andavam entre o público, que mal conseguia enxergar as roupas. Algumas peças estavam incompletas, com costuras visíveis ou bainhas cruas. Materiais reciclados e roupas vintage foram reconstruídas em novas formas. E, por fim, o público não sabia quem era o criador.

Esse desfile foi um choque no sistema da moda parisiense. Alguns o consideraram um “desastre”, outros uma revolução. Mas ninguém ficou indiferente.
Desde o início, a Maison Martin Margiela estabeleceu uma série de códigos visuais que se tornariam icônicos:
Etiqueta branca costurada com quatro pontos visíveis, sem nome;
Uso de roupas recicladas, reaproveitadas ou desconstruídas;
Peças que revelam o processo de criação (costuras, moldes, estruturas internas);
Sapatos Tabi, inspirados nos calçados japoneses tradicionais, que dividem os dedos;
Numeração nas etiquetas (0 a 23), indicando diferentes linhas da marca — 0 sendo a linha de arte conceitual, 1 a feminina, 10 a masculina, 22 os acessórios, etc.

Ao longo dos anos, a Maison Martin Margiela cresceu, mas sem jamais seguir as lógicas tradicionais de branding. Não havia logotipo. As lojas eram brancas, quase clínicas. As vitrines não mostravam roupas. A comunicação era mínima.

A marca se tornou um símbolo de integridade artística dentro da moda — um lugar onde a roupa era mais importante do que o nome por trás dela. Em pleno boom dos anos 1990, enquanto marcas apostavam em logomania, Margiela mantinha o silêncio.
Em poucos anos, a Maison passou de um projeto de culto para uma referência internacional. Designers, jornalistas e artistas viam na marca um ponto de ruptura necessário. Ela inspirou toda uma geração de criadores como Demna Gvasalia (Balenciaga, Vetements), John Galliano (que mais tarde herdaria a direção da Maison), Rei Kawakubo e Yohji Yamamoto encontraram um “espelho” no Ocidente e, Kanye West, que declarou obsessão pela marca nos anos 2000.

Margiela misturava moda conceitual com práticas quase arqueológicas: ele desconstruía ternos, recontextualizava uniformes, recuperava técnicas artesanais quase esquecidas, como a moulage (modelagem diretamente no corpo), e colocava objetos do cotidiano (como luvas ou cabelos) como matéria-prima de suas peças.
Jornada com a Marca
Durante os anos 1990, Margiela consolidou a Maison como símbolo de uma moda radical, que dialogava com arte contemporânea. Suas apresentações viravam acontecimentos: desfiles em palcos de teatro abandonados, casas ocupadas ou até lares de idosos.
Em 1997, ele assumiu a direção criativa da linha feminina da Hermès, onde surpreendeu com uma abordagem clássica e minimalista — um contraste com seu trabalho na Maison. Lá, valorizou o conforto, a fluidez e a intemporalidade. O resultado foi uma série de coleções que hoje são vistas como visionárias, antecipando debates sobre consumo consciente e luxo silencioso.
O convite para a Hermès e a escolha de Margiela
Jean-Louis Dumas, então presidente da Hermès e herdeiro da família fundadora, convidou Margiela pessoalmente. A marca queria atualizar sua linha feminina de ready-to-wear, mantendo o DNA da Hermès intacto, mas trazendo um frescor que dialogasse com o novo século que se aproximava.
Dumas já havia notado que o trabalho de Margiela, apesar de radical, era profundamente respeitoso com a técnica, o tempo e a história — três pilares da Hermès. Ele viu no designer alguém capaz de reformular o luxo com discrição, sem cair no modismo da logomania ou da ostentação que tomava conta da virada dos anos 2000.

Durante os seis anos à frente da maison, Margiela nunca alterou os códigos centrais da Hermès — como o couro, os tons sóbrios, os cortes precisos. Mas o que ele fez foi resgatar e refinar o conceito de "luxo silencioso", muito antes de isso virar tendência nos anos 2020.
Suas coleções eram marcadas por:
Paleta neutra e refinada: brancos, off-whites, beges, cinzas, preto, verde-musgo, ferrugem.
Materiais nobres: caxemira, couro de cordeiro, lã de alta torção, seda lavada.
Silhuetas fluidas e atemporais: túnicas, mantôs longos, saias envelope, blusas sem botão visível.
Roupas que abraçavam o corpo com conforto, sem rigidez nem ostentação.
Sem logotipos, sem ornamentações — o luxo era percebido pelo toque e pelo corte, não pela imagem.
Ele se inspirou no guarda-roupa da mulher real, que trabalha, lê, anda de bicicleta, viaja. Era uma moda profundamente funcional e sofisticada, pensada para durar — uma contraofensiva ao ritmo frenético e descartável da moda da época.

As primeiras coleções causaram estranheza. Alguns clientes Hermès sentiram falta da opulência tradicional, mas rapidamente Margiela conquistou uma legião de mulheres que desejavam elegância com liberdade. A crítica especializada elogiava a sobriedade, a inteligência e a integridade do trabalho.
Uma frase recorrente nos reviews era que “ele fez roupas que as mulheres realmente queriam usar” — um elogio raro e poderoso.
Mesmo discreto, Margiela também trouxe inovação: criou roupas reversíveis, com bolsos escondidos; introduziu o conceito de “modularidade” — peças que podiam ser usadas de várias formas; reformulou peças clássicas do vestuário masculino (como camisas e casacos) para o corpo feminino, sem perder a suavidade e aplicou seu amor pelo moulage (escultura em tecido) de forma impecável.
Durante esses anos, quase ninguém sabia que era Margiela por trás das coleções Hermès. Ele continuava sem dar entrevistas, sem aparecer, sem assinar. O nome dele mal era mencionado. A marca se comunicava como se a criação fosse uma extensão natural de sua tradição — e de certa forma, era mesmo.
Foi só depois de sua saída, em 2003, que muita gente olhou para trás e percebeu a coerência brilhante entre o trabalho de Margiela e os valores da Hermès.
Em 2003, Margiela deixou a Hermès para focar exclusivamente em sua maison, que estava crescendo e ganhando cada vez mais atenção.
Desaparecimento dos olhos do público
Margiela sempre evitou o estrelato. Não dava entrevistas, raramente permitia fotos — e até mesmo suas equipes o viam pouco. Com o tempo, isso foi se intensificando. Em 2002, a Maison foi vendida ao grupo OTB (de Renzo Rosso, da Diesel), e em 2009, Margiela oficialmente deixou a marca. Não houve comunicado oficial detalhado, nem passagem de bastão visível. Simplesmente sumiu.
Desde então, ele se manteve fora dos holofotes. Há quem diga que ele preferiu a pintura, voltando ao universo visual mais amplo que o formou. Em 2021, um documentário dirigido por Reiner Holzemer, “Martin Margiela: In His Own Words”, revelou — ainda que com discrição — trechos inéditos de sua voz, suas mãos, seus cadernos de croquis. Mas o rosto? Nunca apareceu.
Martin Margiela é considerado um dos criadores mais influentes da moda contemporânea. Sua obra impactou desde nomes como Demna Gvasalia (Balenciaga/Vetements) e John Galliano (que hoje dirige a Maison Margiela), até designers independentes que seguem uma linha mais conceitual, artesanal ou anticomercial.
Margiela não apenas vestiu corpos — ele vestiu ideias. Seu sumiço não é ausência, mas continuidade de seu gesto radical: colocar a roupa no centro, e o criador na sombra.
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