O pacto do blues

23 de set. de 2025

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O blues nasceu em um contexto de ruínas e reconstrução. O fim da Guerra Civil, em 1865, encerrou formalmente a escravidão, mas não trouxe liberdade plena. No Delta do Mississippi, ex-escravizados e seus descendentes foram empurrados para plantações de algodão onde a exploração continuava com outra face. O sistema de arrendamento e dívida prendia famílias inteiras à terra em condições que pouco se diferenciavam da escravidão.

Foi nesse ambiente marcado por violência racial, linchamentos públicos e as leis de Jim Crow que uma nova linguagem musical começou a emergir. Ela carregava a dor da opressão e a memória dos cantos de trabalho, mas se afastava da solenidade religiosa para descrever a vida concreta de quem vivia à margem.

O blues se enraizou em bares e juke joints, espaços onde a comunidade negra podia se reunir fora do olhar vigilante das igrejas e da polícia. Ao mesmo tempo, essas casas eram vistas pelos pastores batistas e metodistas como lugares de perdição. A tensão entre música profana e religião atravessava o cotidiano da população negra no sul. Para muitos fiéis, tocar blues era se afastar de Deus, um caminho aberto para influências demoníacas. Essa leitura moral alimentaria mais tarde a interpretação de que o talento extraordinário de certos músicos só poderia ter origem sobrenatural.

O ambiente cultural do Mississippi também era marcado por tradições espirituais híbridas. Além da matriz cristã, sobreviviam crenças trazidas por africanos escravizados, que incluíam o poder simbólico das encruzilhadas. Quando o blues começou a ser identificado como música do diabo por setores religiosos, essa associação encontrou na imagem da encruzilhada um símbolo pronto para ser usado.

A lenda do pacto não começou com Robert Johnson, embora tenha sido nele que se fixou. Um de seus predecessores, Tommy Johnson, era conhecido por espalhar a história de que tinha vendido a alma ao diabo para tocar guitarra. Seu irmão, LaDell Johnson, contava a jornalistas nos anos 60 que Tommy falava abertamente disso para impressionar o público. Esse relato mostra que a narrativa já circulava entre músicos e fãs muito antes de se tornar um mito central. Mas foi com Robert Johnson que ela ganhou força.

Robert nasceu em 1911 em Hazlehurst, Mississippi, e cresceu entre mudanças constantes com a mãe. Desde cedo se interessou pela música, aprendendo gaita e depois violão. Nos anos 20 e início dos 30 frequentava encontros de bluesmen locais. A memória deixada por esses músicos é que Johnson era um garoto medíocre, com pouco domínio técnico. O relato de Son House, registrado anos depois, é que Johnson insistia em tocar nos intervalos, mas seu som era fraco e desafinado, ao ponto de ser ridicularizado. Em seguida, Johnson desapareceu da cena por quase dois anos. Quando retornou, em meados de 1932, sua técnica era tão impressionante que parecia impossível. Willie Brown descreveu que ele soava como se fossem dois guitarristas tocando ao mesmo tempo. Foi essa transformação súbita, sem testemunhas de sua prática intensa, que alimentou a ideia de que Johnson havia feito um pacto em uma encruzilhada.

O mito encontrou sustentação nas próprias composições. Robert Johnson gravou o número singelo de 29 músicas em duas sessões, uma em San Antonio em 1936 e outra em Dallas em 1937, organizadas pelo produtor Don Law. Mas nesse repertório curto estavam letras que se tornariam fundadoras de toda a iconografia do blues. Em Cross Road Blues, ele canta sobre estar preso em uma encruzilhada, implorando por misericórdia a Deus enquanto espera por um salvador. Em Hellhound on My Trail, descreve cães infernais em seu encalço, uma imagem de perseguição espiritual e de paranoia existencial. Em Me and the Devil Blues, afirma que “eu e o diabo caminhamos lado a lado”, cristalizando a associação direta entre sua figura e forças demoníacas.

As letras, no entanto, não precisam ser lidas apenas de forma literal. Muitos pesquisadores apontam que a encruzilhada pode simbolizar escolhas de vida, que tudo parte de uma ideia em criar metáforas para a perseguição racial e social constante, e que andar com o diabo pode ser apenas uma forma de expressar uma vida marcada pelo risco e pela marginalidade. O blues, como linguagem, sempre se moveu entre metáfora e experiência concreta. Mas para o público branco que começou a ouvir Johnson a partir dos anos 60, a interpretação sobrenatural era mais fácil de absorver.

A morte de Johnson reforçou o mito. Em agosto de 1938, ele adoeceu após beber uma garrafa de uísque envenenada em Greenwood, Mississippi. O veneno teria sido colocado pelo marido de uma mulher com quem Johnson se envolvera. Ele agonizou por dias até morrer, com apenas 27 anos. Sua certidão nunca foi encontrada e três diferentes locais disputam seu túmulo. O fato de ter morrido jovem, em circunstâncias nebulosas e sem um registro oficial, completou o quadro de artista amaldiçoado. Décadas depois, sua idade o ligaria ao chamado Clube dos 27, junto de Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Kurt Cobain e Amy Winehouse.

Johnson caiu no esquecimento por quase vinte anos. Apenas nos anos 60, com a coletânea King of the Delta Blues Singers lançada pela Columbia em 1961, sua obra foi redescoberta por músicos do Reino Unido e dos Estados Unidos. Keith Richards, do Rolling Stones, declarou que quando ouviu Johnson pela primeira vez achou que havia dois guitarristas tocando. Eric Clapton chamou-o de “o mais importante cantor de blues que já viveu”. Essa redescoberta inseriu Johnson na genealogia do rock e ampliou a lenda do pacto, agora traduzida em uma estética que o rock apropriava para si.

A cultura pop reforçou essa mitologia em diversas formas. O filme Crossroads, de 1986, dirigido por Walter Hill, colocou em cena um jovem guitarrista que procura o segredo de Johnson e culmina em um duelo musical com Steve Vai, representando o diabo. Os irmãos Coen retomaram a lenda em O Brother, Where Art Thou? de 2000, onde um personagem chamado Tommy Johnson alega ter vendido a alma em troca de tocar guitarra. Essas narrativas ampliaram o pacto como metáfora para a relação entre arte, fama e sacrifício.

O mito, porém, tem um fundo racial importante. A ideia de que um músico negro só poderia tocar de forma tão extraordinária se tivesse ajuda sobrenatural é atravessada pelo preconceito de uma sociedade que não reconhecia a disciplina, o estudo e a criatividade de artistas negros. O pacto era uma explicação simplista para uma genialidade que rompia limites sociais. Além disso, o pacto também reflete a barganha real que músicos negros faziam com a indústria fonográfica. Contratos injustos, falta de royalties, apropriação de sua obra por artistas brancos, tudo isso configurava um outro tipo de venda da alma, não a um diabo mítico, mas a um sistema econômico que explorava talento sem garantir retorno justo.

O blues de Johnson foi um alicerce para o rock, o jazz moderno e até para o rap. Sua gramática de dor, sobrevivência e enfrentamento atravessou gêneros e gerações. O pacto, como mito, persiste porque fala mais sobre a sociedade do que sobre ele. É uma metáfora da dificuldade em aceitar que a genialidade pode surgir da marginalidade, que a técnica pode ser aprendida no isolamento e que a arte pode florescer mesmo sob opressão.

Robert Johnson viveu pouco, deixou poucas canções gravadas e quase nenhuma fotografia. Ainda assim, é lembrado como um dos fundadores da música popular do século XX.

Assistente de redação

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