Qual história Kendrick Lamar conta em DAMN.?
Em 2017, Kendrick Lamar parou a indústria da música com seu novo álbum, DAMN. Naquela sexta-feira santa, 14 de abril, após dar as caras com seu novo projeto, Kdot se colocou em diversas contradições no decorrer do álbum, entre Deus, a angústia, o medo, se abrindo em faixas que falam de interpessoalidade, maldades e fraquezas. Kendrick se colocou como fraco, desconstruindo as próprias afirmações e pontos de confiança que o mesmo cria no início das músicas. Mas, um ponto importante na construção desse álbum é que semanas após o seu lançamento, a base de fãs de Kendrick passou a teorizar sobre a sequência lógica de Damn.

Ao final das contas, qual história Kendrick decide contar em DAMN.?
Na ordem original, DAMN. abre com uma narrativa enigmática. Kendrick conta que estava andando na rua e viu uma mulher idosa. Ao se aproximar para ajudá-la, ela pergunta se ele perdeu alguma coisa. Quando ele responde que sim, ela atira. O som de um disparo encerra a faixa.
A sequência das músicas que vem depois mergulha em uma trajetória marcada por dúvida, ego, fé, violência, amor, orgulho e mortalidade.

Cada faixa carrega um título em letras maiúsculas, representando estados emocionais ou conceitos abstratos: “DNA.”, “YAH.”, “ELEMENT.”, “FEEL.”, “LOYALTY.”, “HUMBLE.”, “LUST.”, “LOVE.”, “XXX.”, “FEAR.”, “GOD.” e “DUCKWORTH.”. Essa estrutura cria a sensação de capítulos ou blocos temáticos, em vez de uma linha narrativa contínua. Kendrick constrói o álbum como se estivesse oferecendo ao ouvinte pedaços de um julgamento interno, e cabe a quem escuta organizar esse quebra-cabeça.

Ao longo do disco, Kendrick alterna entre uma leitura pessoal e uma leitura coletiva. Ele começa com “DNA.”, uma afirmação identitária e social para quem nasceu e cresceu em Compton. A música confronta o modo como a sociedade americana tenta definir o que está “no sangue” de um homem negro, ao mesmo tempo em que reafirma sua herança e a transforma em poder.

Em “YAH.”, ele muda o tom, refletindo sobre religião e espiritualidade e questiona seu próprio lugar dentro da fé. A faixa tem um andamento mais arrastado, como se fosse um pensamento que brota após o caos de DNA. “ELEMENT.” funciona como uma espécie de manifesto estético e existencia expondo sua postura diante da indústria e das regras impostas ao artista negro. “FEEL.” desmonta a ideia de super-herói que acabou de ser criada, de alguém cheio de autoestima e confiança ao tratar sobre isolamento, desconfiança, cansaço emocional e o peso de carregar expectativas, seja de Deus, da comunidade ou da indústria.
Tudo o que acabou de ser criado, cai por terra, os acontecimentos ultrapassam a música e a fé e agora parte para vínculos e condições humanas.
“LOYALTY.” e “LOVE.” tratam de vínculos humanos e confiança. A primeira trabalha a lealdade como princípio ao lado de Rihanna, como se aquela pessoa que está quebrada pedisse agora apenas por lealdade, enquanto a segunda abre espaço para afeto e vulnerabilidade, um dos poucos momentos em que Kendrick deixa as fronteiras morais de lado para falar de sentimento direto.

“LUST.” surge entre as duas, descrevendo a repetição vazia de desejos, rotinas e comportamentos automáticos. É a faixa que melhor mostra como o sucesso e o prazer também podem funcionar como armadilhas. “XXX.” amplia o foco. Kendrick fala sobre violência sistêmica nos Estados Unidos, sobre como o cristianismo é invocado em discursos públicos ao mesmo tempo em que a retaliação armada segue como resposta cotidiana. É uma das faixas mais politicamente explícitas do disco, com a participação do U2 servindo para intensificar o tom quase épico do comentário social.
“FEAR.” é o coração moral do álbum. Kendrick revisita três momentos da vida, aos sete anos, o medo está dentro de casa, na autoridade da mãe e na disciplina rígida que molda comportamento, aos dezessete, o medo vem da polícia, das gangues, da morte constante que paira sobre jovens negros em Compton. Aos vinte e sete, ele fala sobre o peso da fama, o medo de perder tudo, a pressão espiritual e a sensação de estar sempre à beira de algum castigo.
Essa faixa condensa a lógica central do disco, o medo é um elemento formador, um fio que atravessa fé, destino, ego e sobrevivência. “GOD.” funciona quase como um estado transitório, uma ironia sobre grandeza e triunfo, ao mesmo tempo em que anuncia o desfecho narrativo de “DUCKWORTH.”.

A última música revela uma história real que reconfigura tudo. Quando Kendrick ainda era criança, Anthony “Top Dawg” Tiffith, que décadas depois se tornaria chefe da TDE, quase assaltou e matou Ducky, o pai de Kendrick, em um KFC em Compton. Ducky ofereceu biscoitos de graça, Tiffith desistiu do assalto e anos depois, aquele menino que poderia ter perdido o pai seria contratado pela gravadora do homem que quase o matou.
Kendrick usa essa história como encerramento e origem alternativa. “DUCKWORTH.” é a revelação de que toda a trajetória narrada no álbum está ligada a um evento aparentemente pequeno que decidiu o futuro. Ao final da faixa, o som de rebobinagem leva de volta para “BLOOD.”, fechando o ciclo.
Essa estrutura circular é a chave para entender DAMN.. Ouvir o álbum na ordem original é acompanhar uma trajetória de queda, autocrítica e revelação. Kendrick parte de uma cena enigmática, atravessa dúvidas, desejos, fé, medos e termina no ponto de origem, revelando como o acaso e a moralidade se cruzam.

E é aí que a teoria nasce. A trajetória de queda, a busca por prazeres carnais e a fé intrínseca, e ao fim contar com a revelação de que está tudo amarrado, faz parecer que essa é a história principal. Mas, ao ouvir o disco de trás para frente é possível ouvir uma história de redenção e ascensão. Na ordem inversa, começando por “DUCKWORTH.”, Kendrick parte de um ponto de origem onde quase sua vida foi por água abaixo, atravessa fé, medo, violência, orgulho e termina com o disparo de “BLOOD.”, como se todo o percurso fosse um flashback ou uma reflexão sobre a violência. A versão reversa transforma o álbum em um ciclo de vida e morte, como se Kendrick estivesse preso entre destino e escolha.
Em dezembro de 2017, Kendrick lançou uma versão especial de DAMN. com a tracklist invertida. Em entrevistas, confirmou que a ideia foi pensada desde o estúdio. O álbum foi concebido para funcionar nas duas direções.
Por trás dessa estrutura está um discurso moral, espiritual e histórico. Kendrick constrói o disco em torno de conceitos bíblicos, sermões familiares e referências à tradição religiosa negra norte-americana. Ele fala sobre fraqueza e maldade, culpa e redenção, pecado e julgamento. Cada faixa funciona como um capítulo de um tribunal espiritual. A música não está separada da experiência social. As referências religiosas aparecem entrelaçadas com o cotidiano de Compton, com o racismo institucional, com o peso histórico da escravidão e com o olhar da mídia sobre corpos negros.

Musicalmente, DAMN. parece mais direto que seus trabalhos anteriores, mas essa é uma decisão estratégica. Kendrick enxugou os arranjos e aproximou-se da linguagem do trap e do pop dominante para construir um discurso narrativo que se apoia no encadeamento das faixas, nos loops sonoros e nas repetições de vozes. O tiro de “BLOOD.” e o rebobinar de “DUCKWORTH.” não são efeitos isolados. O álbum foi feito para ser lido como um ciclo, como uma história que pode ser contada da queda para a revelação ou da origem para o julgamento.
A história que Kendrick conta em DAMN. é a de um homem diante de si mesmo e de algo maior. Um julgamento que mistura religião, identidade, destino e política, expondo sua trajetória individual para falar de algo coletivo. A oscilação entre ego e humildade, fé e dúvida, pecado e salvação, é também a oscilação de uma comunidade inteira. Kendrick transforma sua vida em narrativa moral, e o álbum funciona como registro de um conflito espiritual e histórico.
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