Sofia Gama e a arte como valorização ancestral
Como artista visual, criativa de moda, modelo e comunicadora, Sofia honra a sua ancestralidade a partir do seu trabalho. Hoje, sobretudo, comemoramos o Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas e é nas técnicas e materiais tradicionais que ela traz à tona sua raiz indígena. “No fundo, é sobre resistência e defesa desses sagrados que estão em constante ameaça de destruição e apagamento, sejam eles territórios físicos, culturais ou emocionais”, afirma ela.

Conversamos com Sofia sobre como a arte entrou na sua vida, suas referências e influências e, claro, o papel da ancestralidade e da luta indígena nas suas obras. Confira abaixo:
Seu contato com o universo artístico é algo que te acompanha desde cedo? Ou surgiu ao longo de sua trajetória?
Com certeza é algo que me acompanha desde cedo. A arte é algo inerente à nossa cultura, e eu cresci vendo a minha mãe e minha vó criando principalmente através do bordado, que elas me ensinaram. Eu também sempre gostei de desenhar quando criança, conforme cresci me aproximei da poesia, cheguei a estudar fotografia, e agora de forma profissional foi trabalhando primeiramente com fotografia que entrei no universo da moda, onde voltei a me aproximar do bordado e das artes plásticas. Minha primeira obra foi um bordado em tela juta, e minha primeira peça de roupa autoral também foi um casaco inteiro trabalhado em bordado.

Como se dá seu processo criativo e quais são suas referências ou influências?
Quando estou produzindo uma peça nova, sinto que externalizo um grito como uma necessidade de falar sobre algo, contar uma história que acredito que muitas vezes não é contada, colocar em evidência ou trazer para discussão algo que muitas vezes fica despercebido. Muitas vezes são histórias, questões e sentimentos que não são bonitos. Porém, algo que bem muito da área da moda e eu gosto bastante é a possibilidade de criar coisas bonitas com o que temos e valorizar também toda a beleza e preciosidade de culturas, corpos e vidas que são desvalorizados no mundo em que vivemos. A admiração física e o
agradável ao olhar são assuntos presentes em muito do que busco criar, desde os traços das mulheres que se parecem comigo até a beleza de uma planta, um animal, a terra viva. Então a beleza e riqueza das técnicas e materiais que uso e o sentimento de admiração estética pelo resultado final de uma peça pronta, tendo o belo como algo com o que já gosto de trabalhar e criar, trazem também uma forma de chamar olhares para questões que deveriam mudar ou ter mais visibilidade e valorização, histórias que deveriam ser mais escutadas, é uma forma de também trazer alívio e desabafar um grito que precisa ser escutado, sendo ele pessoal meu ou não.

Eu gosto muito de juntar diferentes áreas artísticas, diferentes materiais, diferentes técnicas, pensar o ancestral da forma mais respeitosa possível em conjunto com a minha própria vivência atual. Eu pesquiso técnicas ancestrais milenares, todas que aprendi com outros artistas, e o fato de serem tecnologias ancestrais me faz sentir que preciso sempre atualizar esses estudos e treinar as práticas. São coisas que se aprendem e se atualizam em comunidade. Sobre o processo criativo em si, eu sinto que as ideias das peças vem na minha mente quase que prontas e eu vou construindo a partir dessa imagem que está na minha cabeça. Sinto que são peças que contam histórias ou passam mensagens de forma não-verbal, mas através da imagem e da técnica. Fazer tranças e bordados, tramar miçangas, criar peças de barro são processos que contam histórias que não começaram em mim. Por gostar de misturar e juntar todos esses diversos tipos de técnicas, o processo criativo costuma exigir de mim bastante planejamento, técnica e estudo para chegar no resultado final que eu desejo. Para colocar uma peça de cerâmica em um bordado em tela ou em uma vestido, por exemplo, eu preciso primeiramente estudar qual exatamente vai ser o tamanho dessa peça, onde serão os buracos dela, o formato correto para ela entrar na obra final. Acho engraçado como são técnicas frequentemente desvalorizadas intelectualmente enquanto exigem um investimento intelectual e técnico enorme. Por isso, todas as minhas peças começam com esboços ou croquis, exigem contas antes de eu começar a produzir de fato e por fim montar e chegar naquela imagem que existe na minha cabeça. Justamente por serem técnicas coletivas, minhas maiores referências são as pessoas que me ensinaram. Minha vó, minha mãe, os ceramistas Yaku e Ana V, a artista que trabalha com miçangas Maria Guajajara, e todos os outros artistas que desenvolveram há milênios as técnicas que trabalho e tantos que encontro os trabalhos por aí nomeados como artesãos sem seus nomes creditados. Muitos artistas com quem tenho contato também me inspiram, como a cantora Kae Guajajara, o fotógrafo Gustavo Paixão, a designer Abrilhante. Também me inspiram a cantora Luedji Luna e a modelo Paloma Elsesser.
Como você equilibra suas diferentes atuações como artista visual, criativa de moda, modelo e comunicadora?
Essa é, com certeza, a parte mais difícil. Acredito que o que mais facilita justamente é o meu gosto por juntar todas essas coisas e pensar em multi potenciais, multi possibilidades de diversas formas. Frequentemente aproveito trabalhos de criação de conteúdo pra compor com peças minhas e me expressar criativamente em imagem de moda, direção de arte, styling. Os trabalhos de styling que mais faço são compostos com peças que crio. Já modelei pra um projeto que tinha obras minhas compondo o cenário com a direção de arte. Acredito que a comunicação facilita também isso, porque tento fazer meu trabalho alcançar novos lugares aproveitando esse veículo das redes sociais.
Qual o papel da ancestralidade na execução dos seus projetos?
Muitas das histórias que eu conto através das minhas peças são relacionadas à minha ancestralidade direta, a história da chegada da minha família no Rio de Janeiro, ensinamentos que recebi da minha avó relacionados à natureza e à vida no geral. Uma das minhas obras que mais repercutiu nas redes é um bordado de uma frase que minha vó fala “Coração do outro é terra que ninguém anda”, que eu leio como uma relação direta entre sentimento, terra e território. Além disso, acho que a ancestralidade é algo intrínseco ao meu trabalho em relação às técnicas e materiais que pesquiso e também à forma que tive contato com a maioria delas, primeiro através da minha família e depois em contato com outros artistas indígenas. O barro também me conquistou de primeira porque me remete à essa relação forte que tenho com a terra, algo que herdei da cultura do plantio que minha vó me passou e me ensinou.

Como você representa a dualidade entre a natureza e os ambientes urbanos nas suas obras?
Acho que essa dualidade está presente quando conto histórias relacionadas à minha ancestralidade mas também represento questões das minhas vivências atuais ao mesmo tempo, às vezes na mesma obra. Gosto de pensar as diferentes tonalidades de barro representando diferentes símbolos: da terra, até a água, a pedra e o concreto. Acredito que também principalmente na mistura de técnicas e materiais. Eu penso muito sobre a dualidade e resistência da terra - e tudo que vem dela - em ambientes dominados pelo concreto; e também sobre o movimento e vida das águas que passam por todos esses lugares e simbolizam tantas travessias de resistência. Através disso, busco falar sempre também sobre a necessidade de defender os territórios ameaçados onde a terra ainda vive e as vidas que resistem nesses lugares, para que nenhuma família precise sair forçadamente de onde vive e tenha direito ao bem-viver, onde quer que esteja. No fundo, é sobre resistência e defesa desses sagrados que estão em constante ameaça de destruição e apagamento, sejam eles territórios físicos, culturais ou emocionais.

A arte pode ser um meio para gerar discussões sobre a luta indígena. O que você pretende trazer à tona com seus projetos e também como artista num geral?
Acredito que a contribuição do trabalho criativo no geral, como de arte e moda e outros relacionados à imagem, está na possibilidade de trazer discussões e questões de diversas formas, com variadas técnicas, apelos para a sensibilidade e atrair diversos públicos para a conversa que são tocados de formas diferentes por uma mesma peça ou imagem. Com o meu trabalho eu busco demonstrar o valor e riqueza cultural das técnicas e materiais tradicionais e, através disso, trazer para a discussão as questões que permeiam os locais onde essas técnicas foram originadas e repassadas. São vidas e culturas ameaçadas a todo tempo sem que muitas pessoas nem ao mesmo saibam ou tenham conhecimento sobre suas realidades contemporâneas. Então, além de falar sobre histórias, sentimentos e vivências individuais minhas, da minha família e minha ancestralidade, tudo que permeia meu trabalho está também relacionado a culturas e histórias que são coletivas e existem muito antes e além de mim. Acho que muito da minha arte fala sobre como eu cheguei até aqui e, principalmente, que eu existo aqui. De forma coletiva e também de forma individual. Eu tento quebrar estereótipos e ir contra a ideia de que não podem existir pessoas indígenas na cidade, se vestindo como querem, seguindo seus sonhos, se entendendo e exercendo sua individualidade e seus direitos como todas as outras pessoas.

Mas também busco trazer a mensagem da importância da defesa dos territórios: em muitas das obras falo sobre as travessias das famílias indígenas para fora de seus territórios e longe da raiz de suas culturas, e como esse êxodo muitas vezes é forçado e os territórios são expropriados de forma triste. Por isso, entendo que defender o bem-viver e liberdade das famílias indígenas é também defender a preservação e respeito dos seus territórios pra que não precisem sair de forma forçada, como acontece muito.
Se você pudesse dar qualquer dica para alguém, qual seria?
Entender quem você é também é entender que a sua história começou antes de você e que você está conectado a tudo que vive em sua volta.
