Álbuns essenciais do spiritual jazz
Uma fusão entre fé, política e som
O spiritual jazz nasce em meio a uma transformação histórica. Nos anos 60, os Estados Unidos atravessavam o auge da luta por direitos civis. O movimento de independência se espalhava pela África, e o jazz, até então identificado ora com o entretenimento de salão, ora com a intelectualidade urbana, se tornava veículo para algo maior.
O free jazz já havia expandido a linguagem musical, mas o spiritual jazz ofereceu outra via, um caminho curioso de busca interior. O termo não surgiu de imediato, mas se cristalizou a partir de álbuns que colocavam a espiritualidade, a transcendência e a ligação com ancestralidades no centro da criação.
O marco incontornável é A Love Supreme de John Coltrane, gravado em 1964 e lançado em 1965. Coltrane transformou sua jornada pessoal de dependência química, crise e conversão religiosa em uma suíte dividida em quatro partes, onde o saxofone funciona como prece. O disco é ao mesmo tempo intimista e universal, um testemunho individual.

A partir dali, discípulos diretos e indiretos entenderam que o jazz poderia ser também devoção. A Love Supreme é o ponto de inflexão, o disco que abriu caminho para que espiritualidade e música não fossem esferas separadas.
Se Coltrane estabeleceu a fundação, Pharoah Sanders foi quem transformou esse alicerce em linguagem expandida. Karma de 1969 traz The Creator Has a Master Plan, faixa de mais de 30 minutos que parecia não obedecer a lógica tradicional musical, principalmente ao se tratar de uma época onde as rádios comandavam os padrões do que era produzido.

Ao lado de Sanders, Alice Coltrane levou o spiritual jazz a territórios ainda mais distantes. Pianista, harpista e viúva de John Coltrane, Alice mergulhou em tradições hindus com seu ex-marido e criou discos que pareciam querer levar a quem estava escutando para outro planeta. Em Journey in Satchidananda de 1971, a fusão entre jazz, ragas indianas e espiritualidade pessoal criou uma obra que até hoje soa como viagem cósmica. O título do álbum é homenagem a Swami Satchidananda, líder espiritual com quem Alice aprofundou seu contato com filosofias orientais.

Em The Heliocentric Worlds de 1965, Sun Ra articula sua própria cosmologia, conectando ancestralidade africana, ficção científica e espiritualidade. Seu trabalho é frequentemente associado ao afrofuturismo, o intuito era de sintetizar o povo negro e sua cultura no plano cósmico. Sua música, cheia de improvisações livres, era ao mesmo tempo ritualística e política, celebrando a imaginação como forma de libertação.

Yusef Lateef, experimentava com escalas e instrumentos do Oriente Médio em Eastern Sounds, mostrando que a busca espiritual também passava pelo diálogo intercultural. Archie Shepp, com Attica Blues de 1972, conectou a luta negra com sonoridades que evocavam gospel, blues e soul.
Na década de 70, o spiritual jazz se tornou ainda mais plural. Lonnie Liston Smith, em Expansions de 1975, trouxe elementos de soul e funk, criando uma música ao mesmo tempo meditativa e dançante, que conectava a pista de dança com o templo. Essa fase tornou o jazz uma ponte direta com o pan-africanismo, dialogando com a ideia de que a libertação espiritual e a libertação política estavam interligadas.
Décadas depois, o spiritual jazz seria retomado como referência direta por artistas contemporâneos. Kamasi Washington em The Epic, de 2015, levou a grandiosidade da tradição para novos públicos.

Cada álbum essencial é um registro de como músicos negros encontraram, na música, formas de construir comunidades, lidar com a dor coletiva e projetar visões de futuro. Essa música atravessa gerações porque toca em questões que continuam abertas, do racismo estrutural à busca por sentido espiritual em tempos de crise.
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