A jornada de Jorge Ben Jor pelos mistérios da alquimia
A história começa em 1973, quando Jorge Ben Jor decide levar Gilberto Gil para conhecer o lugar onde um pequeno grupo de alquimistas se encontrava secretamente. Era nos fundos do Auberge Nicolas Flamel, um restaurante em Paris numa construção de meados de 1400. Depois de jantarem, os dois saíram andando pela casa, cujo primeiro dono foi Nicolas Flamel - alquimista famoso na sua época.
“Vimos uma coisa lá. O Gil também viu. Nós vimos alguma coisa. Mas bonita, não feia. Uma coisa bonita.” comentou o cantor em uma entrevista em 2009. Por fim, o que ambos viram foi “um grupo de pessoas com roupas do século 15 na posta da sala. Era um grupo de alquimia” e, uma das pessoas que eles teriam “visto” era, justamente o namorado da viúva - Nicolas Flamel.
Seis meses depois daquela visão, em maio de 1974, Jorge Ben Jor lançaria seu disco preferido da carreira: ’A Tábua de Esmeralda’.
O álbum pode ser visto como uma espécie de coletânea, quase um tratado musical que eleva a obra ao status de arte e filosofia simultaneamente, sempre sob a interpretação genuína e singular de Jorge Ben Jor.
Com 12 canções, praticamente todas se tornaram populares. “Os Alquimistas Estão Chegando”, “Magnólia”, “Zumbi”, “Menina Mulher da Pele Preta” e o “O Namorado da Viúva” entraram na lista das músicas clássicas brasileiras. Na última delas, Jorge faz referência à visão dele e Gil mas dá continuidade contando sua própria versão, como se Flamel o tivesse contado naquela visão em 73, ou como se o próprio cantor tivesse participado das fofocas das ruas de Paris de 800 anos atrás.
Naquele mesmo mês de lançamento, Jorge Ben Jor escolheu a música como um dos singles do disco e a apresentou no Fantástico - onde aparece rodeado por figuras manipulando poções, em roupas semelhantes à visão de um ano antes, com Gil.
A alquimia
O álbum marca seu primeiro trabalho no caminho da alquimia. Estudiosos afirmam que o artista perpassa três grandes temas: a negritude, o misticismo e a alquimia. O próprio Jorge afirmou que o álbum era uma verdadeira “alquimia musical”.
Esses temas já eram comuns da sua vida - um de seus avôs fazia parte da Ordem Rosacruz, um grupo que há mais de 100 anos se dedica a estudos místicos, e foi nos livros dele que Jorge descobriu a alquimia. “"Comecei a admirar a maneira deles verem o mundo, a perseverança no trabalho...".
Em uma entrevista, Ben afirmou também que leu muito textos originais de Tomás de Aquino - canonizado como santo católico em meados do século 14, é tido como o grande responsável por embutir a filosofia aristotélica na fé cristã. "Ele tem uns textos lindos. Aprendi latim por causa dele", disse à Trip em 2009, citando a Suma Teológica, um calhamaço repleto de soluções a perguntas sobre a existência e a relação da humanidade com Deus escrito na metade do século 13. Aquino também era alquimista.
Em ‘Eu Vou Torcer’, Jorge cita o santo brevemente: “Pelo Santo Tomás de Aquino/ Pelo meu irmão…”. Novamente, no seu álbum seguinte de 1975 (Solta o Pavão), ele dedica uma música inteira ao santo: “Assim Falou Santo Tomaz de Aquino”.
Al-kīmīya
O procedimento mágico de tentar transformar metais comuns, como o chumbo, em ouro ou na pedra filosofal - caminho para a vida eterna -, é o princípio da alquimia. E é na primeira música do disco, Os Alquimistas Estão Chegando Os Alquimistas, que Ben explica como isso seria possível por meio de uma sequência de etapas químicas.
Mas, nas entrelinhas, Jorge explica todas suas interpretações sobre o que a alquimia é, de fato. Um dos códigos mais profundos que Jorge Ben talvez tenha deixado em A Tábua de Esmeralda está no acontecimento histórico, na etimologia da palavra "alquimia".
Segundo estudos, os egípcios se referiam a alguns processos, como o embalsamento dos seus mortos, de khemeia - de onde se deriva a palavra “química”. Os árabes adotaram práticas semelhantes, ainda antes de atingir o Ocidente, e foram chamadas de “al kimiya”, que significava “pedra filosofal”.
Mas, a palavra “kimiya” tem raiz em uma língua falada apenas pelos cristões egípcios (coptas) e sua tradução é, simplesmente, “negro”. Era assim porque “kimiya” era o jeito como eles chamavam a cor da argila nas margens do Rio Nilo e, por consequência, o próprio Egito: “terra negra”.
Em A Tábua de Esmeralda, a alquimia é realçada, sobretudo, com um sistema de conhecimento filosófico africano - e negro. Mas claro, o papel da alquimia de Nicolas Flamel também é importante: “Ele é meu muso”, Jorge chegou a afirmar em uma entrevista em 2009. Porém, a alquimia de Flamel se dá pela via do misticismo.
Como dito antes, todas as interpretações de Ben Jor sobre a alquimia cabem em seu álbum. Em O Homem Da Gravata Florida, o cantor se baseia em Philippus von Hohenheim, um suíço do séc. 17 obcecado por conhecimentos alquímicos, e que os usou para criar uma vertente da ciência (iatroquímia) e também medicamentos. O suíço ficou conhecido como Paracelso - “melhor que Celso” em latim, em referência ao grande médico da Roma, Aulo Cornélio Celso.
Depois de todo esse período, a alquimia se vê como uma prática e filosofia suspeita ao olhos dos eruditos, sobrevivendo através de rosacruzes e maçons, por meio de simbolismo ou cientistas que trabalharam secretamente em laboratórios. Essa corrente solidária se dá através de todo o disco.
Os códigos de ‘A Tábua de Esmeralda’
Hermes Trismegisto escreveu um conjunto de 24 textos sagrados - a tábua de esmeralda - entre os séculos 2 e 3 d.C., que muito tempo depois foram reunidos em um compêndio chamado Corpus Hermeticum. Neles, Hermes fala sobre a relação da humanidade com o divino, noções de verdade, de bem e beleza e sobre as origens do mundo. Trismegisto vem de “três vezes grande”: "o melhor filósofo, o melhor sacerdote e o melhor rei".
A tábua de esmeralda foi escrita em tópicos, como se o próximo afirmasse o anterior, até todos conformarem uma explicação definitiva de tudo. A primeira frase do texto, "é verdade, sem mentira, certo e muito verdadeiro", não aparece na canção de Ben, mas está estampada na capa do álbum. O segundo tópico, “o que está embaixo é como o que está no alto, e o que está no alto é como o que está embaixo”, é como uma síntese do hermetismo alquímico.
A tábua de esmeralda de Hermes Trismegisto aparece nas imagens da icônica capa do disco, filtrada por um sonho que, para o "muso" de Jorge Ben (Nicolas Flamel) serviu como revelação.
A história é que Flamel sonhou com figuras aleatórias, que iam de alquimistas à relação dos homens com deuses. Anos depois, ele entrou em uma livraria e, folheando um dos livros, encontrou as mesmas imagens na obra. Os textos estavam em outra língua, mas dali em diante ele acreditou que havia achado a receita da pedra filosofal.
Os livros do disco
Há um consenso entre pesquisadores do álbum sobre os livros que completam o universo do disco. Um deles é Mistério das Catedrais, em que Fulcanelli afirma como velhos templos católicos da Europa, sobretudo góticos, guardariam antigos segredos alquímicos. É um livro que ajuda a entender como Ben leu a alquimia.
É possível dizer que a grande influência de Fulcanelli sobre o álbum está no método que o autor descobriu e descreveu no livro: tal como alquimistas medievais esconderam seus segredos nos templos, Jorge Ben guardou muitos mistérios no interior das canções do disco.
Eram Os Deuses Astronautas?, foi outro livro que o cantor certamente leu. O livro sustenta a tese de que seres extraterrestres circularam pela Terra antes das primeiras espécies humanas, deixando vários artefatos, estruturas e até sinais, das tecnologias que manejavam. Em Errare Humanum Est, terceira canção do disco Jorge fala sobre isso: conjecturando se a tese do autor não seria capaz de provar, de alguma forma, pelo "nosso impulso de sondar o espaço".
Magnólia também saiu do mesmo livro: um dos trechos conta sobre a lenda de uma deusa chamada Orjana que desceu em Tiahuanaco (Bolívia) para se tornar mãe da Terra, vinda das estrelas em uma espaçonave dourada - "já se encontra a caminho/ Voando numa nave maternal dourada/ Linda e veloz feita de um metal miraculoso".
Já em Zumbi, Jorge Ben revisitou imagens do pintor francês Johan Moritz Rugendas que, na primeira metade do século XIX, publicou um livro repleto de gravuras sobre o cotidiano da escravidão depois de uma expedição pelo Brasil. Nelas estão as origens dos escravizados, em ordem: Benguela, Angola, Congo, Monjolo, Cabinda, Quiloa, Rebolla e Mina.
"Tem ali todo um reconhecimento do nosso peso escravocrata, mas sem perder de vista a possibilidade de cada um transcender por meio de um trabalho pessoal. O fascinante é como, em Tábua de Esmeralda, ele encontra, na alquimia, uma resposta para o fardo de ser negro no Brasil do século 20"., afirma o crítico Paulo da Costa e Silva.
Considerado pela revista Rolling Stone como o sexto melhor disco lançado por artistas do Brasil, A Tábua de Esmeralda reflete o período do cantor da “Alquimia Musical”, onde Jorge conseguiu unir suas duas maiores paixões, a música e a alquimia. É uma verdadeira obra de arte, à altura do trabalho sonoro que representa.
O disco não representa imortalidade, mas é algo próximo disso. Jorge Ben Jor não precisava de sucesso na época quando lançou esse grandioso álbum, mas foi um dos que o consagrou.