Santan Dave e a construção de uma voz britânica
Da infância em South London aos álbuns que redefiniram o rap britânico, a trajetória de Dave é um retrato preciso de uma geração que transformou suas dores em discurso público e seus contextos locais em linguagem universal.
David Orobosa Omoregie nasceu em junho de 1998, em Streatham, South London, filho de pais nigerianos. Cresceu em um ambiente marcado por austeridade econômica, repressão policial e uma cena musical em ebulição. O Reino Unido dos anos 2000 e 2010 viu o grime explodir como linguagem urbana e política, encabeçado por nomes como Wiley e Dizzee Rascal, enquanto o rap britânico começava a ganhar estrutura e reconhecimento fora do gueto. Dave cresceu nesse cruzamento, mas desde cedo se destacou por um olhar mais introspectivo e uma escrita afiada. Aprendeu piano ainda criança, estimulado pela mãe, e desenvolveu um estilo lírico que unia técnica refinada, senso narrativo e um olhar crítico sobre sua realidade.

Sua primeira aparição de destaque foi em 2015, no programa “Black Box Freestyle”, quando ainda era adolescente. A performance chamou atenção pela clareza e frieza da entrega, contrastando com a energia explosiva típica dos MCs de grime. No ano seguinte, lançou o EP “Six Paths”, produzido em parte por Fraser T. Smith, que já havia trabalhado com Adele e Stormzy. O projeto consolidou Dave como uma nova voz do rap britânico, capaz de equilibrar vulnerabilidade e contundência, com destaque para faixas como “Picture Me” e “JKYL+HYD”, que abordavam identidade, dualidades pessoais e perspectivas de futuro. Ainda em 2016, um freestyle na plataforma SBTV ganhou proporções virais e pavimentou o caminho para sua entrada no mainstream.
Em 2017, Dave lançou o EP “Game Over”, um marco por trazer “Question Time”, música em que ele confronta diretamente a primeira-ministra Theresa May sobre cortes de serviços públicos, Brexit e Grenfell Tower. Essa faixa marcou sua capacidade de transformar questões políticas em narrativa musical sem perder força estética. No mesmo ano, sua colaboração com AJ Tracey em “Thiago Silva” se tornou um hino nos festivais britânicos, coroado pela cena icônica no Glastonbury de 2019, quando um fã foi chamado ao palco e cantou o verso inteiro de Dave, viralizando mundialmente.

Seu primeiro álbum completo, “Psychodrama” (2019), foi um ponto de virada não apenas em sua carreira, mas na música britânica contemporânea. Inspirado em sessões de terapia, o disco estrutura-se como uma narrativa de autoconhecimento e enfrentamento de traumas, abordando saúde mental, racismo, masculinidade e criminalização.
Produzido majoritariamente por Fraser T. Smith, o álbum tem uma construção cinematográfica, com interlúdios que simulam diálogos terapêuticos e instrumentais que privilegiam piano, cordas e texturas melancólicas. Faixas como “Black” expõem a experiência negra no Reino Unido com uma franqueza rara, confrontando estereótipos e celebrando a história africana. “Lesley”, com mais de 11 minutos, conta em detalhes a história de uma mulher vítima de violência doméstica, um retrato social que foge completamente dos moldes do rap comercial.

“Psychodrama” foi aclamado por crítica e público, venceu o Mercury Prize e o Brit Award de Álbum do Ano, e consolidou Dave como um artista capaz de usar o rap não apenas como forma de expressão pessoal, mas como plataforma de discurso político e social. O contexto britânico contribuiu para esse impacto. Enquanto o drill ganhava força com sua linguagem das ruas e o grime mantinha sua base de resistência, Dave ofereceu uma perspectiva mais introspectiva e analítica, conectando experiências locais a temas universais como saúde mental, racismo e identidade.
Em 2021, lançou “We’re All Alone in This Together”, segundo álbum de estúdio, que expandiu o olhar para além de suas experiências pessoais, explorando temas como imigração, diáspora africana, família e sucesso. O título faz referência ao isolamento da pandemia, mas também à ideia de coletividade em tempos de crise.
Musicalmente, o disco combina pianos e instrumentais orquestrados e contemporâneos, mantendo o equilíbrio entre o lirismo e a energia que Dave sabe criar. Em “Three Rivers”, Dave fala sobre ondas migratórias para o Reino Unido, do pós-guerra aos tempos modernos, costurando histórias individuais e estruturais. Em “Heart Attack”, faixa de quase 10 minutos, faz um monólogo intenso sobre violência, trauma e responsabilidade, encerrando com uma gravação real da mãe dele chorando, um gesto cru que sintetiza a dimensão pessoal e coletiva do disco.
Ao longo desses anos, Dave construiu uma trajetória que combina prêmios e reconhecimento com relevância cultural. Tornou-se o artista mais jovem a vencer o Mercury Prize, foi coroado como Best Album duas vezes no Brit Awards e foi nome central em discussões sobre identidade britânica contemporânea. Também se destacou como pianista habilidoso e ator, participando da série “Top Boy” da Netflix, ampliando sua presença cultural para além da música.
Culturalmente, Dave representa uma geração que cresceu sob austeridade, vigilância e transformações identitárias no Reino Unido. Sua escrita traduz o cotidiano das periferias de Londres com precisão, mas também opera como reflexão filosófica sobre destino, violência e pertença. Ele insere suas narrativas individuais dentro de estruturas maiores, abordando desde o colonialismo até políticas migratórias contemporâneas, sem perder o pulso emocional de suas histórias.

Em 2025, com o lançamento de seu novo álbum, Dave chega a um ponto de maturidade artística singular. O anúncio do projeto foi cercado de expectativa, alimentada por anos de consistência e pela posição que ocupa dentro do rap britânico e global. De Streatham aos maiores palcos do mundo, Santan Dave construiu uma obra que combina precisão técnica, densidade lírica e consciência histórica, posicionando-se como uma das vozes mais importantes de sua geração.
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